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  A fidúcia em crise

  [ José Augusto Mourão - José Casquilho ]

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"Are not museums the temples in which sacrifices are made to apologize for so much destruction, as if we wanted suddenly to stop destroying and were beginning the indefinite cult of conserving, protecting, repairing?" (Bruno Latour)

 

"La béance qui se forme est celle du sens, de la verité ou de la valeur" (J.C. Nancy

 

 

"Uma crise no campo das doenças é ou uma exacerbação, ou um enfraquecimento, ou uma metaptose numa outra afecção, ou o fim". (Hipócrates)

 

 

 

Crise dos valores - crise da veridicção  

A noção de "frame" (estrutura cognitiva) permite ver uma palavra como um "nó" onde se cruzam várias "janelas enquadrando os vários sentidos da entrada lexical, possibilitando a relação entre os diferentes sentidos da palavra entre si e com os sentidos das palavras afins[1]. Que é uma "crise" no dicionário? Crise = Mudança que sobrevém no curso de uma doença aguda. Fig. Conjuntura perigosa; momento perigoso e decisivo. Embaraço na marcha regular dos negócios. (Lello Editores). Mas a crise não é um monema, nem mesmo um texto. Lobriga-se como uma tempestade, uma afecção, uma ruptura fracturante ou instauradora, um sismo.

 

Fala-se de crise do ambiente, da crise da objectividade, da crise católica, de valores flutuantes. A defesa dos valores torna-se a expressão encantatória de um regresso às tradições culturais que permitem a uma sociedade premunir-se contra o afundamento da moral[2]. Está a perder-se o elo social tradicional, a credibilidade, como se houvesse de um lado aqueles que definem os factos e do outro os que definem os valores. A invocação do valor parece depender das oportunidades políticas. Morrer pela liberdade era um sinal de glória póstuma. Fala-se de crise do ambiente, da crise da objectividade, da crise católica, de valores flutuantes. A defesa dos valores torna-se a expressão encantatória de um regresso às tradições culturais que permitem a uma sociedade premunir-se contra o afundamento da moral[3]. O político, o religioso, a escola, a família, a ética entraram em crise. De que problema se trata? Da regulação do saber e do crer? Da mudança de regime de sentido ditada pelo coração, pela indignação e da efusão colectiva de cada uma destas realidades? Da crise do regime institucional (da representação)? Da crise da racionalidade – este parece ser o nó górdio. Já nos anos trinta o teorema de Godel tinha introduzido um limite na possibilidade de uma racionalidade absoluta, capaz de uma decisão completa sobre o que é verdadeiro ou falso. Já na viragem do milénio, António Damásio, pelo lado das neurociências, veio mostrar que o emocional prevalece sobre o racional, retomando o esteio freudiano de um inconsciente incontrolável. Mas onde isto mais entronca no real é porque a definição de ciência económica é a da ciência que estuda a afectação racional de recursos escassos a actividades alternativas. Se o racional está em crise a economia também está e portanto decorre a instabilização da legitimidade das regras de condução da casa, reconhecendo-as afinal como emanando de uma ordem pulsional.

 

