trans.gif (43 bytes) trans.gif (43 bytes)

  Et moi qui t’offrais mon plaisir …

  [ Maria Lucília Marcos ]

trans.gif (43 bytes)
trans.gif (43 bytes)

 

 

 

 

1.      Lolita – Patchwork

(quando todo o discurso sobre pedofilia parece contaminado pela pressa, pela culpa e pelo luto, o recurso à literatura é um desvio precioso. E preguiçoso também, claro.)

 

      “Eu era um rapaz forte e sobrevivi ; mas o veneno estava na ferida, a ferida nunca fechou e a breve trecho dei comigo a amadurecer entre uma civilização que permite a um homem de vinte e cinco anos cortejar uma rapariga de dezasseis, mas não uma de doze.

      Permiti que recorde aos meus leitores que em Inglaterra, depois da aprovação da Lei das Crianças Jovens, de 1933, a expressão «rapariga-menina» é definida como «uma menina de mais de oito e menos de catorze anos» (depois disso, dos catorze aos dezassete anos, a definição legal é «jovem»). Por outro lado, no Massachusetts, E.U., uma «criança desobediente» é, tecnicamente, abrangida «entre os sete e os dezassete anos de idade» (e, além disso, habitualmente associada com pessoas perversas ou imorais). Hugh Broughton, polemista que viveu no reinado de Jaime I, provou que Rahab era uma prostituta  aos dez anos de idade.(...) Mas eis mais algumas imagens. Aqui está Virgílio, que podia cantar a ninfita em tom singelo, mas que talvez preferisse o peritónio de um rapaz. E aqui estão duas das filhas pré-núbeis do faraó Akenaton e da rainha Nefertite (este par real teve uma ninhada de seis), cobertas apenas por muitos colares de contas brilhantes e repousando descontraídamente em cima de almofadas, intactas após três mil anos, com os seus macios e castanhos corpos de cachorrinhas, o seu cabelo curto e os seus rasgados olhos de ébano. Aqui estão algumas noivas de dez anos, obrigadas a sentar-se no fascinum, o marfim viril dos tempos da cultura clássica. O casamento e a coabitação antes da puberdade ainda se praticam em certas províncias da Índia oriental. Velhos lepchas de oitenta anos copulam com rapariguinhas de oito e ninguém se importa. No fim de contas, Dante apaixonou-se loucamente por Beatriz quando ela tinha nove anos e era uma cintilante garota pintada, encantadora e coberta de jóias, de comprido vestido escarlate – e isto passou-se em 1274, em Florença, numa festa particular efectuada no alegre mês de Maio. E, quando Petrarca se apaixonou perdidamente pela sua Laura, ela era uma loura ninfita de dez anos a correr ao vento, entre pólen e poeira, uma flor em fuga, na bela planície vista dos montes de Vaucluse e descrita pelo poeta.

      Mas sejamos decentes, civilizados, Humbert Humbert esforçou-se, esforçou-se muito, para ser bom. Esforçou-se verdadeira e sinceramente. Tinha o máximo respeito pelas crianças normais, com a sua pureza e a sua vulnerabilidade, e em circunstância alguma interferiria com a inocência de uma criança, se houvesse o mínimo risco de complicações. Mas, oh!, como o seu coração batia quando, entre a inocente multidão, descobria uma criança-demónio, enfant charmant et fourbe, olhos sombrios, lábios brilhantes, dez anos de cadeia só por ser apanhado a olhar para ela. E assim a vida continuava. Humbert era perfeitamente capaz de ter relações íntimas com Eva, mas era Lilith que desejava!

      A propósito, que acontecerá, mais tarde, a estas ninfitas? Tenho feito esta pergunta a mim próprio, muitas vezes. Será possível, neste férreo mundo em que causa e efeito se entrecruzam, será possível que a palpitação secreta que lhes roubei não afecte o seu futuro? Possuí-a e ela nunca o soube. Muito bem. Mas isso não teria os seus efeitos, em qualquer altura posterior? Não teria eu, fosse como fosse, interferido no seu destino, ao envolver a sua imagem na minha voluptuosidade? Oh, isso foi, e continua a ser, uma fonte de grande e terrível perplexidade!

