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J.Godinho.:
Enquanto pensávamos que iríamos viver num tempo de revolução das
sexualidades, de libertação das sexualidades, num tempo em que as
sexualidades eram usadas para tudo e mais qualquer coisa, para definir
as identidades, para redefinir a nossa ligação ao corpo, surgiu, de
repente uma contr
ac
orrente cultural fortíssima.
Uma contr
ac
orrente em que parecem ter
explodido as possibilidades mais perigosas dessas sexualidades antes
tidas por libertadoras. O que é que pode explicar essa contr
ac
orrente?
J.Gil.:
O que pode explicar isso é muito difícil de dizer porque o que
podemos constatar é precisamente o f
ac
to
global e talvez haja aí
uma causa. Um f
ac
to global que se estende a muitos
domínios e não só ao da sexualidade. Parece-me que o que nós
podemos descrever neste processo (não
apontar como causa ) é um
fenómeno que aparece em várias circunstâncias históricas, de vez
em quando surge, é uma espécie de antinomia que se cria com
representações m
ac
roscópicas do bem e do mal. Se
você não é pelo bem , assim definido, então é pelo mal e não há
outra maneira de pensar. Choca sempre o tipo de exemplos que vamos
dar. Vamos pensar em três. O primeiro exemplo é o dos direitos
humanos, em segundo lugar a pedofilia e em terceiro lugar a
sexualidade de que falou. Para ser rápido, repare, quando aparece um
horror m
ac
roscopicamente pensado como o gulag,
com os cinquenta milhões, ou sessenta ou trinta, não interessa,
milhões de mortos no gulag, ruiu a possibilidade de se
pensar num tipo de liberdade que não fosse jurídico-universal e
criou-se então a ideia ou ...ressuscitou-se , retrabalhou-se
a ideia de direitos humanos. Então os direitos humanos começaram
a ser uma arma, uma arma contra a qual não se pode ir. Quem é que é
contra os direitos humanos? Se você é contra os direitos humanos é
um bárbaro. Mais! Os direitos humanos são uma arma que têm uma
certa eficácia. O que é paradoxal, porque é um princípio que no
fundo serve para pouco e através dos direitos humanos, como você
sabe, ocultam-se as práticas
mais fraudulentas, mais corruptas no exercício prático da ajuda, em
nome dos direitos humanos. Serve, por exemplo,
aos povos desfavorecidos ou contra as ditaduras, etc. É impossível
não ser pelos direitos humanos, simplesmente nós deixamos de poder
pensar um outro tipo de direitos, os direitos do indivíduo na nossa
sociedade que eventualmente se opõem às leis que regem a sociedade
democrática. Defender os direitos dos indivíduos seria então
opor-se à democr
ac
ia, e defender as ditaduras, o
fundamentalismo, a intolerância, etc. Fomos encurralados, entalados
num double bind. Pego no
segundo exemplo, e estou a ser muito sumário e rápido para que se
compreenda melhor. A pedofilia é um exemplo brulant.
A pedofilia ... em Portugal, na França, na Bélgica, etc... a
pedofilia tornou-se crime mediatizado. Criou-se uma imagem m
ac
roscópica desse crime , quer
dizer temos aqui a barbárie perfeita. Se você não é contra a
pedofilia , então você é um criminoso e está a defender os pedófilos
e deixa de poder pensar na própria sexualidade da criança. Deixa-se
de poder pensar numa formação da sexualidade da criança em que o
adulto intervenha sem que haja... tudo o que seja violência, etc. Os
conceitos aí são extremamente fugidios,
deve-se pensar esse fugidio dos conceitos, o que é compl
ac
ência, o que é condescendência,
o sentimento da criança ou não, quer dizer,
o que é o abuso... Repare, nada disso é definido como deve
ser e pensado pela lei. Deixa-se de poder pensar. Criámos uma
antinomia entre o bem e o
mal, e você é entalado entre os seus dois pólos. Estamos a regredir
em relação ao Freud . Isto corresponde à nossa sociedade
normalizada portuguesa e eu
ac
ho isso gravíssimo. Se você
perguntar, mas então é pelos pedófilos? Eu digo: - Mas não é essa
a questão, claro! Contudo, sou
levado, nas condições
ac
tuais, a dizer apenas uma parte do
que penso – e penso-o realmente – a saber que a violência pedófila
feita a crianças – às vezes com dois meses, imagine – é um
crime hediondo, horrível; que as redes pedófilas deveriam ser
persistentemente perseguidas, destruídas, condenadas – e sabe que não
é o que
ac
ontece. Então? O discurso médio
ou mediatizado sobre a pedofilia está armadilhado: por um lado
condena-se verbalmente, e o crime mundial – que chega a homicídios
de crianças, não falando em todo o tipo de violências e
brutalidades – continua impune; por outro lado, deixa-se de pensar
na sexualidade das crianças – como se elas não tivessem
sexualidade! – cria-se uma barreira de silêncio a qual,
precisamente, vai permitir o discurso médio e a impunidade dos pedófilos.
