1.
Lolita – Patchwork
(quando
todo o discurso sobre pedofilia parece contaminado pela pressa, pela culpa e
pelo luto, o recurso à literatura é um desvio precioso. E preguiçoso também,
claro.)
“Eu era um rapaz forte e sobrevivi ; mas o veneno estava na
ferida, a ferida nunca fechou e a breve trecho dei comigo a amadurecer entre uma
civilização que permite a um homem de vinte e cinco anos cortejar uma rapariga
de dezasseis, mas não uma de doze.
Permiti que recorde aos meus leitores
que em Inglaterra, depois da aprovação da Lei das Crianças Jovens, de 1933, a
expressão «rapariga-menina» é definida como «uma menina de mais de oito e
menos de catorze anos» (depois disso, dos catorze aos dezassete anos, a definição
legal é «jovem»). Por outro lado, no Massachusetts, E.U., uma «criança
desobediente» é, tecnicamente, abrangida «entre os sete e os dezassete anos
de idade» (e, além disso, habitualmente associada com pessoas perversas ou
imorais). Hugh Broughton, polemista que viveu no reinado de Jaime I, provou que
Rahab era uma prostituta aos dez
anos de idade.(...) Mas eis mais algumas imagens. Aqui está Virgílio, que
podia cantar a ninfita em tom singelo, mas que talvez preferisse o peritónio de
um rapaz. E aqui estão duas das filhas pré-núbeis do faraó Akenaton e da
rainha Nefertite (este par real teve uma ninhada de seis), cobertas apenas por
muitos colares de contas brilhantes e repousando descontraídamente em cima de
almofadas, intactas após três mil anos, com os seus macios e castanhos corpos
de cachorrinhas, o seu cabelo curto e os seus rasgados olhos de ébano. Aqui estão
algumas noivas de dez anos, obrigadas a sentar-se no fascinum, o marfim
viril dos tempos da cultura clássica. O casamento e a coabitação antes da
puberdade ainda se praticam em certas províncias da Índia oriental. Velhos
lepchas de oitenta anos copulam com rapariguinhas de oito e ninguém se importa.
No fim de contas, Dante apaixonou-se loucamente por Beatriz quando ela tinha
nove anos e era uma cintilante garota pintada, encantadora e coberta de jóias,
de comprido vestido escarlate – e isto passou-se em 1274, em Florença, numa
festa particular efectuada no alegre mês de Maio. E, quando Petrarca se
apaixonou perdidamente pela sua Laura, ela era uma loura ninfita de dez anos a
correr ao vento, entre pólen e poeira, uma flor em fuga, na bela planície
vista dos montes de Vaucluse e descrita pelo poeta.
Mas sejamos decentes, civilizados,
Humbert Humbert esforçou-se, esforçou-se muito, para ser bom. Esforçou-se
verdadeira e sinceramente. Tinha o máximo respeito pelas crianças normais, com
a sua pureza e a sua vulnerabilidade, e em circunstância alguma interferiria
com a inocência de uma criança, se houvesse o mínimo risco de complicações.
Mas, oh!, como o seu coração batia quando, entre a inocente multidão,
descobria uma criança-demónio, enfant charmant et fourbe, olhos
sombrios, lábios brilhantes, dez anos de cadeia só por ser apanhado a olhar
para ela. E assim a vida continuava. Humbert era perfeitamente capaz de ter relações
íntimas com Eva, mas era Lilith que desejava!
A propósito, que acontecerá, mais
tarde, a estas ninfitas? Tenho feito esta pergunta a mim próprio, muitas vezes.
Será possível, neste férreo mundo em que causa e efeito se entrecruzam, será
possível que a palpitação secreta que lhes roubei não afecte o seu futuro?
Possuí-a e ela nunca o soube. Muito bem. Mas isso não teria os seus efeitos,
em qualquer altura posterior? Não teria eu, fosse como fosse, interferido no
seu destino, ao envolver a sua imagem na minha voluptuosidade? Oh, isso foi, e
continua a ser, uma fonte de grande e terrível perplexidade!
