«I
think that the very great artists were not trying to express
themselves. They were trying to trap the fact, because, after all,
artists are obsessed by life and by certain things that obsess them
that they want to record. And they’ve tried to find systems and
construct cages in which these things can be caught.»
Francis Bacon
Caged –
Uncaged, a exposição da obra de Francis
Bacon, apresentada no Museu de Serralves, entre 25 de Janeiro e 20
de Abril de 2003, é sem dúvida alguma um dos grandes
acontecimentos artísticos do presente ano e marca o primeiro
encontro do público português com uma exposição inteiramente
dedicada a um dos pintores mais inovadores e fundamentais no
panorama europeu da arte do século XX. A mostra, organizada
exclusivamente para o Museu de Serralves, apresenta cerca de 50
obras, reunindo alguns dos seus trabalhos mais divulgados, assim
como outros raramente exibidos, não pretendendo fazer uma
retrospectiva da obra de Francis Bacon, mas sim incidir sobre uma
das linhas centrais do seu trabalho, definida por Vicente Todolí,
comissário da exposição, enquanto «uma reflexão sobre a
condição humana e uma incursão na natureza da própria pintura e
da arte criativa, dividida entre a estrutura da razão, a composição
e o uso do acidental e do instintivo, para criar uma pintura que
anseia por existir».
O par de
conceitos trabalhados incide portanto numa temática da clausura,
quer a um nível existencialista, o indivíduo encerrado numa
atmosfera claustrofóbica, quer a um nível formal, evidenciando a
relevância das estruturas espaciais internas enquanto dispositivos
que permitem concentrar a atenção na figura, e da libertação,
quer pela violência dos afectos e pelas contorções dos gestos e
movimentos das figuras, quer pela presença das paisagens, na sua
expansão cromática e densidade da pintura, no período de
1956-1957, e na sua depuração e simplicidade crescentes, elidindo
a figura humana, nos anos 80. De salientar, no entanto, que em plena
sintonia com os conceitos trabalhados justificava-se uma maior
presença dos trípticos, sem dúvida, o formato mais potente na
obra de Bacon, onde a dialéctica do enclausuramento e a vertigem da
justaposição atingem o ápice possibilitando uma afectação estética
de uma violência e emoção invulgares - e a sala do museu dedicada
aos trípticos está aí para o evidenciar. Simultaneamente, a
presença das paisagens, opção aparentemente importante em termos
do desenho conceptual da exposição, tende a diluir-se, muito
contribuindo para isso o pequeno (enclausurado) espaço que lhes é
atribuído, que mais se assemelha a um espaço de passagem (entre
duas salas que são substancialmente maiores) e que não atribui aos
quadros a respiração, a soltura que lhes é devida.
Mas claro,
Bacon é um daqueles pintores cuja obra nós vamos visitar sôfregos
de expectativa, lutamos contra os reflexos no vidro,
contra a imagem do nosso espanto e da nossa sofreguidão face a
tanto talento, a tanta marca amorosa e ébria, à fabulosa combinação
do génio e do acidente na textura marcada pelo pincel. Toda a sua
vida, Francis Bacon afirmou que as suas obras não significavam
nada, que ele não pretendia veicular nenhum sentido. Uma obra
discursiva era sinónimo para ele de banalidade,
sendo que o artista ambicionava o entrelace da imagem e da pintura,
num jogo de risco, onde a composição se impregnava do acidente da
pincelada e do pigmento. Saber parar podia salvar a graça de uma
figura; avançar, trazer o golpe do real na espessura do pigmento
inesperado. Jogo da razão e do acaso, mas sempre do risco e do
contraditório, tal foi a marca de Francis Bacon na vida e na
pintura.
É conhecida a
admiração que Bacon acalentava por Picasso, nomeadamente pelo
facto deste enraizar o realismo no inconsciente, oferecendo, nas
palavras de Bacon, a «brutalidade do facto». «When I talked about the brutality of fact in Picasso,
I meant that Picasso in a curious way was able to put it across more
directly and with less expressionism in it. It seemed to be the fact
itself without the will to express».
