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  OS ROSTOS

  [ Bernardo Pinto de Almeida ]

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Le visage humain n’a pas encore trouvé sa f ac e.

— Artaud

Um livro entre outros, numa montra. Um rosto. Entre milhares de livros, alguns livros. Os rostos. De Ralph Waldo Emerson, este, A confiança em Si, assistido por tocantes fotografias de Daniel Costa a que voltarei adiante, na editora Vendaval, assinada por Silvina Rodrigues Lopes, que servirá a esclarecer-nos, julgo que pela primeira vez em língua portuguesa, sobre um pouco do que foi o pensamento deste grande americano que haveria de influenciar Nietzsche e Whitmann e a quem Harold Bloom pôde chamar "o profético Emerson" (cf. Wall ac e Stevens, The poems of our climate).

Esse pensador que de algum modo ajudou, com Walt Whitmann (também recém-reeditado pela Assírio e Alvim em tradução de José Agostinho Baptista) ou Hermann Melville, a dar uma espessura incontornável à cultura americana, algo que nela ainda assim resiste, como sentido de afirmação do indivíduo, na história, às atrozes manipulações que outros legados, também ali nascidos sob estrelas de bem menor integridade, constantemente subvertem. Que o livro surja agora, contemporâneo pois dos efeitos de estufa da desastrosa política externa americana dos últimos anos — já que a interna é lá com eles —, talvez nos possa ajudar a perdoar à América, pelas suas grandezas, os miseráveis motivos que, às vezes, nela urgem concitados por interesses que negam os próprios fundamentos em que ela se fez e se escreveu um corpo admirável.

O grande Emerson, então, o que afirmou — e porque só citá-lo poderá restituir sem mácula algum do brilho dessa afirmação — que "A minha vida existe para si própria e não para o passeio público. Prefiro de longe que ela exista num modo menor afim de ser justa e autêntica, do que ela brilhe de um fulgor instável." Ou, ainda, "Quando os simples cidadãos agirem segundo os seus pontos de vista originais, o fulgor será transferido dos ac tos dos reis para os dos homens sem títulos." Ou, finalmente, "O Poder é na natureza a medida essencial do que é justo." (pp. 25, 34 e 42). Falar de Emerson é falar da Democr ac ia, não de uma democr ac ia que gera em si mesma o estigma do que a pode assassinar, o fascismo, como daquela em que cada homem, livremente, assume o seu destino individual, fortalecendo-a assim desse único sentido de humanidade para que foi criada por homens.

Mas que este livro surja no contexto português ac tual reveste igualmente uma importância maior, dados os perigos que à própria democr ac ia portuguesa ameaçam por dentro, com a evidenciação progressiva dos mais inquietantes sinais do desrespeito e da traição aos seus princípios. Ainda a Casa Pia e o lamentável desprezo que pelas suas inumeráveis vítimas alguns representantes do poder político português — que não verdadeiramente do Povo, logo assim — observam, com tolos comícios de desagravo que escondem, em vazias proclamações de passeio público, o que apenas a observação da Lei deveria garantir pela incansável protecção das ÚNICAS, até agora, verdadeiras vítimas do intolerável abuso gerado por uma teia em que o Estado foi cúmplice. As crianças, que se sabem hoje não apenas molestadas psicológica como também fisicamente. Com a verdade para sempre exposta, nas feridas dos seus corpos e almas, de um ac to de iniquidade imperdoável perpetrado por quem as deveria ter guardado por ter sido para isso cometido pelo voto popular. Os que sucessivamente ignoraram, justificando a soberania como violência, esta profunda injustiça aos mais fr ac os de todos.

Essa injustiça de que falou Maurice Blanchot, o mais silencioso dos pensadores do nosso tempo, quando escreveu "Recordo-me de um jovem — de um homem ainda jovem — impedido de morrer pela própria morte — e talvez por erro da injustiça", na abertura de um texto iluminado de que igualmente ac aba de sair tradução portuguesa na Campo das Letras. Refiro-me a O instante da minha morte, que alude à experiência do autor nos obscuros tempos da resistência ao nazismo.