Averiguou-se que a idade média da
puberdade, nas raparigas, é de treze anos e nove meses em Nova Iorque e
Chicago. A idade individual varia, porém, dos dez anos, ou menos, até aos
dezassete. Virgínia ainda não completara catorze quando Harry Edgar a possuiu.
Ele dava-lhe lições de álgebra. Je m’imagine cela.
Passaram a lua-de-mel em Petersburgo, Florida. «Monsieur Poe-poe», como
aquele rapaz de uma das turmas de Monsieur Humbert Humbert, em Paris, chamava ao
poeta-poeta.
Sabia que me apaixonara por Lolita
para sempre, mas também sabia que ela não seria eternamente Lolita.
Completaria treze anos no dia 1 de Janeiro, dentro de cerca de dois anos
deixaria de ser uma ninfita e transformar-se-ia numa «jovem» e, depois, numa
«universitária», esse horror dos horrores. A expressão «para sempre»
referia-se apenas à minha paixão, à Lolita eterna infiltrada no meu sangue.
À Lolita cuja cavilidade ilíaca ainda não se dilatara, à Lolita que naquele
momento podia tocar e cheirar e ouvir e ver, à Lolita da voz estridente e de
farto cabelo castanho – das franjas e dos remoinhos aos lados e dos caracóis
na nuca, do pescoço quente e pegajoso e do vocabulário vulgar – a essa
Lolita, à minha Lolita que o pobre Catulo perderia para sempre.
De súbito, cavalheiros do júri,
senti um sorriso dostoievskiano nascer (através da careta que me contorcia os lábios)
como um sol distante e terrível. Imaginei (em condições de nova e perfeita
visibilidade) todas as carícias casuais que o marido da mãe poderia fazer,
prodigamente, à sua Lolita. Apertá-la-ia a mim três vezes por dia, todos os
dias. Libertar-me-ia de todos os tormentos, seria um homem saudável. «Segurar-te
levemente sobre um meigo joelho e depositar na tua face macia um beijo
paternal...» Bem lido, Humbert!
De modo que Humbert, o Cubo, planeou e
sonhou – e o sol vermelho do desejo e da decisão (as duas coisas que criam um
mundo vivo) foi subindo cada vez mais alto, enquanto, numa sucessão de
varandas, numa sucessão de libertinos, de taça cintilante na mão, brindava à
felicidade de noites passadas e futuras.
Começara, com uma emoção
incestuosa, a considerar Lolita minha filha.
Senhoras e senhores do júri, a
maioria dos delinquentes sexuais
que anelam por qualquer relação física palpitante e entrecortada de suaves
gemidos, por qualquer relação física, mas não forçosamente coital, com uma
rapariguinha, são inofensivos, inadaptados, passivos e tímidos desconhecidos,
que só pedem à comunidade que lhes consinta o seu chamado comportamento
aberrante, praticamente inofensivo, que os deixe praticar os seus pequenos,
apaixonados, húmidos e discretos actos de desvio sexual sem que a polícia e a
sociedade lhes caiam em cima. Não somos demónios sexuais! Não violentamos,
como alguns bons soldados violentam. Somos cavalheiros infelizes, brandos, de
olhar humilde, suficientemente bem integrados para sabermos controlar os nossos
impulsos na presença de adultos, mas dispostos a dar anos e anos de vida pela
possibilidade de tocar numa ninfita. Não somos, positivamente, assassinos.