O facto-em-si-mesmo, enjaulado (trapped, caught),
na redoma de vidro, espelhado, enquadrado, fragmentado,
homem-animal, movimento-grito de seda, silenciado, negritude
que faz passar a vida na pintura.
Study for Portrait, 1949. É isso
que mais me fascina: a coincidência perfeita entre a imagem, a angústia,
a limitação existencial, a agressividade, e a pintura, a mancha
negra da boca,
voraz, e o “meu” reflexo azul, fragmento de
movimento e passagem que liga o dentro da “jaula” de vidro
(Bacon diria que não se trata de uma “jaula” de vidro) ao fora
representado no quadro e ao exterior onde me encontro na galeria.
Ainda do mesmo
ano, 1949, o delicadíssimo e comovente Study from the Human Body; luminoso, evanescente, fantasmático, o primeiro nu de
Francis Bacon (do período dominado por grisailles)
representa a figura de um homem de costa e nádegas voltadas para nós,
que atravessa delicadamente uma cortina pintada a pinceladas aguadas
de branco e cinzento sobre uma tela sem preparação. A delicadeza
da cor e do movimento daquele homem, a perna direita semi-encoberta
pela cortina, as costas translúcidas que desenham o traço da
espinha que termina no quebranto da nuca, perfeita e desejável,
transformam este nu num dos mais belos da obra de Francis Bacon,
podendo ter sido o primeiro inspirado na obra fotográfica de
Muybridge e revelando já a influência da imagética das
radiografias no trabalho do pintor.
1950, marca o
surgimento das primeiras versões da imagem (a corpo inteiro) do
Papa, realizadas a partir de Portrait of Pope Innocent X,
1650-1, de Diego Rodríguez de Silva y Velázquez. Study after Velázquez, 1950, fazia parte de um conjunto de três
quadros que Bacon tinha planeado pintar para a sua exposição na
Hanover Gallery, em Setembro desse ano. Tendo completado apenas dois
dos quadros planeados, o artista decidiu
no último momento retirá-los da exposição na medida em
que considerava que eles deveriam ser apresentados em série. Em
Novembro, parte para a sua primeira viagem a África, sendo que no
regresso, já em 1951, Bacon teria mandado destruir as duas telas,
decisão da qual mais tarde se veio a arrepender, tal como confessou
a David Sylvester. No entanto, Study after Velázquez
ressurgiu após a sua morte, tendo sido preservado da destruição
por terceiros, e apresenta-se hoje como um dos mais relevantes Papas
pintados por Francis Bacon. Nele, o pontífice é apresentado num
espaço absidal, a face crispada num uivo (invocando o rosto
ensanguentado da ama, na famosa sequência dos degraus de Odessa, do
filme O Couraçado Potemkim de Eisenstein) sob a sufocante
cortina cinzenta que alastra no chão escarlate. A caixa branca de
composição e o corrimão, que acentua a profundidade do espaço,
fragmentando o corpo do pontífice e afastando-nos para trás,
contribuem para capturar a figura, embora a segunda cortina que se
solta do corrimão para vir abrir, de forma fantasmática, a
vermelhidão do chão crie uma impressão de movimento, como se uma
corrente de ar perpassasse as camadas veladas dos cortinados
esbatendo a clausura do espaço. Com efeito, as dobras das cortinas
pintadas em Study after Velázquez dão-nos conta de
um dispositivo central na obra de Bacon, por ele designado de shuttering,
inspirado numa fase tardia da pintura de Degas, e que consiste na
utilização de uma série de linhas paralelas que atravessam
verticalmente a figura, dando-lhe transparência e, simultaneamente,
acentuando de modo formal a carga dramática da imagem, uma certa
diluição violenta da figura atravessada pela implacabilidade das
barras e traços verticais.