      Averiguou-se que a idade média da puberdade, nas raparigas, é de treze anos e nove meses em Nova Iorque e Chicago. A idade individual varia, porém, dos dez anos, ou menos, até aos dezassete. Virgínia ainda não completara catorze quando Harry Edgar a possuiu. Ele dava-lhe lições de álgebra. Je m’imagine cela. Passaram a lua-de-mel em Petersburgo, Florida. «Monsieur Poe-poe», como aquele rapaz de uma das turmas de Monsieur Humbert Humbert, em Paris, chamava ao poeta-poeta.

      Sabia que me apaixonara por Lolita para sempre, mas também sabia que ela não seria eternamente Lolita. Completaria treze anos no dia 1 de Janeiro, dentro de cerca de dois anos deixaria de ser uma ninfita e transformar-se-ia numa «jovem» e, depois, numa «universitária», esse horror dos horrores. A expressão «para sempre» referia-se apenas à minha paixão, à Lolita eterna infiltrada no meu sangue. À Lolita cuja cavilidade ilíaca ainda não se dilatara, à Lolita que naquele momento podia tocar e cheirar e ouvir e ver, à Lolita da voz estridente e de farto cabelo castanho – das franjas e dos remoinhos aos lados e dos caracóis na nuca, do pescoço quente e pegajoso e do vocabulário vulgar – a essa Lolita, à minha Lolita que o pobre Catulo perderia para sempre.

      De súbito, cavalheiros do júri, senti um sorriso dostoievskiano nascer (através da careta que me contorcia os lábios) como um sol distante e terrível. Imaginei (em condições de nova e perfeita visibilidade) todas as carícias casuais que o marido da mãe poderia fazer, prodigamente, à sua Lolita. Apertá-la-ia a mim três vezes por dia, todos os dias. Libertar-me-ia de todos os tormentos, seria um homem saudável. «Segurar-te levemente sobre um meigo joelho e depositar na tua face macia um beijo paternal...» Bem lido, Humbert!

      De modo que Humbert, o Cubo, planeou e sonhou – e o sol vermelho do desejo e da decisão (as duas coisas que criam um mundo vivo) foi subindo cada vez mais alto, enquanto, numa sucessão de varandas, numa sucessão de libertinos, de taça cintilante na mão, brindava à felicidade de noites passadas e futuras.

      Começara, com uma emoção incestuosa, a considerar Lolita minha filha.

      Senhoras e senhores do júri, a maioria  dos delinquentes sexuais que anelam por qualquer relação física palpitante e entrecortada de suaves gemidos, por qualquer relação física, mas não forçosamente coital, com uma rapariguinha, são inofensivos, inadaptados, passivos e tímidos desconhecidos, que só pedem à comunidade que lhes consinta o seu chamado comportamento aberrante, praticamente inofensivo, que os deixe praticar os seus pequenos, apaixonados, húmidos e discretos actos de desvio sexual sem que a polícia e a sociedade lhes caiam em cima. Não somos demónios sexuais! Não violentamos, como alguns bons soldados violentam. Somos cavalheiros infelizes, brandos, de olhar humilde, suficientemente bem integrados para sabermos controlar os nossos impulsos na presença de adultos, mas dispostos a dar anos e anos de vida pela possibilidade de tocar numa ninfita. Não somos, positivamente, assassinos. 