Permiti que me explique. Não me sentia exageradamente preocupado com as
suas insinuações auto-acusatórias. Continuava firmemente resolvido a obedecer
à minha política de poupar a sua pureza, agindo apenas pela calada da noite,
servindo-me apenas de um corpinho nu completamente anestesiado. Contenção e
reverência continuavam a ser o meu lema – mesmo que essa «pureza» (diga-se
de passagem que por completo desmistificada pela ciência moderna) tivesse sido
ligeiramente conspurcada por qualquer experiência erótica juvenil, sem dúvida
homossexual, no maldito acampamento. Claro que, à minha maneira bota-de-elástico
e europeia, eu, Jean-Jacques Humbert, aceitara como coisa certa, ao conhecê-la,
que estava tão inviolada quanto a ideia estereotípica de «criança normal»
tem permanecido desde o lamentado fim do Mundo Antigo a.C. e das suas
fascinantes práticas. Na nossa era esclarecida não estamos rodeados por
florinhas escravas que possam ser despreocupadamente colhidas entre os negócios
e o banho, como acontecia no tempo dos Romanos. Toda a questão se resume no
facto de o antigo elo entre o mundo adulto e o mundo infantil ter sido
completamente cortado nos nossos tempos, por novos costumes e leis. Apesar de
ter adquirido uma besuntadela de psiquiatria e trabalho social, a verdade é que
sabia muito pouco acerca de crianças. No fim de contas, Lolita tinha apenas
doze anos e, fossem quais fossem as concessões que eu fizesse ao tempo e ao
lugar – mesmo tendo em conta o rude comportamento dos colegiais americanos –
continuava convencido de o que quer que acontecesse entre esses fedelhos
imprudentes tinha lugar numa idade mais avançada e num ambiente diferente.
Portanto (para reatar o fio desta explicação) o moralista existente em mim
contornou a dificuldade agarrando-se a ideias convencionais do que uma garota de
doze anos devia ser. O terapeuta infantil também existente em mim (um impostor,
como a maioria deles, mas não importa) regurgitava tretas neofreudianas e
imaginava uma Dolly sonhadora e exagerada no período de «latência» feminil.
Finalmente, o sensualista também existente em mim (um grande monstro insano) não levantava quaisquer objecções a uma certa depravação da
sua presa. Mas algures, atrás do júbilo furioso, sombras desnorteadas
trocavam, por assim dizer, impressões – e o que eu lamento é não lhes ter
dado ouvidos! Seres humanos, esperai! Eu devia ter compreendido que Lolita
já demonstrara ser
algo muito diferente da inocente Annabel, e que o demónio nínfico que
respirava através de todos os poros da infortunada criança, que eu preparara
para meu secreto deleite, tornaria o segredo impossível e o deleite fatal. Eu
devia saber (por sinais que me tinham sido feitos por algo que havia em Lolita
– pela verdadeira Lolita criança ou por qualquer anjo desvairado atrás dela)
que do esperado êxtase só poderia advir mágoa e horror. Oh, sublimes
cavalheiros do júri.
Sim, porque o aspecto da luxúria é
sempre soturno; a luxúria nunca tem a certeza absoluta – nem mesmo quando a
aveludada vítima está fechada à chave na sua masmorra – de que algum demónio
rival ou deus influente não possa, ainda anular o triunfo preparado e esperado.
Tento descrever estas coisas não para
as reviver no meu presente sofrimento ilimitado, mas, sim, para separar a parte
de Inferno e a parte de Céu desse estranho, terrível e enlouquecedor mundo que
é o amor de uma ninfita. O animalesco e o belo fundem-se, a certo ponto, e é
essa a fronteira que eu gostaria de delimitar. Creio, no entanto, que até agora
fui absolutamente incapaz de o conseguir. Porquê?
A estipulação de Direito Romano
segundo a qual uma rapariga pode casar aos doze anos foi adoptada pela Igreja e
ainda se mantém, tacitamente, em parte dos Estados Unidos. Casar aos quinze é
legal em toda a parte. Não há nada de mal, afirmam ambos os hemisférios,
quando um bruto de quarenta anos, abençoado pelo padre local e atestado de álcool,
despe a fatiota fina encharcada em suor e se enfia até aos copos na juvenil
noiva. «Em estimulantes climas temperados (diz uma velha revista da biblioteca
desta prisão) como os de St. Louis, Chicago e Cincinnati, as raparigas atingem
a maturidade cerca do fim do seu duodécimo ano». Dolores Haze nasceu a menos
de quinhentos quilómetros da estimulante Cincinnati. Limitei-me a obedecer à
natureza. Sou um sabujo fiel de natureza. Porquê, então, este horror de que não
consigo libertar-me? Acaso a desflorei? Sensíveis e nobres damas do júri, nem
sequer fui o seu primeiro amante!
Nesse tempo, nem ela nem eu pensáramos
ainda no sistema de subornos monetários que, um pouco mais tarde, havia de
causar tantos estragos aos meus nervos e à moral de Lo.