Como se, agora, falar da sexualidade das crianças fosse um apelo à
pedofilia… Não falar nisso é, pois, o que permite supostamente
condená-la.
J.Godinho.:
Essa é que é a questão...
J.Gil:
... a questão piège. Isto é, uma questão armadilhada...
J.Godinho.:
Isto é portanto uma questão armadilhada?
J.Gil.:
Isto é completamente armadilhado percebe? Porque se torna
evidente que, tal como as coisas estão, não se pode pensar de outro
modo. Mas eu não estou de
ac
ordo como as coisas estão.
Simplesmente, quero pensar uma sexualidade extremamente forte e
extremamente alegre e como potência de vida que é extraordinária
nas crianças e nós deixámos de saber como lidar com isso, com a
nossa própria sexualidade, percebe? É verdade que existe a psicanálise.
A psicanálise que, como dizia Foucault e é impossível pensar nestas
coisas sem pensar no
Foucault, ajuda os psicólogos
a elevarem-se ao estatuto de possuidores
de direito do saber da sexualidade, que é o saber da personalidade da
criança. Aí o Freud foi um grande descobridor e um grande entalador
do pensamento quando car
ac
terizou a criança como um
perverso polimorfo. Ora, essa concepção traz
certos perigos para a relação do adulto com a criança que é
uma relação erótica, não esqueçamos isso. Estou-me
a lembrar, nos escritos do Foucault, de uma petição, de um
homossexual, Hocquengheim, que já morreu, e do próprio Foucault,
mais outros, e assinada pela Françoise Dolto, católica, psicanalista
de crianças, talvez a mulher que no mundo melhor conhecia as crianças
e que assinou contra uma lei que fazia...
J.Godinho.:
...posição essa que está a ser alvo de grande polémica em França!
J.Gil:
Portanto, e estou de
ac
ordo consigo, como responder à
sua pergunta? Parece-me que há circunstâncias em que -
quando se criam imagens, através de discursos,
imagens m
ac
roscópicas antinómicas do bem e
do mal – o pensamento deixa de existir.
J. Godinho: Eu
gostaria de tentar perceber um
pouco esse piège do binarismo que perante determinadas imagens ou
ac
ontecimentos do horror como explicou não permite uma terceira
alternativa. Não permite uma terceira via. O que é que fará com
surjam estes fenómenos tão
fortes que provocam armadilhas no pensamento? Será por, em relação
a eles, termos radicalizado de tal forma o pensamento para um dos
extremos que o outro depois irrompe com violência não deixando criar
essa terceira alternativa? Ou seja, será que o discurso liberal
sobre sexualidade
de há vinte, trinta anos atrás não esqueceu as possibilidades mais
perigosas e deixou que elas agora irrompessem com violência incontrolável?
J.
Gil: É certamente verdade o que diz. Acho é que há outros f
ac
tores banais mas que modificaram
muito as coisas. Citemo-los; primeiro
a pílula, depois a sida. Isso modificou os comportamentos sexuais,
como toda a gente sabe. É a banalidade mesmo. Agora o que me parece
é que nós temos de pensar um outro aspecto que contribui para esse
fenómeno. É o da mediatização. E na mediatizaçao eu quase que
incluo o fenómeno da erotização ou da cinematografia erótico-hollywoodiana
( não estou a falar na pornografia) que cria precisamente uma imagem
em que a sexualidade tem uma relação com o poder. Isso obriga a um
certo controlo dos corpos e depois tem aspectos complexos, quer dizer,
o nosso corpo, não só o nosso corpo mas o nosso espaço de corpo, o
nosso espaço de pensamento, está-se cada vez mais a retrair, como se
diz, a encolher. Enquanto há uma espécie de publicitação máxima
do espaço privado, o espaço privado vai-se recolhendo na sua
pequenina concha. Ora, o que é que
ac
ontece?
