|
|
|
Matrix
reloaded o filme (parte II), animatrix, as
curtas metragens (9) e enter the matrix, o jogo.
O regresso de Matrix não é só um filme mas mais do que isso. É
uma marca, uma chancela, um marketing totalitário. O filme não é
mais do que metade de um vasto objecto (cultural? comercial? artístico?
político?[1])
que se completa nesta fase intermédia através do jogo enter the
matrix e das nove histórias, curtas metragens, escritas pelos irmãos
Wachowski e por alguns realizadores e escritores da cena Anime
japonesa e seus seguidores americanos. Para aceder a todas as dimensões
do universo matrix é necessário ver o filme, as curtas
metragens e jogar o jogo. Jogo e cinema como um só e mesmo objecto?
As recentes incursões no universo cinematográfico de histórias e
heróis provenientes de videojogos, tais como Final Fantasy e Tomb
Raider, são acompanhadas por uma evolução na tipologia
narrativa dos videojogos. Assim, através de uma estrutura, planta ou
matriz da história, é possível jogar o enter the matrix em
diferentes dimensões, momentos, níveis, e construir diversos pontos
de vista a partir de um mesmo acontecimento, o qual vai sendo
explicitado pela inclusão no jogo de pequenos excertos de filme
previamente registados.
A história é simples: para salvar Zion,
último lugar dos homens na terra agora dominada pelas máquinas, a
dupla Neo e Trinity tem que passar uma quantidade de obstáculos e
garantir o sucesso da sua missão que consiste em encontrar o homem
das chaves para que o-tal-cujo-caminho-está-nele entre na porta
certa. Neste episódio da saga somos levados a concluir que, ao contrário do que pensávamos,
Neo é também um vírus engendrado pelo sistema, um software
implantado na matriz para nos divertir. A metáfora viral estende-se a
todo o grupo de refractários do sistema Matrix uma vez que
tudo estava planeado pelo arquitecto do programa. Até a Oráculo,
vidente ou feiticeira, surge como uma simulação, ou seja, está
inscrita no código. Esta ideia, que não é de todo nova, embora nos
últimos anos tenha ganho imensos adeptos, lembra-nos que tudo está
escrito, pré-programado - o código ADN, o código da Bíblia, o código
do hardware e software, o código das relações humanas e das químicas
do corpo que antecede a própria consciência, pelo que o homem só
tem como alternativa uma escolha limitada. Uma escolha que se divide,
neste caso, em duas soluções: uma pílula vermelha, para aqueles que
sabem que a simulação se trata de uma ilusão, ou uma pílula azul,
para aqueles que preferem não ter dúvidas sobre o carácter real ou
ficcional do universo da matriz. No primeiro episódio Neo tinha que
escolher entre salvar a sua própria pele ou a de Morpheus. Neste
segundo, tem que escolher entre salvar o último reduto dos humanos,
Zion, ou a sua amada Trinity. Em ambos, é o amor entre Neo e Trinity
que revela o escolhido e ressuscita o outro. Depois de cem anos de
sono, qual bela adormecida, Neo acorda para a sua segunda vida através
do beijo de Trinity no primeiro filme. Em Matrix Reloaded
Trinity morre ao tentar salvar o seu amado e é posteriormente
activada pela mão de Neo, que penetra nas suas entranhas.
Ainda bem que nas linhas de código estava destinado um final feliz
nesta dimensão da história, pois ninguém gostaria de ver Neo e
Trinity separados; a sua identidade é de
tal forma permutável e andrógina que suspeito bem que são um só. E
Hollywood, uma entidade que se ocupa da distribuição planetária de
canais e programas de simulação que substituem a realidade das
experiências humanas, não poderia prescindir de um herói deste
tipo.
O
pacote de acessórios matrix para uma cultura de marca não é
de todo original nos seus propósitos, embora a reciclagem da
mitologia popular da ficção científica seja bastante interessante.
Encontramos em Matrix Reload um ambiente high tech à
la 2001 Odisseia no Espaço nas salas e corredores da
matriz, misturado com incursões na estética Alien, através
das sentinelas e do ambiente geral apocalíptico da contra-cultura; um
plano inspirado no Exterminador Implacável e nas metamorfoses
metálicas do agente Smith; um cheirinho
a Blade Runner, Eles Vivem e Videodrome nos gémeos
siameses e na indiferenciação entre humanos e réplicas, realidade e
ficção; um voo tipo Superman recheado com muita manga, Akira, Ghost in the Shell e folhetim, Alice no país das Maravilhas e o Feiticeiro
de Oz, como aliás é referido no primeiro episódio e realçado
na curta metragem de Shinichiro Watanabe, História do Detective (animatrix).