«Minha chère Dolorés! Quero
proteger-te, querida, de todos os horrores que acontecem a rapariguinhas em depósitos
de carvão e becos, e também, hélas, comme vous le savez trop bien, ma
gentille, nas matas de mirto de bagas azuis, no mais azul dos Estios. Aconteça
o que acontecer, continuarei a ser o teu guardião e, se fores boa, espero que
um tribunal possa legalizar essa tutela dentro de pouco tempo. Mas esqueçamos,
Dolores Haze, a chamada terminologia jurídica, terminologia que aceita como
racional a expressão coabitação libidinosa e lasciva. Não sou um psicopata
sexual criminoso, tomando liberdades indecentes com uma criança. O violentador
foi Charles Holmes; eu sou o terapeuta, o que faz a sua diferença. Sou o teu
papocas, Lo. Olha, tenho aqui um livro sério, acerca de rapariguinhas. Vê,
querida, o que ele diz. Eu cito: «A rapariga normal – normal, nota –, a
rapariga normal mostra-se geralmente ansiosa por agradar ao pai. Sente nele o
percursor do companheiro desejado e esquivo (‘esquivo’ está muito bem, Polónio!).
A mãe sensata (e a tua pobre mãe teria sido sensata, se não tivesse morrido)
encorajará o companheirismo entre pai e filha, pois compreenderá – desculpa
o estilo empolado – que a rapariga forma os seus ideais românticos e acerca
dos homens a partir das relações com o pai.». Ora muito bem, a que relações
se refere, e que relações recomenda, este alegre livro? Volto a citar: «Entre
os Sicilianos, as relações sexuais entre pai e filha são consideradas
naturais, e a rapariga que participa nessas relações não é olhada com
desaprovação pela sociedade a que pertence.» Sou um grande admirador dos
Sicilianos; são excelentes atletas, excelentes músicos, excelentes pessoas, Lo,
e grandes amantes. Ainda outro dia, lemos nos jornais umas tolices acerca de um
homem de meia-idade, ofensor da moral, que se declarou culpado de violação da
Lei de Mann e de transportar uma menina de nove anos de um estado para outro,
com fins imorais – seja o que for que isso signifique. Dolores, minha querida!
Tu não tens nove anos, e sim quase treze, e não te aconselho a considerares-te
minha escrava transestadual.
Finalmente, vejamos o que acontece se
tu, uma menor, fores acusada de perverter a moral de um adulto num hotel respeitável,
ou, melhor, o que acontece se te queixares à polícia de que te raptei e
violentei. Suponhamos que te acreditam. Uma menor de sexo feminino, que permite
a uma pessoa de mais de vinte e um anos conhecê-la carnalmente, implica a sua vítima
em estupro estatutário ou sodomia de segundo grau, conforme a técnica
adoptada, e a pena máxima são dez anos. Portanto, vou para a cadeia. Mas que
te acontece a ti, minha órfã? Bem, tu tens mais sorte, tu ficas sob a tutela
do Departamento de Serviços Sociais – o que, receio, não parece muito
animador. Uma matrona austera, rígida e abstémia tira-te o bâton e as
roupas bonitas. Acaba-se a vadiagem! Não sei se alguma vez ouviste falar das
leis referentes a crianças dependentes, abandonadas, incorrigíveis e
delinquentes. Enquanto eu estiver agarrado às grades, a ti, feliz criança
abandonada, serão dadas a escolher diversas residências, todas mais ou menos
semelhantes: a escola correccional, o reformatório, o lar de detenção juvenil
ou uma daquelas admiráveis instituições de protecção às raparigas, onde se
faz tricô, cantam hinos e comem panquecas rançosas aos domingos. Irás para lá,
Lolita – minha Lolita, esta Lolita deixará o seu Catulo e irá
para lá como menina desobediente que é. Por palavras mais simples, se nós
dois formos descobertos, tu serás examinada e institucionalizada, minha
mascote, c’est tout. Viverás, a minha Lolita viverá (vem cá, minha
flor trigueira) com trinta e nove outras idiotas num dormitório imundo (não,
permite-me, por favor), sob a vigilância de odiosas matronas. É esta a situação,
é esta a alternativa. Não te parece que, dadas as circunstâncias, Dolores
Haze ficaria melhor se continuasse com o seu velho?»