Acontece, aí, um efeito de poder sobre a sexualidade. Há um
desaparecimento dos corpos e há ao mesmo tempo uma espécie de
procura desesperada do que é ainda um corpo, e do que é uma
identidade corporal através de um certo tipo de sexualidade e de
erotismo que passa no cinema, como passa nos media, como passa na
publicidade. Quer dizer, é ao mesmo tempo um duplo efeito de
desaparecimento do corpo e de aparecimento de uma imagem de um corpo,
supostamente erotizado que não o é; efeito de erotização e
procura pelo espectador, por todos nós, de um certo tipo de
realidade corporal última que se terá refugiado no sexo, naquilo que
nós chamamos a sexualidade e que quase se reduz à genitalização do
sexo, quando o sexo não é isso.
J. Godinho: Há
uma espécie de efeito de aprisionamento das sexualidades numa imagem
do corpo, numa fortíssima imagem do corpo?
Uma imagem que não
potência o corpo próprio mas que
o reduz?
J.
Gil: Absolutamente. Essa imagem combina sexo e violência. As
imagens de violência, como as de sexo, pretendem, paradoxalmente,
superar a anestesia dos corpos, indo para além do limiar de
insensibilidade a que eles chegaram. Mas contribuem ainda mais para a
anestesia emocional, para a neutralização do espectador diante do
sofrimento dos outros, etc. O que leva a que se levante mais a
fasquia, e a violência e o sexo violento atinjam graus in
ac
reditáveis. Mas ainda não vimos
tudo… Às vezes, surgem outras contra-contra-correntes. Eu queria
lembrar-lhe aqui, não sei se viu um filme que vai contra, não é uma
terceira via como disse, é outra coisa. É uma diferença que é
criada em relação a este tipo de corpos, a este tipo de erotismo, a
este tipo de sexualidade. É um filme que teve um grande sucesso na
Europa, em França, em Paris, e não foi através da publicidade, foi
pelo telefone árabe como eles dizem, quer dizer “de boca a
orelha”. Chamava-se, chama-se Café
Bagdade, não sei se viu, em que o erotismo passava, um erotismo
fortíssimo passava pelo
corpo de uma mulher gorda, mas maravilhosamente gorda. Aquilo é tão
bem feito que o corpo e a vida são erotizados em todos aqueles homens
e mulheres que viviam numa espécie de motel no deserto. Tem que ver o
filme. É um filme maravilhoso, maravilhoso, realizado há uns oito ou
dez anos.
J. Godinho: Mas
não deixa de ser estranho e curioso que entre todas as imagens possíveis
do corpo, como esta que referiu, do corpo gordo e todas terão um erótismo
bastante forte, se tenham, todas elas, reduzido a esta imagem do corpo
hercúleo, limpo de impurezas, perfeito, que hoje em dia vigora com um
efeito absolutamente demolidor sobre a identidade e a subjectividade.
O que impôs esta imagem sobre todas as outras?
J.
Gil: Isto tem a ver com a linguagem e tem a ver com o tipo de
trabalho a que os corpos são sujeitos e aí temos que seguir em parte
o método foucaultiano. Quer dizer o trabalho
ac
tual, é um trabalho que implica a
produção de uma certa subjectividade. Onde fica o corpo?
O que é o nosso trabalho hoje? Não estamos a falar de
Portugal que é uma sociedade, para empregar esta tipologia
foucaultiana/deleuziana, ainda disciplinária e já
de controlo, em superposição.
Suponhamos uma sociedade de controlo, ou seja uma sociedade dominada
pelas novas tecnologias. O que é o corpo aí?