Após 1952, a
pintura de Francis Bacon tornou-se mais transparente e os azuis
invadiram a sua paleta monocromática. É o chamado período azul,
consagrado na famosa série Man in Blue, da qual
podemos ver em Serralves três das sete versões pintadas por
Francis Bacon. Study for a Portrait (Man Screaming),
1952, e Study of a Baboon, 1953, são dois quadros
paradigmáticos do devir-animal, da criação de uma hibridação,
de uma zona de indiscernibilidade entre o homem e o animal, patente
na obra de Bacon e expressa na sua famosa frase, que serve de mote
à exposição Caged – Uncaged,
«deixar o elemento animal libertar-se do humano». Em
Study for a Portrait (Man Screaming), o movimento do
corpo humano projecta o grito de um modo particularmente animalesco,
numa agressividade acentuada pelo dispositivo formal de shuttering,
que estica e distorce o rosto deste homem de fato sentado em
“trono” adornado a dourado. Em Study of a Baboon,
é a contorção gritada do macaco na sua jaula que nos atinge, o
seu corpo azul transparente sobre o dourado expansivo da vegetação,
impregnada de movimento, dir-se-ia também ela ostentando a potência
selvagem da vida. Ondulação verde e dourada, densa e sôfrega, que
retorna no fabuloso Two Figures in the Grass, 1954, em
que o enlace amoroso de dois homens, funde relva e pele na violenta
voracidade da paixão sexual. Nesta belíssima pintura, Francis
Bacon introduz a paisagem num dispositivo arquitectónico - as
paredes ao fundo onduladas pelas dobras das cortinas -
o qual será retomado numa fase tardia do seu trabalho,
durante a qual as paisagens sofrerão uma progressiva depuração e
simplificação em termos de composição, desaparecendo a figura do
humano e acentuando-se uma evidente tensão entre a natureza e o
geométrico, sendo Sand Dune, 1983, exemplar neste
sentido.
Em 1956
evidencia-se, na obra de Francis Bacon, uma progressiva insatisfação
em relação à pintura tonal e ao jogo da figura e do fundo, que
acentuava a profundidade no tratamento da imagem, tendência
consagrada quando, no início dos anos 50, Bacon deixa de trabalhar
telas sem preparação, optando ao invés por passar a aplicar uma
fina camada de uma mistura de óleo e turpentina em tons de negro ou
azul escuro. As suas estadias em Tanger, onde mantinha uma intensa e
turbulenta relação com Peter Lacy,
devem igualmente ter afectado a paleta do pintor sendo que, entre
1956-57, vemos surgir uma fase de transição na obra de Bacon, onde
a cor explode numa densidade inédita, evidenciando um trabalho de
pincel e uma intensidade na aplicação das camadas cromáticas
visivelmente influenciadas pelo
trabalho do pintor expressionista Chaïm Soutine, nomeadamente pelas
obras do período Céret. Assim, em 1956, Francis Bacon
inicia uma série de quadros que têm como ponto de partida o
auto-retrato de Van Gogh Sur la Route de Tarascon,
1888, prestando homenagem ao pintor holandês cujos três volumes de
cartas Bacon relia e citava apaixonadamente, a fim de comprovar a
cultura e os interesses de Van Gogh, contrariando a imagem mítica
deste pintor enquanto um homem rural, neurótico e algo inculto,
apesar de extremamente talentoso. Van Gogh in a Landscape,
1957, é uma das obras mais inesperadas da série Van Gogh, tal como
Martin Harrison faz notar, em Bacon: Caged – Uncaged.
Com efeito, a particularidade do ponto de vista faz com que o quadro
abarque uma parte invulgarmente extensa da vegetação em primeiro
plano, relegando a figura para uma presença mínima mas cintilante,
nesse ponto amarelo que inscreve a fragilidade do movimento humano
no dinamismo vitalista e denso da selvática paisagem.