Fazendo-lhe ver tudo isto, com insistência, consegui aterrorizar Lo, a
qual, apesar de uma certa vivacidade atrevida e de alguns acessos de espírito,
não era uma criança tão inteligente como o seu Q.I. poderia fazer supor. Mas,
se consegui estabelecer esse ambiente de segredo compartilhado e culpa
compartilhada, já não fui tão bem sucedido nas minhas tentativas para a
manter bem-humorada. De um modo geral, durante aquele ano louco (Agosto de 1947
a Agosto de 1948), o nosso caminho começou por uma série de ziguezagues e
espirais; longe de se tratar de uma indolente partie de plaisir, a nossa
viagem foi um tumor teleológico duro e disforme, cuja única raison d’être
era conservar a minha companheira com uma disposição tolerável, entre um
beijo e outro e a perguntar, à propos de rien, quanto tempo pensava eu
que continuaríamos a viver em cabines sufocantes, a fazer porcarias juntos e
sem nunca nos comportarmos como pessoas comuns.
E eu era um amigo tão solícito, um
pai tão apaixonado, um pediatra tão excelente que satisfazia todas as
necessidades do corpo da minha pequenina moreno-arruivada!
Não olhe para mim com esse ar
carrancudo, leitor! O leitor deve compreender que, na posse e na escravidão de
uma ninfita, o encantado viajante se encontra, por assim dizer, para além da
felicidade, pois não há no mundo prazer que se compare ao de acariciar uma
ninfita. É um prazer hors concours, pertence a outra classe, a outro
plano de sensibilidade.
Pois devo confessar que, conforme o
estado das minhas glândulas e dos meus gânglios, podia mudar, no mesmo dia, de
um pólo de insanidade para outro, do pensamento de que, por volta de 1950,
teria de arranjar maneira de me livrar de uma difícil adolescente cuja
qualidade nínfica se evaporara, para o pensamento de que, com paciência e
sorte, talvez a levasse a dar-me uma ninfita com o meu próprio sangue nas
delicadas veias, uma Lolita II, que teria oito ou nove anos cerca de 1960,
quando eu ainda estaria dans la force de l’âge. Na verdade, o telescópio
da minha mente – ou da minha «não mente» - era tão potente que me permitia
discernir, na lonjura do tempo, um vieillard encore vert
- seria o verde da podridão? -, o extravagante, terno e babado Dr.
Humbert, a praticar na supremamente encantadora Lolita III a arte de ser avô.
Mas eu era fraco, não era sensato, a
minha colegial ninfita tinha-me escravizado. Com o elemento humano a declinar, a
paixão, a ternura e a tortura aumentaram. E ela aproveitou-se disso. E
demonstrava ser uma negociante cruel, sempre que estava na sua mão negar-me
quaisquer filtros paradisíacos estranhos, lentos e destruidores, mas sem os
quais eu não podia viver muitos dias seguidos e que, dada a própria natureza
langorosa do amor, não podia obter pela força.
Seria um velhaco se dissesse, e o leitor um tolo se acreditasse, que o
abalo de perder Lolita me curou da pederosis. A minha maldita natureza não
podia mudar. Mas insisto em que o mundo saiba quanto amei a minha Lolita, esta
Lolita pálida e maculada e prenhe com o filho de outro, mas ainda de olhos
cinzentos, ainda de pestanas fuliginosas, ainda de tom ruivo e amêndoa, ainda
Carmencita, ainda minha. Changeons
de vie, ma Carmen, allons vivre quelque part où nous ne serons jamais séparés.
«Ele despedaçou-me o coração. Tu apenas me arruinaste a vida.»
Nada poderia fazer esquecer à minha Lolita a concupiscência imunda que lhe
infligira. Decidira firmemente ignorar o que não podia deixar de compreender:
que, para ela, não era um namorado, nem um homem sedutor, nem um camarada, nem
sequer uma pessoa, e sim, apenas, dois olhos e um palmo de músculo ingurgitado
– para mencionar somente as coisas mencionáveis.