Como dizem todas as utopias das novas tecnologias que aparecem,
o corpo desaparece, passa a ser virtual. Que é o corpo que está
à frente de um computador, e desaparece ? É um instrumento. Você
poderia ter próteses e não dedos. E sabe que há um novo fenómeno
social: jovens que se
fecham em casa diante do computador, milhares de jovens no Japão. Já
há isso também nos Estados Unidos. Bem,
o corpo aí desaparece. Para responder à sua pergunta, de onde
é que vem a produção dessa subjectividade, de onde vem o
desaparecimento do corpo? Vem de uma, digamos, para empregar uma
expressão antiga, de uma «estrutura de produção» que tem a ver
com o universo das novas tecnologias, que vai ser o futuro. Universo
no qual não haverá lugar para
o corpo . A menos que
haja, da nossa parte, da
parte das pessoas que podem pensar viver com um corpo, um corpo real,
uma luta contra esse desaparecimento do espaço real do corpo, que é
um espaço que tem a ver com a terra, que tem a ver com as cidades,
que tem haver com o espaço real tal como o respiramos, não é? A
produção de uma imagem do corpo hercúleo, perfeito, é uma re
ac
ção ao desaparecimento do corpo,
mais a influência kitsch, e de todas as técnicas corporais de
bodybuilding, etc. Ao corpo fragilizado, somatizador de todas as doenças
psi de hoje, contrapõe-se a imagem de um corpo invulnerável,
imortal, fonte inesgotável de energia. Mais um double
bind que se nos propõe: ou és
hercúleo, sexy, etc, ou serás doente, anémico, incapaz de
“fazer f
ac
e”, to cope – ou seja, um
looser, um nada.
J. Godinho: Existe sobre a experiência
um equilíbrio que
o corpo concreto , em todas as suas dimensões, consegue estabelecer e
que este outro “corpo”, disperso, virtual, recomposto através das
imagem fortes, não conseguirá?
J.
Gil: Eu, sobre isso, tenho uma outra ideia,
tenho uma ideia um bocado diferente,
ac
ho que a noção de corpo próprio
é uma noção que se arrisca a ser pouco frutífera se não a
modificarmos. Como sabe é uma noção que vem da fenomenologia. E se
nós pelo contrário pensarmos diferentemente o virtual? E se
pensarmos o corpo como o corpo real /virtual? Virtual porquê? Porque
no seu corpo estão atravessando neste momento mil outros corpos, mil
outros espaços de outras pessoas através daquilo que se chama o
inconsciente, que se pode chamar um virtual inconsciente ou um
inconsciente virtual. Quer dizer, e isto é uma banalidade, por mais
isolados que nós queiramos viver como esses jovens do Japão, somos
habitados e constantemente atravessados por outros. Isso não é uma
intersubjectividade, não é uma intercorporeidade que supõe
primariamente, dois corpos próprios que depois se ligam ou se
comunicam. Não é
comunicação, é outra coisa muito mais directa e, de certa maneira,
profunda. Você é atravessado constantemente por uma série de linhas
que são outros. Você, na sua própria subjectividade, é um
constante devir. Repare, falámos na criança e na sexualidade da
criança, porque é que a noção de perverso polimorfo na criança é
uma enormidade? Porque
precisamente, faz do corpo da criança e da sexualidade da criança
uma espécie de imagem fechada em si, uma espécie de mónada, quando
a sexualidade da criança é polimorfa porque está em constante
devir, está em constante investimento, está em constante transformação
e auto-devir. A criança investe eroticamente nos objectos, nos pais e
tudo isso é um investimento de um campo esp
ac
ial e de um campo temporal através
dos quais ela se forma. Não
pensar, por exemplo, no erotismo que atravessa esse investimento que
é potentíssimo na criança, é deixar de pensar na formação da
criança. Ora, hoje quem vai falar na formação da criança em
Portugal, dizendo: “O
discurso contra a pedofilia está a fazer esquecer as crianças, a
fazer de todos os adultos um perigo potencial”?
Porque se eu toco numa criança… É como o assédio sexual e
mil coisas assim que aparecem. Sabe,
este discurso que estou a ter é um discurso que se alguém o
tem na praça pública é imediatamente posto na cruz, é crucificado.
Não se pode falar desse modo, nesta sociedade normalizada. Portanto,
quando você diz: “Porquê isto?”, tem de se perguntar: “A quem
serve isto?” e então entramos na relação entre sexualidade e
poder tão bem estudado por Foucault.
J. Godinho: Como alterar isto?
E para enquadrar um pouco a pergunta gostaria de tentar
perceber se também o próprio pensamento não terá algumas
responsabilidades? Porque ao o desconfiar de tudo o que era r
ac
ional, em vários momentos do século vinte não terá potenciado uma
exagerada e utópica “autodeterminação” do sujeito fixada nas,
demasiado perfeitas, imagens do corpo? Ou
“ser-pelo-corpo” e “ser-para-o-corpo” esquecendo ou
descuidando também esse outro lado mais difícil, mais estratégico,
se quiser, que é a relação com outros, o estar-na-relação?
J.