Estamos a assistir ao colapso da dicotomia facto/valor[4]. Não há duvida que "Precisamos de pensar sem demora um mundo que sai, de maneira lenta e brutal ao mesmo tempo, de todas as suas condições adquiridas de verdade, de sentido e de valor"[5]. O pensamento ocidental nunca suportou o vazio da significação, o não-lugar e o não-valor: sempre recorreu a um lugar, a uma economia, a uma transcendência. Afinal, todos os sistemas assentam na noção de fiabilidade, componente essencial das instituições da modernidade. A fiabilidade minimiza as formas de risco, desenvolvendo-se toda a actividade humana dentro de margens de risco e de perigo calculadas. A noção de risco invadiu, visivelmente, todas as áreas do humano e do não-humano. O motivo do "risco", introduzida por Ulrich Beck, significa que a vida se foi tornando mais perigosa, que no dia-a-dia se tem a impressão de que as coisas podem ser piores. Os nossos antepassados acreditavam que o céu lhes podia cair em cima da cabeça; nós hoje receamos que o céu nos caia em cima da cabeça mas sob a forma de mudanças radicais de clima ou de atentados terroristas. A Conferência Episcopal Portuguesa traça o quadro da crise em termos claramente sintomatológicos, atribuindo a alguns grupos a intenção de provocar "rupturas fracturantes , em relação à tradicional cultura portuguesa, ou mesmo em relação à influência da doutrina da Igreja na sociedade"[6]. Crise confiança, antes de mais: "Há sintomas preocupantes de perda de confiança nas instituições, há cada vez mais margem para a ilegalidade e para a anomia"[7] As mudanças no mundo teórico propiciam uma relação com a mudança no mundo dos valores. Mas nós saíamos da modernidade sem ter entrado nela plenamente. Entrámos numa crise de valores de onde não saímos. Tanto a "globalização" como a "fragmentação" exprimem, a seu modo, a crise da unidade e a crise da multiplicidade[8]. A crise de valores exprime uma mudança na evolução cultural, que arrasta consigo a mudança no mundo das crenças. A tecnologia e a linguagem (cultura informativa) modificaram os hábitos e as crenças (cultura valorativa)[9]. A tecnologia globalizou não apenas os mercados mas toda a experiência humana. A modernidade estabeleceu formas de interconexão que abarcam o globo inteiro e que alteraram os modelos mais tradicionais das instituições e das pessoas. A dificuldade para a ética radica no predomínio da distância nas formas de relação pessoal. À relação face a face impõe-se hoje uma relação predominantemente centrada no cognitivo e no virtual. A sociedade digital afecta substancialmente as formas de vida em sociedade, mudando o âmbito das crenças em torno do conhecimento e dos valores.

 

 

 

A crise em fases

Béjin distingue numa crise social generalizada várias fases: uma fase de descrédito e de "regressões", de crise das medidas; uma fase de acme efervescente, de crise-desmedida; uma fase de resolução, ao longo da qual são decididas, aplicadas medidas de crise que correspondem a uma finalidade propriamente terapêutica[10]. O ouro, o carisma, as revelações, as evidências fundamentais, o corpo radioso do prazer: tais são os penhores a que os agentes regressam quando já não têm confiança nos sinais dos valores. Já em 1932 P. Valéry, interrogando-se sobre o descrédito que afectava todos os traços escritos de obrigações (moeda fiduciária e escriptural, contratos, tratados entre Estados) e até o próprio ouro, concluía: Trata-se portanto de uma crise geral dos valores. Nada lhe escapa, nem na ordem económica, nem na ordem moral, nem na ordem política...Em suma, crise de confiança, crise das concepções fundamentais (1957, p. 1036). Mais tarde (cf. Valéry, 1862, p. 258 s.) o mesmo autor sugere que a crise dos valores significava também um desregramento das apreciações quantitativas. Não estamos apenas então na perturbação do sistema dos juízos éticos; estaria também qualificada uma alteração violenta dos instrumentos de estimação quantitativa, de fixação de preços. Paul Krugman, professor em Princeton, editorialista do New York Times duas vezes por semana desde janeiro de 2000, foi o primeiro a evidenciar a colisão entre os interesses políticos e económicos orquestrados por aquilo a que chamou a "Busheconomy". Este economista é o único a analisar o aspecto essencial da política actual: essa mistura dos interesses duma classe, da empresa e do Partido Republicano que é a marca do governo Bush. As reduções de impostos, o programa de reforma das reformas públicas, o escândalo Enron, a crise energética e o caso Harken (companhia petrolífera  para a qual Bush trabalhou). Todas estas questões são integradas por Krugman numa mesma crónica sobre a política do governo Bush, a desigualdade das riquezas, a subida em flecha do capitalismo de copinage. "Primeiro utilizam-se números falsificados para justificar chorudos presentes nos escalões mais elevados. Depois, se a situação se degrada, deixa-se aos assalariados o pagamento da factura"[11].