As ideias de meados deste século XX
no tocante às relações criança-pais têm sido consideravelmente corrompidas
pelo palavreado escolástico e pelos símbolos estandardizados do negócio
psicanalítico, mas eu espero estar a dirigir-me a leitores imparciais.
Mas a horrível conclusão a que quero
chegar com todos estes argumentos é a seguinte: tornara-se gradualmente
evidente à minha convencional Lolita, durante a nossa singular e bestial
coabitação, que até a mais miserável das vidas familiares era melhor do que
a paródia de incesto que, no fim de contas, era também o melhor que eu podia
oferecer à desamparada criança.”
Excertos
retirados das 318 páginas de Lolita, de Vladimir Nabokov, publicado em
1955.
A
literatura pode dizer tudo. Ponto final.
2.
“La révolution sera sexuelle ou ne sera pas"
As
sociedades contemporâneas têm evoluído com a idéia de que a sexualidade
entre adultos deverá ser inteiramente despenalizada, quando praticada em
privado e com consentimento mútuo, livremente prestado. A actuação por meio
de violência, ameaça grave ou “quando depois de, para praticar os actos, se
tenha tornado a vítima inconsciente ou incapaz de resistir” será
criminalizada.
Nos
últimos 50 anos, a criança foi adquirindo os mesmos direitos que os adultos,
deixando de ser ‘a coisa’ dos pais. A criança foi-se tornando “sujeito de
direito e de direitos”, parte igual no aspecto jurídico. O uso da autoridade
e a educação em geral enfrentam dificuldades novas decorrentes dessa igualdade
jurídica que impõe que cada criança seja tratada como sujeito, segundo os
seus próprios interesses legitimamente reconhecidos (“o interesse superior da
criança” o qual preside a todas as medidas e acções que dizem respeito à
criança).
Mas
a criança não é um sujeito livre, porque não sabe decidir sobre os seus
actos. Por isso, tem mais direitos do que o adulto – tem direito à segurança
e à protecção para que se possa desenvolver harmoniosamente seguindo várias
etapas.
A criança, sujeito de direito, não
pode ser transformada em objecto sexual por e para um adulto, em objecto das
suas necessidades e violências. Aceita-se que a criança tem uma sexualidade própria,
mas é justamente em nome do tempo e do direito aos seus prazeres que deve ser
ainda mais protegida. Os crimes contra a autodeterminação sexual visam factos
que só constituem “crime” pela circunstância de serem cometidos com ou em
relação a um menor. Na tipificação desses crimes, a idade da criança é um
elemento básico: em Portugal, actualmente, o Código Penal proíbe todos os
contactos de natureza sexual exercidos por um adulto sobre um menor com idade
inferior a 14 anos (esse limite poderá ir até aos 16 anos se se provar que o
adolescente era inexperiente ou se se tratar de actos homossexuais e poderá ir
até aos 18 anos se o menor tiver sido confiado ao adulto abusador para educação
ou assistência). “Abaixo da referida idade, a criança não é livre de
decidir em termos de relacionamento sexual, sendo, portanto, indiferente que os
factos tenham sido praticados com ou sem a sua adesão”. (Por exemplo, em França,
esse limite é 15 anos).
Mas as leis, os saberes, os poderes, a
vida desenham caminhos dispendiosos e indetermináveis. Nada é “natural”,
nem mesmo a “sexualidade”. A incerteza das certezas é a cicatriz do humano.
Por isso, o incómodo de todos os “moralismos”.
A auto-proclamada “revolução
sexual” do fim da década de 60 germinou num cenário em que se cruzavam já
(entre muitas variáveis políticas, sociais, económicas e culturais) as
seguintes idéias: as crianças e os adolescentes têm uma sexualidade própria
em cada fase do seu desenvolvimento; as crianças e os adolescentes têm direito
à protecção dos seus direitos e – aquisição fundamental recente (1959) -
devem ser respeitadas como “sujeitos de direito e de direitos”.
Nessa
perspectiva, “Il est interdit d’interdire” sendo um slogan
estimulante, não será menos violento em muitos dos seus efeitos de sentido.