Gil: Com certeza que tem razão, infelizmente nós só pensamos e
temos que pensar nas coisas quando elas não funcionam. Se tivéssemos
um funcionamento, entre aspas, da relação de corpo que fosse “visível”,
e “visível” significa que estivesse na direcção da vida e não
na direcção nihilista, não pensaríamos, agiríamos, como uma criança
que não pensa no corpo; é o adulto que a faz pensar no corpo.
“Olha aqui, estás sujo!” e isso corta qualquer coisa... Nós
sabemos, sabemos que isto é inevitável mas temos de pensar nessas
aporias constantes. Tem com certeza razão! Há uma responsabilidade
do pensamento. Estou a compreender a sua ideia. Como se o pensamento
moderno, em todos os campos, o vanguardismo na arte e na literatura,
etc, com as suas experiências-limite tivessem desencadeado forças
que não souberam controlar. Não se deu demasiada importância a Sade,
a Masoch, ao “desregramento de todos os sentidos”, para citar
Rimbaud? Não foi a permissividade, e Nietzsche, e Foucault, e Deleuze,
e a antipsiquiatria e tudo o resto que são responsáveis por tudo o
que
ac
ontece hoje? Como se os modernos e
modernistas (a que os anglo-saxões chamam pós-modernos) andassem a
brincar com o fogo, numa grande inocência culpada. Pensar isso é
entrar num grande equívoco. Infelizmente é o que pensa muita gente.
E não podemos discutir isso agora, levaria muito tempo. Mas como sair
hoje destes impasses? Não é só com pensamento, mas também com
pensamento! É por exemplo fazer o que nós estamos a fazer agora, ir
contra... ir contra... o in
ac
eitável mas
que é no fundo tolerado por uma passividade e uma cobardia sociais
imensas. É por exemplo fazer, olhe cito-lhe um caso, não sei se deva
citar o nome na sua revista, é o caso do Miguel de Almeida...
J. Godinho: Miguel Vale de
Almeida
...
J.
Gil: ...Vale de Almeida, que casou agora, é um homossexual! Aí
está uma resposta à sua pergunta: “Que fazer?” Fazer o que ele
faz! Fazer o que ele faz que é de uma coragem extraordinária, não
é? Em Portugal, como
noutros países, afirmar assim a sua homossexualidade. Aliás a
homossexualidade é, como sabe, em Portugal, um estigma ainda. É um
estigma tal que, repare, nem a mediatização o pode ainda utilizar.
Podemos imaginar num estado avançado da mediatização e da exploração
de tudo, do aberto completo, que o casamento do
Miguel Vale de Almeida
seria aproveitado mediaticamente,
extraordinariamente. Podia ser. Não foi! Não foi porque ainda é escândalo!
Porque ainda é impossível e insuportável! Porque vai contra os
medos e todos têm medo de quê? Tem-se medo do desejo da criança.
A sexualidade é uma questão de desejo, não é uma questão
de prazer, somente, e há toda uma complexidade de noções que temos
de pensar. Primeiro, aliamos muito ainda, e não só em Portugal, a
sexualidade à ideia de Freud de que a sexualidade tem um fim e está
ligada a uma prática final que justifica tudo - a reprodução. Em
segundo lugar, a sexualidade é heterossexual, heterossexual e adulta,
pronto! Em terceiro lugar, a sexualidade não é o erotismo! Em
Portugal não se sabe o que é o erotismo. Julga-se que o erotismo é
uma prática, sei lá... preliminar, do quê? Do coito, da relação
sexual! O erotismo, você olha para a brincadeira de uma criança com
os seus amigos ou pais, ela está em puro erotismo. Não estou a fazer
o elogio do pan-erotismo, não, mas ali, na criança, aquilo é erótico
e temos que pensar o Eros de
uma maneira diferente da ideia de Freud, etc.
J. Godinho:
Gostaria de voltar a esta questão dos medos, dos medos gerais, dos
medos da população. Será que esse medo é apenas um medo moralista,
o medo em si, ou seja o medo
de arriscar nas potencialidades, nas possibilidades mais difíceis
como por exemplo,
ac
eitar o desejo da criança ou
ac
eitar a homossexualidade , ou por outro lado esse medo poderá ser
justificado, como o medo das potencialidades mais perigosas, como o
medo da predação? Ou seja, será que teremos por um lado essa coisa
que é o desejo da criança mas não teremos por outro lado essa outra
coisa difícil de gerir e de governar que é o desejo da predação? O
desejo de transformar a sexualidade, como exercício do poder, numa
relação mestre escravo?