 

A guerra no Iraque é um bom exemplo. Na interpretação do professor Said Barbosa Dib a guerra é antes do mais uma guerra do dólar contra o euro, a partir do momento em que em Novembro de 2000 o ditador Saddam tomou a decisão de indexar as exportações petrolíferas do Iraque ao euro, abandonando o padrão-dólar e assim criando um facto e abrindo um precedente. Se a OPEP adoptasse essa política a desvalorização (já nítida) do dólar criaria um buraco enorme na economia dos EUA a que se seguiria um período de caos e depressão. Esse é o pânico da Administração e da Reserva Federal e o controlo do petróleo na região tornou-se um objectivo estratégico.

 

Na segunda dissertação da Genealogia da moral, Nietzsche afirma: o homem designa-se como o ser que mede valores, que avalia e que mede, o animal estimador por excelência (1971, p. 263). Bergson dirá: medir é uma operação completamente humana...A natureza não mede nem conta (1970, p. 680). O modo de julgar o homem e de colocar os valores marca em todas as épocas os vários restauradores dos princípios estritos que se distinguem pelo pessimismo na consideração daqueles que classificam de "libertinos" (caso dos jansenistas no século XVII) e na recusa de qualquer concordismo com a natureza ou com a moral naturalista. Se a modernidade é dominada pelo epistémico e pela crítica, a pós-modernidade é-o pela comunicação e pela oscilação do "princípio de realidade". A crise da consciência passa, obviamente, pelo apagamento humanista da determinação, do juízo de valor e da procura da verdade. É interessante saber que no domínio da literatura, quando se pretende determinar o específico do pós-modernismo, se fala igualmente de "transgressão dos níveis ontológicos e de vacilação entre diversos graus de realidade" (McHale 1987: 228). O "efeito global de desenraizamento" que as novas tecnologias dos "media" impuseram denuncia em que mundo de "fabula" vivemos em que tudo vale tudo. Uma das vias para achar este apagamento seria percorrer a ficção portuguesa contemporânea, como o fez Alzira Seixo, verificando os lugares em que tal falha se pronuncia[12]. Verificaríamos então que nem Saramago nem Cardoso Pires cedem completamente ao paradigma pós-moderno, porque há resquícios de julgamento, de valores, de presença ao tempo, demasiado evidentes na sua escrita e que não podemos escamotear. Frente ao preceituário que Douwe Fokkema estabeleceu (Fokkema 1984: 64-65), nenhum autor português é inteiramente pós-moderno. João Barrento tem falado de uma nova categoria em que teria encontrado a ficção portuguesa: o Realismo Urbano Total - um tipo de literatura que tem por missão contar uma história "com pessoas iguais às pessoas que a gente conhece", segundo os "modelos da vida tal como ela é", e com uma forma de escrita que se limitaria a transpor a expressão quotidiana e que se caracterizaria acima de tudo pela total falta de estilo. Estaríamos assim no lado contrário daquilo que Mallarmé considerava ser a literatura - "a universal reportagem". Há sem dúvida dúvida que formas de localismo que se aproximam de formas de "Terceiro-Mundismo". A insistência na 'pureza local', de acordo com o argumento convincente de Arif Dirlik, "pode bem servir como desculpa para um revivalismo reacionário com as mais antigas formas de opressão (A. Dirlik, 1996: 36). Porque a melhor literatura foi sempre aquela que tem como casa o mundo, e que melhor articulou a memória local e global, permitindo que o local se torne global na sua capacidade para representar as múltiplas dimensões da existência humana.