“Como menosprezar Morpheus e as suas sentenças budistas quando em
criança admirámos o mestre Po em Kung Fu?[2]”
Um caldeirão bem condimentado pelo livro de cabeceira de Neo no
primeiro filme, Simulacros e Simulação
de Jean Braudrillard, e por várias
ideias caras à cibernética, nomeadamente a questão da evolução do
homem e das suas máquinas na curta metragem apocalíptica O
segundo Renascimento (Parte I e II / animatrix). O processo de
simbiose, definido por Joel de Rosnay em L’homme
Symbiotique[3], como uma associação
que se realiza em benefício mútuo de dois ou mais organismos
diferentes, aparece ainda numa associação do tipo comensal ou
parasitária, isto é, o comensal vive no organismo que o alberga ou
na sua vizinhança e retira deste “alimento” sem o prejudicar,
tal como os escorpiões que se infiltram no corpo dos humanos
no filme. O parasita vive dependente do organismo que infecta e pode
colocar em risco a sua sobrevivência. A matriz, como todos os
organismos vivos, produz os seus vírus, que se replicam, modificam e
infiltram nas células, autonomizando-se em certo sentido. Então, o sistema
activa o programa anti-vírus para os eliminar e corrigir, os quais se
instalam no sistema e reproduzem o ciclo iniciado pelos vírus.
A
utopia mórbida de um corpo puro, típica do
método analítico, que analisa o corpo humano como uma
entidade que se decompõe numa complexidade de elementos distintos,
deixa de fazer sentido se pensarmos num método sistémico que
completa o anterior, ou seja, um sistema que tem em conta a relação
combinada do todo, constituído pelas partes, as suas relações
interdependentes e a sua evolução no tempo. Estas relações intrínsecas
ao sistema são de interacção dinâmica e têm como finalidade
manter a estrutura deste[4]. Neste contexto, são exemplos de sistemas o corpo humano, a célula,
a empresa ou uma sociedade de insectos, o qual não tem como
finalidade apenas o elemento isolado mas o conjunto das suas relações,
como num jogo de bonecas russas...
Sendo o método sistémico a convergência da cibernética, da teoria
da informação e da biologia, a matriz,
como um sistema estruturado, visa o processo no seu todo e é este que
é passível de ser reproduzido. Nobert Wiener[5]
remete-nos para a ideia de que é o processo em vez da existência
da estrutura mecânica do computador o que corresponde à vida humana
nos autómatos, ou seja, se este mecanismo for semelhante é bem possível
que o tempo do autómato seja de facto o tempo do humano. É este o
principio replicativo dos 100 inimigos em forma de agente Smith, que
se multiplicam numa
inesquecível coreografia, tal como também o é na questão da
infalibilidade que está na base da personagem de Neo - ambos os
sistemas fazem uma triagem do inimigo de forma a preverem as suas posições
futuras; o fenómeno de propagação não visa apenas a criação de
uma réplica mas a concepção de um outro ser capaz das mesmas funções
num rastreio inteligente típico dos homens e das suas máquinas[6]...
Este sistema que não determina o futuro através das acções
passadas mas antes se projecta na distribuição de possíveis
futuros, um conjunto inteligente que consiga aprender e evoluir de
forma análoga à biológica, que se consiga reproduzir copiando o código
humano e os seus sistemas de informação, é impossível de detectar.
Em vez de uma cópia e de um original temos uma estrutura una na qual
a resolução se mantém coerente em diferentes graus e níveis de
observação. Por outras palavras, a estrutura é construída através
de motivos repetitivos que se organizam a níveis diferentes de forma
a conservarem uma formação de base análoga, coerente...
A
narrativa de Matrix como objecto cultural é fractal? Uma história
que se repete linearmente no filme, no jogo
e em algumas animações, uma estrutura de base análoga, várias
dimensões possíveis de jogar o futuro. No filme Neo beija Persephone,
e esse beijo permite-lhe prosseguir na história. A jogar o jogo no
papel de Niobe, pois é o utilizador que selecciona a personagem com
quem joga, que opta por Ghost ou Niobe, quem beija Persephone é Niobe
e imagino que se o jogo for jogado através dos olhos de Ghost quem
ganha o beijo é Ghost. A soberba cena de acção na auto-estrada também
surge no jogo só que desta vez a partir do carro de Niobe, que em
ambos os objectos salva Morpheus. A perspectiva de jogar o jogo depois
de ver o filme inaugura um sonho de simulação perpétua no qual
podemos interagir de inúmeras formas com a história base e, ao
limite, com todo o sistema. Esta é uma das maiores ambiguidades de Matrix:
o filme ficcionaliza uma luta de refractários sob o domínio do
simulacro criando um ambiente de pura acção visual, que acorrenta e
liberta ao mesmo tempo, oferecendo-nos um universo videolúdico total,
em que podemos interagir ao rallenti ou em modo de aceleração,
porque o tempo da acção é o tempo da simultaneidade, o tempo da
história é o tempo da narrativa, ou seja, esta é contada à medida
que vai sendo construída. A luta contra a hegemonia universal de um só
modelo, o da matriz, de hollywood, o que quisermos, é ela também
um objecto planetário, total e totalizador; a obra de marca Matrix
é feita de imagens que vimos e daquelas que veremos.