J.
Gil: Ou eu não estou a compreender a segunda parte da sua
pergunta ou estou a
ac
har estranhíssimo que o diga
porque o que me parece que existe na sociedade portuguesa, mas não só,
é essa relação de predação. Quer dizer, se nós olharmos para um
casal heterossexual, não falarei aqui do homossexual porque conheço
mal e aliás, casais homossexuais há poucos, há muitos mas
escondem-se, ou não são públicos. O casal heterossexual é uma relação
de predação, é uma relação de domínio. Eu vi uma estatística
numa revista, quando há mais de dez anos a li, não vou dizer
que revista era, que mais de oitenta por cento das mulheres
portuguesas eram batidas e em todas as classes sociais. E não se
sabe! Nós vemos as caras dessas pessoas nas revistas de moda e elas são
batidas. Portanto a relação de predação está aí! O medo não vem
daí! O medo vem de... olhe como as mulheres interiorizaram o
discursos dos homens! Agora aparecem uma ou duas pessoas a
queixarem-se que foram batidas não é? Onde estão as oitenta por
cento ou mais? O que é isto? É considerar a mulher como o quê?
Portanto não falaremos em sexualidade normalizada porque o bater e a
relação de poder têm a ver precisamente com a sexualidade. Há uma
coisa linda, uma frase linda, assim uma espécie de iluminação do
Kant, na antropologia filosófica do Kant quando ele diz que o
casamento é a compra dos órgãos genitais da mulher pelo homem. Ele
aí teve uma intuição única e genial no campo das relações
humanas concretas. É isso, e continua a ser! Portanto é estranho que
me diga isso. Os medos são medos que vêm da sociedade portuguesa,
mas também do modo como se tece uma sociedade em geral.
J. Godinho: Portanto há uma matriz fortíssima da
predação que já formatou a sexualidade historicamente,
a sexualidade portuguesa, a sexualidade mediterrânica e que
resiste a todas as possibilidades de equilibrar essa relação?
Ou seja resiste ao abrir a relação sexual a outras
possibilidades diferentes?
J.
Gil: Matriz ou modelos vários que se tem que conhecer. Nós
próprios não sabemos quais são eles porque o campo está fechado
para os explorar. Está fechado juridicamente, está fechado
socialmente, está fechado por aquilo que se chama as mentalidades,
está fechado pelas instituições, etc. etc.
J. Godinho:
Isso, de alguma forma, está de
ac
ordo com um f
ac
to, que eu próprio presenciei em
algumas reportagens que fiz. Ou
seja a pedofilia e o incesto não são invulgares na sociedade
portuguesa. Existem historica e subterraneamente mas de forma
silenciada. Talves seja até o silencio mais bem guardado. Não é
portanto novidade que o fenomeno exista. O que é novidade é o
silencio ter-se quebrado.
J. Gil: Se me permite, vou alargar a geografia de que falou. Não
é a sociedade mediterrânica em especial. Ainda ontem estive com alguém
que me falou do incesto na Holanda. Em todas as grandes cidades da
Europa, nos seus subúrbios, sobretudo, e eu conhecia, por exemplo,
Paris, o incesto é uma prática corrente. Como você diz, silenciada,
mas a pedofilia também, etc. etc.. E porque é que isso se admite?
Repare, nós falámos da relação de poder, só queria dizer uma
coisa, o que é que está em jogo aqui nesta questão da pedofilia?
Mil coisas! Mas
também uma relação de poder, uma relação de poder tal que nunca
será desvendada porque, como se diz, e para empregar uma expressão
dos políticos, não se irá nunca até às “últimas consequências
da verdade”. Repare como este discurso: “Temos que ir às ultimas
consequências!” é um discurso hipócrita, é um discurso que é de
muito boas intenções, mas sabe-se que não se concretizará, que não
se fará nunca isso. Não se falou, na televisão, num barco?
Repare, não são os camponeses, os pobres, não são esses que
andam nesse barco, que apanham miúdos na Madeira, que andam por aí,
não é, com práticas pedófilas, criminosas, em que se matam crianças
também, etc. etc.. Isto também tem a ver com uma relação de poder.
J. Godinho: Ex
ac
tamente por essa relação de poder ser uma relação desequilibrada,
porque normalmente
é a criança que silencia, neste escândalo da pedofilia surge como
novidade o f
ac
to das crianças terem começado a falar. Tudo
ac
ontece aliás em volta da proteção da sua fala e das pressoes para
as voltar a silenciar. O
discurso das crianças não será uma possibilidade para abrir
esse campo do poder, da normalização? Não será essencial proteger
o discurso das crianças?