Mostrem-nos então o rosto dessas crianças que ele nos dirá qual é o lado da injustiça, o do instante da sua morte, e uma vez que, como incessantemente o afirmou Émmanuel Lévinas, amigo de Blanchot, o rosto é o verdadeiro fundamento da Lei. E decerto que não falo, aqui, dessa máscara disforme em que consiste o rosto mediatizado, exposto, como no circo dos tolos, mas do seu rosto real, do que é, como alguns ainda de vez em quando nos lembram, o do mais fundo sofrimento. Como também não falo da lei mediatizada, aquela em que a excepção se vai urdindo como regra de espectáculo.

E de um outro livro então, ac abado de sair em Paris, em que as sombras de Blanchot e de Lévinas constantemente pairam, se poderia falar: de Giorgio Agamben, État d’excéption, na Seuil, lembrando a necessidade de o traduzir. Segundo volume desse notável inquérito aos fundamentos do sistema jurídico-político que nos governa — precisamente quando a excepção parece ter-se tornado regra — na sequência de O Poder soberano e a vida nua, já disponível desde 98 na Editorial Presença, em que o autor fundamentava as suas ac tualíssimas teses a partir da noção de que "soberana é a esfera em que se pode matar sem cometer homicídio", ou de que é "a coincidência entre violência e direito que constitui a soberania" (p.42 e segs).

Neste segundo volume, Agamben vem levar mais longe a questão afirmando que "tudo se passa como se o direito contivesse uma fr ac tura essencial, situando-se entre o estabelecimento da norma e a sua aplicação, e que, no caso extremo, não pudesse senão ser preenchido pelo estado de excepção, quer dizer, criando uma zona na qual essa aplicação é suspensa, mas onde a lei permanece, como tal, em vigor (p.55)."

É decerto essa esfera de excepção que se exprime, em modo caricatural, naquela desfaçatez auto-compl ac ente própria do cinismo, que levava há dias o dr. Almeida Santos a afirmar-se contra o referendo sobre a Constituição europeia, argumentando que o povo não estaria ainda preparado para a votar. Não estranhando pois que seja este o mesmo homem que, ex-Presidente da Assembleia embora, se exibia ainda há pouco a abraçar, naquele espaço em que se improvisou inesperado circo de desagravo, um deputado arguido num processo gravíssimo, que ali regressou directo da cadeia como se o seu rosto baço equivalesse, se não mesmo superasse, o das vítimas.

Dai-nos pois o rosto das vítimas, da sua "vida nua", na expressão de Agamben, e não mais, nunca mais, o dos soberanos, quando  neste já não assenta a dignidade. Perceber-se-à talvez agora melhor esta urgência de voltar a Emerson, aquele que se referia a "um cristianismo entricheirado nas formas e nas instituições não nos faz perder o vigor de uma virtude selvagem. Porque cada estóico era verdadeiramente um estóico mas, na cristandade, onde está o cristão?" Dai-nos então o rosto dos estóicos, dos que longamente sofreram do intolerável silêncio das vítimas.

São estas meditações, violentas como rostos, no incisivo texto de Emerson, que a presença conjunta das fotografias de Daniel Costa numa segunda parte do volume esclarecem. E também elas se configuram próximas dessa verdade do rosto no modo como olham para as coisas. Só que, em vez de rostos são coisas, objectos, alguns de decifração dificultada pela sombra do enigma que toda a fotografia desde dentro concita E leia-se, a propósito, o último livro de Sontag. Coisas em que um rosto agora ausente, o do seu fotógrafo, se revela como se fossem outros tantos retratos seus.

Não por ac aso o que mais se assemelha um rosto talvez seja, no final deste conjunto, o focinho de um cão que se volta para a câmara, iluminando de uma estranheza inquietante este percurso por folhas, búzios, mãos e nuvens. Lembrança daquele cão de que nos falava Jean Genet, no seu belo ensaio sobre Gi ac ometti, testemunhando a exclamação do escultor numa rua à f ac e de um cão vadio que passava: "Regarde. Le chien, c’est moi." Era o seu rosto. O nosso, quando o do humano já não se reconhece em volta, na geral exposição da vida nua.