      Permiti que me explique. Não me sentia exageradamente preocupado com as suas insinuações auto-acusatórias. Continuava firmemente resolvido a obedecer à minha política de poupar a sua pureza, agindo apenas pela calada da noite, servindo-me apenas de um corpinho nu completamente anestesiado. Contenção e reverência continuavam a ser o meu lema – mesmo que essa «pureza» (diga-se de passagem que por completo desmistificada pela ciência moderna) tivesse sido ligeiramente conspurcada por qualquer experiência erótica juvenil, sem dúvida homossexual, no maldito acampamento. Claro que, à minha maneira bota-de-elástico e europeia, eu, Jean-Jacques Humbert, aceitara como coisa certa, ao conhecê-la, que estava tão inviolada quanto a ideia estereotípica de «criança normal» tem permanecido desde o lamentado fim do Mundo Antigo a.C. e das suas fascinantes práticas. Na nossa era esclarecida não estamos rodeados por florinhas escravas que possam ser despreocupadamente colhidas entre os negócios e o banho, como acontecia no tempo dos Romanos. Toda a questão se resume no facto de o antigo elo entre o mundo adulto e o mundo infantil ter sido completamente cortado nos nossos tempos, por novos costumes e leis. Apesar de ter adquirido uma besuntadela de psiquiatria e trabalho social, a verdade é que sabia muito pouco acerca de crianças. No fim de contas, Lolita tinha apenas doze anos e, fossem quais fossem as concessões que eu fizesse ao tempo e ao lugar – mesmo tendo em conta o rude comportamento dos colegiais americanos – continuava convencido de o que quer que acontecesse entre esses fedelhos imprudentes tinha lugar numa idade mais avançada e num ambiente diferente. Portanto (para reatar o fio desta explicação) o moralista existente em mim contornou a dificuldade agarrando-se a ideias convencionais do que uma garota de doze anos devia ser. O terapeuta infantil também existente em mim (um impostor, como a maioria deles, mas não importa) regurgitava tretas neofreudianas e imaginava uma Dolly sonhadora e exagerada no período de «latência» feminil. Finalmente, o sensualista também existente em mim (um grande monstro insano) não  levantava quaisquer objecções a uma certa depravação da sua presa. Mas algures, atrás do júbilo furioso, sombras desnorteadas trocavam, por assim dizer, impressões – e o que eu lamento é não lhes ter dado ouvidos! Seres humanos, esperai! Eu devia ter compreendido que Lolita    demonstrara ser algo muito diferente da inocente Annabel, e que o demónio nínfico que respirava através de todos os poros da infortunada criança, que eu preparara para meu secreto deleite, tornaria o segredo impossível e o deleite fatal. Eu devia saber (por sinais que me tinham sido feitos por algo que havia em Lolita – pela verdadeira Lolita criança ou por qualquer anjo desvairado atrás dela) que do esperado êxtase só poderia advir mágoa e horror. Oh, sublimes cavalheiros do júri.

      Sim, porque o aspecto da luxúria é sempre soturno; a luxúria nunca tem a certeza absoluta – nem mesmo quando a aveludada vítima está fechada à chave na sua masmorra – de que algum demónio rival ou deus influente não possa, ainda anular o triunfo preparado e esperado.

      Tento descrever estas coisas não para as reviver no meu presente sofrimento ilimitado, mas, sim, para separar a parte de Inferno e a parte de Céu desse estranho, terrível e enlouquecedor mundo que é o amor de uma ninfita. O animalesco e o belo fundem-se, a certo ponto, e é essa a fronteira que eu gostaria de delimitar. Creio, no entanto, que até agora fui absolutamente incapaz de o conseguir. Porquê?

      A estipulação de Direito Romano segundo a qual uma rapariga pode casar aos doze anos foi adoptada pela Igreja e ainda se mantém, tacitamente, em parte dos Estados Unidos. Casar aos quinze é legal em toda a parte. Não há nada de mal, afirmam ambos os hemisférios, quando um bruto de quarenta anos, abençoado pelo padre local e atestado de álcool, despe a fatiota fina encharcada em suor e se enfia até aos copos na juvenil noiva. «Em estimulantes climas temperados (diz uma velha revista da biblioteca desta prisão) como os de St. Louis, Chicago e Cincinnati, as raparigas atingem a maturidade cerca do fim do seu duodécimo ano». Dolores Haze nasceu a menos de quinhentos quilómetros da estimulante Cincinnati. Limitei-me a obedecer à natureza. Sou um sabujo fiel de natureza. Porquê, então, este horror de que não consigo libertar-me? Acaso a desflorei? Sensíveis e nobres damas do júri, nem sequer fui o seu primeiro amante!