J.
Gil: É preciso dar-lhes a palavra. Dar a palavra às crianças.
Simplesmente quem é que escuta seriamente essa fala, quem a
interpreta e quem abre o campo dessa fala? Repare nos nossos programas
para as crianças da televisão. Mas é uma pura miséria! Pura miséria!
Não é só Portugal. Eu posso dizer isto porque tenho como termo de
comparação um programa absolutamente extraordinário para crianças,
um programa brasileiro
muito conhecido. Mas quem é que pensa nas crianças? Agora fala-se
muito nas vítimas, pois claro, diz-se que as vítimas agora vão ser
tratadas... Mas antes, quem é que pensou
na possibilidade de uma relação formadora?
Numa relação, ponhamos esta palavra já tão pouco utilizada,
livre?
Uma livre expressão da sexualidade que tem de ser formada e
portanto tem de sofrer as inibições necessárias para... etc. etc.,
mas que pode ser muito melhor do que formar crianças que vão
interiorizar um medo, um medo as instituições, um medo da sua própria
sexualidade, etc.
J. Godinho: Philipe
Solers , em França foi um dos subscritores nos anos setenta de uma
petição para a alteração da lei da sexualidade que proibia as relações
com menores até aos quinze anos de idade. Essa posição foi agora at
ac
ada nesta onda de polémica que surgiu em França sobretudo depois do
caso de Cohn Bendit. Sollers diz agora que efectivamente tinha
cometido, na altura, uma certa ingenuidade. Em principio não renega
agora nada do que afirmou sobre
a necessidade de um
discurso mais aberto sobre a sexualidade da criança mas que o
problema estaria em quem decide na relação. Quem equilibra essa relação
criança/adulto?
J.
Gil: Isso é um problema de uma complexidade e de uma dificuldade
enormes. Tudo o que eu peço é que se abram campos em que isso possa
ser pensado, discutido pelas educadoras, pelos pais. Que se abra esse
campo. Que se pense na sexualidade da criança como um elemento vital
para a sociedade e para vida da sociedade
e para o seu futuro. Isto é importantíssimo. Parece muito utópico
mas não é. É tudo o que eu peço. Bom, resta saber o que se pede. Não
peço nenhum equilíbrio. Não sei o que é um equilíbrio possível.
Porque é que o desequilíbrio tem de ser necessariamente mau. Porque
é que não pode haver desequilíbrios dentro de um certo limite, que
podem gerar equilíbrios maiores? Porque é que a instabilidade
não pode ser uma fonte permanente de estabilidade criadora? Eu
não sei. Sei que quando eu vejo uma criança de quatro anos, cinco
anos, seis anos, sete anos, etc. penso sempre: “Nós não estamos à
altura das crianças!”: não estamos, porque este miúdo de quatro
anos que é absolutamente extraordinário ou
esta rapariguinha, aos dezoito anos vai parecer, como se diz
hoje, formatado. É uma pena, porque são gerações e gerações
queimadas.
J.
Godinho: É esse espanto,
esse toque no mundo que as crianças têm. Como dizia o J
ac
ques
Brel, temos que
desaprender para voltar a
apreender a infância.
J.
Gil: Claro, como dizia o Fernando Pessoa, já agora. Toda a gente
ac
ha o Fernando Pessoa extraordinário
quando fala da criança, o oitavo poema do guardador de rebanhos. Todo
o aspecto do devir-criança que não existe só no Caeiro mas... ninguém
toma a sério. Aquilo é poesia... não é a sério e o Pessoa
vivia-a. Vivia-o como qualquer coisa que se passava no seu corpo, no
seu espírito.
J. Godinho:
Queria concluir mas sem deixar
um certo aspecto da questão das sexualidades por tratar. Há
pouco estivemos a falar do retraimento.
Pode ser essa a palavra em questão na intimidade. Ou seja, a
intimidade que tem servido como equilibrador, o ponto
fundamental para equilibrar a sexualidade pessoal, está na sua
opinião em retraimento não é? Pelo
menos é o que vemos hoje na televisão, onde as pessoas, muitas
delas, deixaram de proteger a sua priv
ac
idade e têm até prazer em expô-la. Há também um fenómeno na
Internet onde as pessoas fazem tudo em frente às câmaras pessoais.