Durante os anos 70, alguns
intelectuais franceses assinaram petições denunciando o ‘escândalo’ de
manter em prisão adultos que tinham mantido relações sexuais com menores de
15 anos, argumentando a “desproporção manifesta entre a qualificação de
‘crime’ e os factos, entre a lei e a realidade quotidiana” e salientando
“o consentimento do menor” (Le Monde, 26 de Janeiro e Maio de 1977). Uma
carta-aberta afirmava que “o que visa a ordem moral é a manutenção da
submissão das crianças-menores ao poder adulto” e que “o amor das crianças
é também o amor do seu corpo. O desejo e os jogos sexuais livremente
consentidos têm o seu lugar nas relações entre crianças e adultos. Era isso
que pensava e vivia G. R. com meninas entre 6 e 12 anos, cujo desabrochamento
atestava aos olhos de todos, incluíndo dos seus pais, a felicidade que
encontravam com ele” (Libération, Março de 1979).
Assinavam estes textos conhecidos filósofos, médicos, psiquiatras, psicólogos,
psicanalistas, especialistas da infância, escritores.
Em 2001, Daniel Cohn-Bendit
envolveu-se num escândalo (“la danse du scalp”) após o aparecimento
de algumas das suas memórias escritas. O jornal Libération de 1 de Março de
2001 publicou as reacções de alguns leitores. Uma carta colectiva dizia: “Nós
somos as crianças da revolução sexual. Nós temos hoje filhos (...) e
agradecemos à geração dos nossos pais. Escutamos os média acusar Cohn-Bendit
de pedófilo. No que ele diz e descreve, muitos de nós têm a impressão de
ouvir e rever os seus próprios pais. Seremos filhos de pedófilos? Muitos de nós
tiveram pais que se passearam nus diante de nós, sem dúvida deixaram-nos tocar
nos seus seios, no seu sexo. Ficaram felizes quando nos apaixonámos na escola,
quando beijámos outras crianças na boca. (...) Que diz Cohn-Bendit? Terá evocado o desejo que teria
experimentado por crianças? Terá tido a intenção de as penetrar? (...) Não.
O que ele conta é o que nos deixaram viver os nossos pais – ou que nós teríamos
gostado que os nossos pais nos deixassem viver – e é o que queremos viver com
os nossos filhos. Crianças que têm uma vida sexual – quem o ignora hoje? –
que têm desejos, que têm questões, seduções. Em resumo, não crianças
objectos para os adultos, mas crianças sujeitos em todas as suas dimensões. Os
anos 70 fizeram das crianças – de nós -
sujeitos. A revolução sexual – incluíndo no domínio da infância
– ensinou-nos em primeiro lugar que o nosso corpo nos pertence. Que nós temos
o direito de fazer dele o que quisermos, com quem nós quisermos. Que, porque
tornados sujeitos, temos o direito de dizer “não” àqueles que desejariam
fazer outra coisa do nosso corpo e dos nossos desejos. Acusar a revolução
sexual – que fez da criança um actor, um sujeito do seu corpo – de estar na
origem da pedofilia é um contra-senso semelhante ao de acusar a revolução (incluíndo
a sexual) das mulheres de estar na origem das violações de que são ainda hoje
vítimas. A revolução sexual ensinou primeiro às crianças, aos adolescentes,
às mulheres a dizer “não”. (...) Isso é o contrário da pedofilia, da lei
do silêncio. (...) Inquietamo-nos com esta sociedade de paranóia que grita ao
pedófilo, mas que não se dá os meios – em palavras, em pessoas, em
estruturas, em mudanças de fundo – que permitiriam verdadeiramente lutar
contra essas violências e as suas origens. “
De
facto, o discurso panfletário, todo ele, pretendendo dizer mais do que diz, diz
afinal menos do que diz. Os argumentos que utiliza, na forma e na substância, são
genéricos com um largo espectro de aplicação. Particularmente nas relações
entre adultos e crianças, a distância entre o afecto e o abuso nem sempre está
definida e é, muitas vezes, em nome do afecto que os piores abusos são
cometidos.
Por
isso, a literatura é valiosa. Leva-nos para o outro lado e mostra-nos onde
estamos.
E
o resto? E a dor?