      Nesse tempo, nem ela nem eu pensáramos ainda no sistema de subornos monetários que, um pouco mais tarde, havia de causar tantos estragos aos meus nervos e à moral de Lo.

      «Minha chère Dolorés! Quero proteger-te, querida, de todos os horrores que acontecem a rapariguinhas em depósitos de carvão e becos, e também, hélas, comme vous le savez trop bien, ma gentille, nas matas de mirto de bagas azuis, no mais azul dos Estios. Aconteça o que acontecer, continuarei a ser o teu guardião e, se fores boa, espero que um tribunal possa legalizar essa tutela dentro de pouco tempo. Mas esqueçamos, Dolores Haze, a chamada terminologia jurídica, terminologia que aceita como racional a expressão coabitação libidinosa e lasciva. Não sou um psicopata sexual criminoso, tomando liberdades indecentes com uma criança. O violentador foi Charles Holmes; eu sou o terapeuta, o que faz a sua diferença. Sou o teu papocas, Lo. Olha, tenho aqui um livro sério, acerca de rapariguinhas. Vê, querida, o que ele diz. Eu cito: «A rapariga normal – normal, nota –, a rapariga normal mostra-se geralmente ansiosa por agradar ao pai. Sente nele o percursor do companheiro desejado e esquivo (‘esquivo’ está muito bem, Polónio!). A mãe sensata (e a tua pobre mãe teria sido sensata, se não tivesse morrido) encorajará o companheirismo entre pai e filha, pois compreenderá – desculpa o estilo empolado – que a rapariga forma os seus ideais românticos e acerca dos homens a partir das relações com o pai.». Ora muito bem, a que relações se refere, e que relações recomenda, este alegre livro? Volto a citar: «Entre os Sicilianos, as relações sexuais entre pai e filha são consideradas naturais, e a rapariga que participa nessas relações não é olhada com desaprovação pela sociedade a que pertence.» Sou um grande admirador dos Sicilianos; são excelentes atletas, excelentes músicos, excelentes pessoas, Lo, e grandes amantes. Ainda outro dia, lemos nos jornais umas tolices acerca de um homem de meia-idade, ofensor da moral, que se declarou culpado de violação da Lei de Mann e de transportar uma menina de nove anos de um estado para outro, com fins imorais – seja o que for que isso signifique. Dolores, minha querida! Tu não tens nove anos, e sim quase treze, e não te aconselho a considerares-te minha escrava transestadual.

      Finalmente, vejamos o que acontece se tu, uma menor, fores acusada de perverter a moral de um adulto num hotel respeitável, ou, melhor, o que acontece se te queixares à polícia de que te raptei e violentei. Suponhamos que te acreditam. Uma menor de sexo feminino, que permite a uma pessoa de mais de vinte e um anos conhecê-la carnalmente, implica a sua vítima em estupro estatutário ou sodomia de segundo grau, conforme a técnica adoptada, e a pena máxima são dez anos. Portanto, vou para a cadeia. Mas que te acontece a ti, minha órfã? Bem, tu tens mais sorte, tu ficas sob a tutela do Departamento de Serviços Sociais – o que, receio, não parece muito animador. Uma matrona austera, rígida e abstémia tira-te o bâton e as roupas bonitas. Acaba-se a vadiagem! Não sei se alguma vez ouviste falar das leis referentes a crianças dependentes, abandonadas, incorrigíveis e delinquentes. Enquanto eu estiver agarrado às grades, a ti, feliz criança abandonada, serão dadas a escolher diversas residências, todas mais ou menos semelhantes: a escola correccional, o reformatório, o lar de detenção juvenil ou uma daquelas admiráveis instituições de protecção às raparigas, onde se faz tricô, cantam hinos e comem panquecas rançosas aos domingos. Irás para lá, Lolita – minha Lolita, esta Lolita deixará o seu Catulo e irá para lá como menina desobediente que é. Por palavras mais simples, se nós dois formos descobertos, tu serás examinada e institucionalizada, minha mascote, c’est tout. Viverás, a minha Lolita viverá (vem cá, minha flor trigueira) com trinta e nove outras idiotas num dormitório imundo (não, permite-me, por favor), sob a vigilância de odiosas matronas. É esta a situação, é esta a alternativa. Não te parece que, dadas as circunstâncias, Dolores Haze ficaria melhor se continuasse com o seu velho?»