Despem-se, têm relações sexuais, põem as câmaras nas casas de
banho, na sanita, etc, etc Nestes
fenómenos ainda estamos a falar de sexualidades, de erotismo, ou já
de outra coisa completamente diferente?
Que pistas podemos ter para entender este sujeito que assim se
apresenta e assim se expõe?
J.
Gil: Pois, eu tenho a impressão que aí se sobrepõem
várias linhas. Várias linhas, umas de fuga, outras de sedentarização,
se assim se pode dizer, mas não sei, ainda, pensar bem isso. Por um
lado, há qualquer coisa na exposição, nessa exposição, que
implica uma tal focalização, uma tal amplificação do grau da
escala de exposição que
ac
aba por rebentar com o sujeito.
Quer dizer aquilo, o que possivelmente levou a tal pessoa a expor-se
na casa de banho a fazer as necessidades ou a expor o seu corpo mais
íntimo, pode ter sido ao princípio qualquer coisa em que a relevância
era dada a um ego narcísico que se queria mostrar. Através de estratégias
oportunistas, claro. Simplesmente, a exposição é de tal ordem
amplificada, de tal ordem multiplicada na
net que eu tenho a impressão que o sujeito
ac
aba por desaparecer aí, ou ficar
na ameaça de desaparecer. A partir daí, talvez se possa fazer outra
coisa. Porquê ? Tenho a impressão sempre que nós não estamos à
procura do prazer, estamos
à procura é do desejo. Uma
das ameaças maiores que pesa sobre nós, sobre aquilo que se chama a
nossa identidade enquanto self,
não enquanto eu, é a perda
do desejo. Há uma perda generalizada do desejo e daí a genitalização
da sexualidade quando o desejo não é unicamente genital, nem erógeno,
de um corpo erógeno, é muito mais do que isso. É uma noção
sobredeterminada, imensamente sobredeterminada,
semanticamente, e pergunto se não haverá também aí uma
procura de prazer. Procura de prazer é reapropriarmo-nos daquilo que
é da ordem do mais
singular em nós, que é o desejo. É da ordem do mais forte porque o
desejo é vital. Quer dizer, você não faz nada no pensamento sem
desejo e há um erotismo do pensamento porque há um desejo no
pensamento etc. Para voltar à sua questão, é evidente que o sujeito
desses reality shows é captado numa rede que é o contrário de tudo
isto, e que ele desejou ser captado! Produz-se aí o esmagamento do
desejo, do erotismo, para a satisfação máxima do pior tipo de
prazer! Bom, isto dava outra conversa. O desejo…
J. Godinho: E é
preciso haver o outro também.
J.
Gil: E é preciso haver o outro.
J.
Godinho: E a questão
parece-me ser também a perca do outro nos jovens que vivem fechados
nos computadores em suas casas. Jovens
que recorrem a uma
economia do choque para tentar revitalizar a ligação já que
aparentemente perderam a cap
ac
idade,
o domínio, a experiência de pelas vias tradicionais a conseguirem
gerar.
J.
Gil: Com certeza. Eu
ac
ho que nós não sabemos ainda o
que vai produzir a tal sociedade das novas tecnologias, a dita
sociedade do conhecimento, que é uma extraordinária expressão,
porque esse conhecimento, se é uma sociedade do conhecimento, deixa
de ser uma sociedade de prática. Vai ser uma sociedade tecnológica,
o que é completamente diferente de uma sociedade de prática, onde
não haverá lugar, possivelmente, para um corpo vivo. Quero
lembrar, e possivelmente serão as minhas últimas palavras, que
assisti a uma apresentação de uma coreografia de Cunninghan pelo
Cunninghan, no museu Guggenheim de Nova Iorque há três anos. Ele
apresentava as suas coreografias virtuais que creio que mostrou aqui
também no Porto, em Serralves, e uma rapariga perguntou no fim:
“Mas então haverá dança, no futuro? Essa
dança não tem corpos, nós vamos deixar de ter corpos para
dançar?”, e o Cunninghan deu uma daquelas gargalhadas célebres que
ele dá e disse: “ De maneira nenhuma, eu faço isso mas eu não
posso imaginar uma dança sem corpos!”. Quer dizer, o
desaparecimento do corpo vai
encontrar resistências terríveis, precisamente naquilo que se chama
vida.
Lisboa,
14 de Agosto de 2003
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