Este segundo episódio do filme apresenta uma utilização estética
dos efeitos especiais 3D nunca antes vista. Não há um único plano
que não tenha sido traficado pelo tecnologia digital: os movimentos
das personagens (curioso é o facto dos contratos com os actores
implicarem uma cedência da sua imagem numérica), a posição das câmaras,
os efeitos de luz, etc. A hora extra de filme que o jogo oferece, no
qual podemos ver os bastidores das acções de Niobe e Ghost para
chegar ao local de salvamento – a auto-estrada – é uma mistura
entre cenas filmadas com as actrizes e actores de carne e osso e com
as suas personagens digitais. O jogo tem alguns erros de programação,
tais como sombras e corpos mortos que subitamente desaparecem,
simbioses não propositadas com paredes e objectos, movimentos toscos,
etc. Por outro lado é monótono, muito escuro e por vezes demasiado
repetitivo nas acções, é sempre a mesma coisa: matar uns agentes,
limpar umas áreas e progredir para mais umas cenas do filme.
Contam-se como momentos de particular interesse a cena
dos pseudo vampiros no quarto de Phersephone, género Metal Gear 2, a
cena da auto-estrada e a do hangar seguida da luta interminável com o
agente Smith.
Das
nove curtas-metragens de Animatrix destaco as animações japonesas de
criadores como o realizador da série Ninja Scroll, Programa e
Recorde Mundial, Além de Koji Morimoto que me fez lembrar
a obra prima de Isao Takahata Les Tombeau des Lucioles de 1988,
a História de Detective pelas incursões no filme negro de gangsters
e, finalmente, A História do miúdo com argumento dos irmãos
Wachowski e realização de Shinichiro Watanabe. “Alguém me diga
porque parece mais real quando sonho do que quando estou acordado? Há
alguma ficção na tua verdade e alguma verdade na tua ficção...”
As animações realizadas por americanos são bastante mais fracas, e
até pirosas, como é o caso de O Último voo de Osíris que
começa com um misto de luta e streap tease absolutamente ridículos
e que continua com um ambiente em tudo semelhante ao filme. Os extras
que constam do DVD estão recheados de maquetas, desenhos de cenários
e esboços dos personagens, assim como de análises à importância do
fenómeno e cultura do estilo anime, um género de animação criado
no Japão e apreciado nos EUA. conhecido pela sua subtileza gráfica
inspirada na banda desenhada japonesa (manga). O estilo Anime,
que nos remete para cenários de pós-guerra, pós-Hiroshima e
Nagasaki, centra-se no aspecto cinematográfico mais do que na animação,
ao contrário da escola americana, pela introdução dos movimentos de
câmara em imagens fixas, dos diferentes pontos de vista, caros
aos videojogos, pela ênfase nos grandes planos nas expressões e emoções
das personagens de olhos grandes e brilhantes, pois os japoneses acreditam que estes são um espelho da
alma... O estilo em termos históricos remonta aos pergaminhos
japoneses lidos da direita para esquerda, à ilustração japonesa do
século XIX, aos actores do teatro Kabuki, à enorme indústria manga
para todos os géneros e feitios e ao horror
apocalíptico do pós-guerra. Só a banda desenhada e a animação
poderiam fazer esquecer a tragédia dos 140 mil mortos do dia 6 de
Agosto de 1945, em Hiroshima, e os quase 74 mil mortos no dia 9 do
mesmo mês e ano, em Nagasaki. Um país destruído integralmente
pela guerra contra os EUA, um inimigo considerado demasiado infantil e
mimado para lutar com o guerreiro nipónico.
Porque
a máxima do herói de guerra japonês “vale mais morrer do que
admitir a derrota” e a pretensão nipónica
em ocultar a realidade através do sonho, da imaginação, é bem
compreensível depois da experiência da segunda guerra mundial. E
assim os miúdos vão preferindo, no Japão contemporâneo, a
realidade dos seus quartos sombrios e das suas consolas de jogos ao
desumano código de honra do guerreiro nipónico, entre o bem e o mal,
num doentio fenómeno de isolamento do mundo. Uma doença com o
estranho nome de Ikikomoro, em que milhares de miúdos se fecham
durante meses, anos, no seu próprio quarto, porque a ficção é, por
vezes, mais real do que a realidade...
O
rato Mickey da Disney contra o Astroboy de Tezuca num caldeirão cheio
de amor-ódio. Matrix é isto tudo! Um sistema em permanente
reciclagem, um bailado aquático de Esther Williams misturado com danças
chinesas do tigre e do dragão. Um sistema, uma obra, uma operação
de marketing.
[1]
AAVV, «Matrix XXL Hors compétition. Shoot visuel pour kids
mondialisés, Reloaded défriche aussi un nouveau territoire du
cinéma», Libération (www.liberation.fr/page.php?Article=110885)
[2]Lançon, Philippe,
"Numériques, digitales le goût des autres",
matrixité, Libération (www.liberation.fr/page.php ?Article=114286)
[3]
Rosnay, Joel de, L’homme Symbiotique, regards sur le troisième
millénaire, Editions du Seuil, 1995 p. 104.
[4]
Rosnay, Joel de, op. cit., pp. 37-39.
[5]
Wiener, Norbert, Cybernetics: or control and Communication in the
Animal and the Machine, The Mit Press, Cambridge, Massachusetts, 2ª
edição 2000. p. 130.
[6]
Wiener, Norbert, op. cit., p. 113 e 179.
|