Este período,
abertamente influenciado por Van Gogh e Chaïm Soutine, evidencia a
fase de transição na obra de Bacon, marcando o seu afastamento
definitivo em relação à pintura tonal e a uma linguagem
influenciada por Goya e Manet, e abrindo caminho para uma nova direcção
exploratória, que se irá consolidar de modo evidente a partir de
1965, com o tratamento da imagem enquanto superfície e a opção
pelo uso de acrílicos, maioritariamente em cores claras, para os
fundos dos quadros, da qual Three Portraits: Posthumous
Portrait of George Dyer, Self-portrait, Portrait of Lucian Freud,
1973, nos oferece um belo testemunho. No mesmo ano, Francis Bacon
pinta o impressionante e dramático Triptych May-June 1973,
num acto de exorcismo e compaixão pelo seu amante George Dyer,
que se suicida em vésperas da inauguração da retrospectiva da
obra do pintor, apresentada em Outubro de 1971, no Grand Palais de
Paris. Obra de extraordinário impacto, na sua grandiosidade das
trevas e do mergulho na morte, poderíamos afirmar, com David
Sylvester, que a negridão é o seu tema de tal maneira ela
assombra, devora e projecta, esse corpo contorcido pelos espasmos da
carne e da alma. O formato do tríptico respira aqui toda a sua
imponência: os três painéis apresentam sucessivamente uma figura
sobre um rectângulo negro central, debruado por uma faixa branca e
seguido de uma nova barra rectangular em vermelho púrpura, a cor da
parede do quarto fatídico representado. David Sylvester sugere a
influência de Matisse nesta composição dividida por linhas
verticais. Nas suas palavras: «It may well be that here again
Matisse’s Bathers by a River was a model, since its
composition is firmly divided by vertical lines that create a series
of wide bands, the most assertive of which are black or off-white,
and each of which has a figure in front of it. Just as Matisse used
his vertical lines to separate his figures one from another, Bacon
separates the figures one from another by giving each panel a single
figure».
No painel esquerdo, o corpo robusto de George Dyer,
sentado, dobra-se sobre si mesmo numa vulnerabilidade sofrida que
acresce em violência no painel direito em que a contorção abre a
boca da figura num vómito. O painel central é surpreendente, o
corpo quebrantado de Dyer, curvado sobre o negro e iluminado pela
luz crua da lâmpada, é duplicado pelo abraço da morte de uma
sombra biomórfica que, fundindo-se no corpo dele, projecta-se na
soleira da porta, assemelhando-se à silhueta de um morcego, mas
devendo ser provavelmente uma Fúria, a deusa grega do
cabelo-serpente que
atormenta os condenados no Inferno e à qual Bacon várias vezes
alude na sua obra.
Na parede
oposta à de Triptych May-June 1973, o
rosto de Francis Bacon no painel lateral direito de Triptych,
1991, olha de frente o dilaceramento brutal do seu amante,
auto-retrato de um rosto macerado pelas intensidades de uma vida
singular. Neste magnífico trabalho, realizado no ano anterior à
sua morte, evidencia-se a qualidade teatral da imagem realizada com
extremo rigor formal, numa crescente depuração e mesmo estilização
ao nível da composição. Triptych, 1991, com os seus
retratos “fotográficos” nos painéis laterais (o de Peter Beard,
amigo fotógrafo no painel da esquerda, e o auto-retrato de Bacon,
no da direita), a citação dos lutadores de Muybridge no painel
central, e a obsessão com o trabalho da figura num jogo entre o
corpo humano e o elemento geométrico, testemunha a profunda
vitalidade criativa de Francis Bacon, evidenciando num último fôlego
a extraordinária combinação entre um depurado formalismo e a
famosa «brutalidade do facto» que não cessou de retornar na sua
pintura, uma das mais singulares e intensas da experiência artística
europeia contemporânea.
Margarida Carvalho
Março
de 2003
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