      Fazendo-lhe ver tudo isto, com insistência, consegui aterrorizar Lo, a qual, apesar de uma certa vivacidade atrevida e de alguns acessos de espírito, não era uma criança tão inteligente como o seu Q.I. poderia fazer supor. Mas, se consegui estabelecer esse ambiente de segredo compartilhado e culpa compartilhada, já não fui tão bem sucedido nas minhas tentativas para a manter bem-humorada. De um modo geral, durante aquele ano louco (Agosto de 1947 a Agosto de 1948), o nosso caminho começou por uma série de ziguezagues e espirais; longe de se tratar de uma indolente partie de plaisir, a nossa viagem foi um tumor teleológico duro e disforme, cuja única raison d’être era conservar a minha companheira com uma disposição tolerável, entre um beijo e outro e a perguntar, à propos de rien, quanto tempo pensava eu que continuaríamos a viver em cabines sufocantes, a fazer porcarias juntos e sem nunca nos comportarmos como pessoas comuns.

      E eu era um amigo tão solícito, um pai tão apaixonado, um pediatra tão excelente que satisfazia todas as necessidades do corpo da minha pequenina moreno-arruivada!

      Não olhe para mim com esse ar carrancudo, leitor! O leitor deve compreender que, na posse e na escravidão de uma ninfita, o encantado viajante se encontra, por assim dizer, para além da felicidade, pois não há no mundo prazer que se compare ao de acariciar uma ninfita. É um prazer hors concours, pertence a outra classe, a outro plano de sensibilidade.

      Pois devo confessar que, conforme o estado das minhas glândulas e dos meus gânglios, podia mudar, no mesmo dia, de um pólo de insanidade para outro, do pensamento de que, por volta de 1950, teria de arranjar maneira de me livrar de uma difícil adolescente cuja qualidade nínfica se evaporara, para o pensamento de que, com paciência e sorte, talvez a levasse a dar-me uma ninfita com o meu próprio sangue nas delicadas veias, uma Lolita II, que teria oito ou nove anos cerca de 1960, quando eu ainda estaria dans la force de l’âge. Na verdade, o telescópio da minha mente – ou da minha «não mente» - era tão potente que me permitia discernir, na lonjura do tempo, um vieillard encore vert  - seria o verde da podridão? -, o extravagante, terno e babado Dr. Humbert, a praticar na supremamente encantadora Lolita III a arte de ser avô.

      Mas eu era fraco, não era sensato, a minha colegial ninfita tinha-me escravizado. Com o elemento humano a declinar, a paixão, a ternura e a tortura aumentaram. E ela aproveitou-se disso. E demonstrava ser uma negociante cruel, sempre que estava na sua mão negar-me quaisquer filtros paradisíacos estranhos, lentos e destruidores, mas sem os quais eu não podia viver muitos dias seguidos e que, dada a própria natureza langorosa do amor, não podia obter pela força. 

      Seria um velhaco se dissesse, e o leitor um tolo se acreditasse, que o abalo de perder Lolita me curou da pederosis. A minha maldita natureza não podia mudar. Mas insisto em que o mundo saiba quanto amei a minha Lolita, esta Lolita pálida e maculada e prenhe com o filho de outro, mas ainda de olhos cinzentos, ainda de pestanas fuliginosas, ainda de tom ruivo e amêndoa, ainda Carmencita, ainda minha. Changeons de vie, ma Carmen, allons vivre quelque part où nous ne serons jamais séparés.

      «Ele  despedaçou-me o coração. Tu apenas me arruinaste a vida.» Nada poderia fazer esquecer à minha Lolita a concupiscência imunda que lhe infligira. Decidira firmemente ignorar o que não podia deixar de compreender: que, para ela, não era um namorado, nem um homem sedutor, nem um camarada, nem sequer uma pessoa, e sim, apenas, dois olhos e um palmo de músculo ingurgitado – para mencionar somente as coisas mencionáveis.