 

A crise do sentido

B. Cassin mostrou, a respeito do Górgias que tudo roda à volta da necessidade da krisis: entre o ser e o não-ser[13]. De onde procede o sentido? Do objecto, do sujeito, da relação entre objecto e sujeito? A resposta do positivista é a da codibilidade (Pacheco Moura) vertida para o conhecimento comum, congelado do mundo, a codificação unívoca. Já para o desconstrucionista o objecto desaparece para dar lugar ao leitor soberano. De facto, o mundo axiológico nunca fica vazio. O plano dos valores nunca desaparece, é uma exigência da natureza da pessoa na sua necessidade de hierarquizar a informação do meio em que vive. "O mundo do valorativo nunca fica desprovido, a questão é 'quem' ou 'quê' o preenche"[14].

 

"Valor" é empregue em semiótica em duas acepções diferentes, o "valor" que subentende um projecto de vida e o "valor" em sentido estrutural (Saussure). Qualquer valor, em sentido estrutural, é um valor posicional, i.é., uma posição num “espaço” abstracto decomposto em domínios através de uma categorização. Releva de uma tipologia de relações entre termos. Sem existência isolada, os valores dos termos dum paradigma definem-se reciprocamente, negativamente pelo seu conflito dinâmico e complementarmente no preenchimento do espaço. Os valores (virtuais e abstractos) “linguísticos” relevam da forma do conteúdo e os valores axiológicos constituem aquilo a que Greimas chamou “o sentido da vida”. A conciliação entre estas duas acepções permite formar o conceito de objecto de valor: um objecto que dá um "sentido" (uma orientação axiológica) a um projecto de vida e um objecto que adquire uma significação por diferença, em oposição e complementaridade, relativamente a outros objectos. A reflexão sobre o valor tem outros prolongamentos.

 

Baudrillard evoca um ensaio de classificação outrora feito sobre a trilogia do valor, a que acrescenta agora um outro estádio, o estádio fractal. Havia um estádio natural do valor de uso, um estádio mercantil do valor de troca e um estádio estrutural do valor-signo. Uma lei natural, uma lei mercantil, uma lei estrutural do valor. Ao primeiro correspondia um referente natural e o valor desenvolvia-se em referência a um uso natural do mundo. Ao segundo correspondia um equivalente geral e o valor desenvolvia-se em referência a uma lógica da mercadoria. Ao terceiro corresponde um código e o valor desenvolve-se nele em referência a um conjunto de modelos. No quarto estádio, viral ou fractal, deixa de haver referente, equivalência, natural ou geral, deixa de haver lei do valor, havendo só uma espécie de epidemia do valor, metástase geral do valor, de proliferação e de dispersão aleatória. O bem deixa de estar na vertical do mal. Cada valor brilha um instante no céu da simulação, depois desaparece no vazio. É o esquema do fractal e é o esquema actual da nossa cultura [15]. Greimas falava de protensividade (o termo é de Husserl) mole ou de caos mole das tensões[16] .

 

Os critérios de validade entraram em colapso. O sentido e o valor caíram em ruína (Putnam)[17]. A "verdade" entrou em crise[18], se por crise se entende a operação de discernir. Mas o tempo não parece de feição para se falar da verdade. No “operativismo” nada há a “desocultar” – o esplendor do falso tornou o “autêntico” suspeito de metafísica. O mundo está cheio de Baudolinos à solta, fiados muito mais no espectáculo da sua aparição do que na proferição da verdade. Porque falam os economistas do “preço da verdade”? A verdade é indispensável a qualquer sociedade humana. É preciso defender o valor da verdade contra os cépticos pós-modernos, que negam a sua existência, e contra os defensores do bom senso, que a dão por adquirida. Negar alegremente a existência da realidade objectiva e celebrar esta negação é politicamente perigoso e intelectualmente preguiçoso. A verdade não é uma deusa qualquer diante da qual os cientistas se devam ajoelhar. É uma norma que regula a investigação científica, a regra do jogo, diante da qual não temos nem deveres nem obrigações. Dir-se-á que continua válida a enunciação da escolástica que Tomás de Aquino formulou: a verdade é a adequação dos factos com o intelecto. A maior parte dos argumentos dos “verifóbicos” são grosseiros “non sequitur” que Platão e Aristóteles estigmatizaram na sua crítica dos sofistas. Todas as idades tiveram os seus sofistas. Desde o começo do mundo que se maquilha a verdade e que a linguagem mente.