      As ideias de meados deste século XX no tocante às relações criança-pais têm sido consideravelmente corrompidas pelo palavreado escolástico e pelos símbolos estandardizados do negócio psicanalítico, mas eu espero estar a dirigir-me a leitores imparciais.

      Mas a horrível conclusão a que quero chegar com todos estes argumentos é a seguinte: tornara-se gradualmente evidente à minha convencional Lolita, durante a nossa singular e bestial coabitação, que até a mais miserável das vidas familiares era melhor do que a paródia de incesto que, no fim de contas, era também o melhor que eu podia oferecer à desamparada criança.”

Excertos retirados das 318 páginas de Lolita, de Vladimir Nabokov, publicado em 1955.

 A literatura pode dizer tudo. Ponto final.

2.      La révolution sera sexuelle ou ne sera pas"  

As sociedades contemporâneas têm evoluído com a idéia de que a sexualidade entre adultos deverá ser inteiramente despenalizada, quando praticada em privado e com consentimento mútuo, livremente prestado. A actuação por meio de violência, ameaça grave ou “quando depois de, para praticar os actos, se tenha tornado a vítima inconsciente ou incapaz de resistir” será criminalizada.

Nos últimos 50 anos, a criança foi adquirindo os mesmos direitos que os adultos, deixando de ser ‘a coisa’ dos pais. A criança foi-se tornando “sujeito de direito e de direitos”, parte igual no aspecto jurídico. O uso da autoridade e a educação em geral enfrentam dificuldades novas decorrentes dessa igualdade jurídica que impõe que cada criança seja tratada como sujeito, segundo os seus próprios interesses legitimamente reconhecidos (“o interesse superior da criança” o qual preside a todas as medidas e acções que dizem respeito à criança).

Mas a criança não é um sujeito livre, porque não sabe decidir sobre os seus actos. Por isso, tem mais direitos do que o adulto – tem direito à segurança e à protecção para que se possa desenvolver harmoniosamente seguindo várias etapas.

      A criança, sujeito de direito, não pode ser transformada em objecto sexual por e para um adulto, em objecto das suas necessidades e violências. Aceita-se que a criança tem uma sexualidade própria, mas é justamente em nome do tempo e do direito aos seus prazeres que deve ser ainda mais protegida. Os crimes contra a autodeterminação sexual visam factos que só constituem “crime” pela circunstância de serem cometidos com ou em relação a um menor. Na tipificação desses crimes, a idade da criança é um elemento básico: em Portugal, actualmente, o Código Penal proíbe todos os contactos de natureza sexual exercidos por um adulto sobre um menor com idade inferior a 14 anos (esse limite poderá ir até aos 16 anos se se provar que o adolescente era inexperiente ou se se tratar de actos homossexuais e poderá ir até aos 18 anos se o menor tiver sido confiado ao adulto abusador para educação ou assistência). “Abaixo da referida idade, a criança não é livre de decidir em termos de relacionamento sexual, sendo, portanto, indiferente que os factos tenham sido praticados com ou sem a sua adesão”. (Por exemplo, em França, esse limite é 15 anos).

      Mas as leis, os saberes, os poderes, a vida desenham caminhos dispendiosos e indetermináveis. Nada é “natural”, nem mesmo a “sexualidade”. A incerteza das certezas é a cicatriz do humano. Por isso, o incómodo de todos os “moralismos”.

      A auto-proclamada “revolução sexual” do fim da década de 60 germinou num cenário em que se cruzavam já (entre muitas variáveis políticas, sociais, económicas e culturais) as seguintes idéias: as crianças e os adolescentes têm uma sexualidade própria em cada fase do seu desenvolvimento; as crianças e os adolescentes têm direito à protecção dos seus direitos e – aquisição fundamental recente (1959) -  devem ser respeitadas como “sujeitos de direito e de direitos”.

 Nessa perspectiva, “Il est interdit d’interdire” sendo um slogan estimulante, não será menos violento em muitos dos seus efeitos de sentido.

      Durante os anos 70, alguns intelectuais franceses assinaram petições denunciando o ‘escândalo’ de manter em prisão adultos que tinham mantido relações sexuais com menores de 15 anos, argumentando a “desproporção manifesta entre a qualificação de ‘crime’ e os factos, entre a lei e a realidade quotidiana” e salientando “o consentimento do menor” (Le Monde, 26 de Janeiro e Maio de 1977). Uma carta-aberta afirmava que “o que visa a ordem moral é a manutenção da submissão das crianças-menores ao poder adulto” e que “o amor das crianças é também o amor do seu corpo. O desejo e os jogos sexuais livremente consentidos têm o seu lugar nas relações entre crianças e adultos. Era isso que pensava e vivia G. R. com meninas entre 6 e 12 anos, cujo desabrochamento atestava aos olhos de todos, incluíndo dos seus pais, a felicidade que encontravam com ele” (Libération, Março de 1979).  Assinavam estes textos conhecidos filósofos, médicos, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, especialistas da infância, escritores.

      Em 2001, Daniel Cohn-Bendit envolveu-se num escândalo (“la danse du scalp”) após o aparecimento de algumas das suas memórias escritas. O jornal Libération de 1 de Março de 2001 publicou as reacções de alguns leitores. Uma carta colectiva dizia: “Nós somos as crianças da revolução sexual. Nós temos hoje filhos (...) e agradecemos à geração dos nossos pais. Escutamos os média acusar Cohn-Bendit de pedófilo. No que ele diz e descreve, muitos de nós têm a impressão de ouvir e rever os seus próprios pais. Seremos filhos de pedófilos? Muitos de nós tiveram pais que se passearam nus diante de nós, sem dúvida deixaram-nos tocar nos seus seios, no seu sexo. Ficaram felizes quando nos apaixonámos na escola, quando beijámos outras crianças na boca. (...) Que diz Cohn-Bendit? Terá evocado o desejo que teria experimentado por crianças? Terá tido a intenção de as penetrar? (...) Não. O que ele conta é o que nos deixaram viver os nossos pais – ou que nós teríamos gostado que os nossos pais nos deixassem viver – e é o que queremos viver com os nossos filhos. Crianças que têm uma vida sexual – quem o ignora hoje? – que têm desejos, que têm questões, seduções. Em resumo, não crianças objectos para os adultos, mas crianças sujeitos em todas as suas dimensões. Os anos 70 fizeram das crianças – de nós -  sujeitos. A revolução sexual – incluíndo no domínio da infância – ensinou-nos em primeiro lugar que o nosso corpo nos pertence. Que nós temos o direito de fazer dele o que quisermos, com quem nós quisermos. Que, porque tornados sujeitos, temos o direito de dizer “não” àqueles que desejariam fazer outra coisa do nosso corpo e dos nossos desejos. Acusar a revolução sexual – que fez da criança um actor, um sujeito do seu corpo – de estar na origem da pedofilia é um contra-senso semelhante ao de acusar a revolução (incluíndo a sexual) das mulheres de estar na origem das violações de que são ainda hoje vítimas. A revolução sexual ensinou primeiro às crianças, aos adolescentes, às mulheres a dizer “não”. (...) Isso é o contrário da pedofilia, da lei do silêncio. (...) Inquietamo-nos com esta sociedade de paranóia que grita ao pedófilo, mas que não se dá os meios – em palavras, em pessoas, em estruturas, em mudanças de fundo – que permitiriam verdadeiramente lutar contra essas violências e as suas origens. “

      De facto, o discurso panfletário, todo ele, pretendendo dizer mais do que diz, diz afinal menos do que diz. Os argumentos que utiliza, na forma e na substância, são genéricos com um largo espectro de aplicação. Particularmente nas relações entre adultos e crianças, a distância entre o afecto e o abuso nem sempre está definida e é, muitas vezes, em nome do afecto que os piores abusos são cometidos.

 Por isso, a literatura é valiosa. Leva-nos para o outro lado e mostra-nos onde estamos.

 E o resto? E a dor?