 

Tratámos já, em outro lugar[19] da questão do valor e da teoria semiótica do valor no âmbito da teoria das Catástrofes, paradigma fundado por René Thom. Pela sua pertinência como modelo geral de uma crise retomamos uma descrição sintética da ruga.

A ruga

A ruga está representada na figura seguinte – trata-se da variedade dos equilíbrios de um sistema dinâmico com dois parâmetros (ou variáveis externas: a,b) e uma variável de estado (x), regido por uma função potencial. Os equilíbrios são os pontos críticos desse sistema; de entre os pontos críticos existe um conjunto notável de pontos – o conjunto catastrófico- correspondente ao rebordo da ruga (na figura representada pela curva em forma de lacete) que, projectado no plano dos parâmetros [a,b] constitui uma curva designada cúspide onde ocorre um ponto singular – o ponto de cúspide[20]

 

Imaginemos uma pequena esfera percorrendo a variedade dos equilibrios como se tratasse da representação simbólica da trajectória de um sistema; se a esfera se aproxima do rebordo da ruga fica à beira de transitar catastroficamente para baixo, como se caísse num abismo: essa é a catástrofe. 

 

Admitamos que a varíavel de estado (x) expressa na vertical representa um índice de confiança (fidúcia) global; a transição abrupta para um nível inferior representa um salto que fará tremer todos os laços de confiança institucional no mundo, indiciando a emergência de uma nova ordem mundial.

 

Coda

À semiótica, mais do que analisar textos cabe analisar o devir dos regimes de sentido, as práticas sociais acontecendo: uma greve, uma crise, uma nova moda. O voto do fazer científico é este: "substituir ao visível complicado o invisível simples[21]. Contrariamente a um quadro, um romance, uma sopa de pedra, que em si mesmas nos aparecem como totalidades de sentido, "totalidades em auto-funcionamento" (Greimas dixit), uma crise, uma greve, só em acto, no aberto, se deixam captar. Uma crise não é um texto mas uma interacção, um processo em curso. Uma greve não é um texto que trata dum processo, mas um processo em acto, em devir, a acontecer E. Landowski fala de práticas sociais se fazendo[22]. O sentido duma crise nunca nos é dado de mão beijada, é preciso construí-lo: "compreender" é fazer, é operar, é construir. É útil manter a oposição textos vs práticas para caracterizar, por um lado, objectos fechados, congelados, e por outro processos abertos, em devir.

 

A nossa crise é uma crise de normas mais do que valores. É a norma que permite deliberar sobre os valores e estabelecer entre eles uma hierarquia. Sem elas, nenhuma moral autónoma é relevante. È então a moral autónoma que está em jogo. A expressão "Mas há mesmo assim um problema ético!" exprime a nossa indignação afirmando que os poderosos se esqueceram de tomar em consideração determinadas associações de humanos e de não-humanos. Acusamo-los de terem tomado decisões demasiado depressa, num pequeno círculo; indignamo-nos porque esqueceram ou recusaram certas vozes que, se fossem consultadas, teriam modificado a definição dos factos de que se fala ou que teria mudado uma outra versão da discussão. Fazer apelo aos valores é formular uma exigência de consulta prévia[23].

 

A metáfora da crise como onda, movimento ondulatório, talvez seja a que melhor convém ao animal humano que permanentemente faz promessas sem saber se as pode cumprir. A base do fiduciário está no "crédito". O contrato fiduciário assenta na crença no valor. Na figura sucessória romana do fideicomisso o fiduciário está encarregado de conservar e transmitir os bens legados a um outro destinatário, podendo deles tomar o usufruto. O percurso fiduciário exprime os estados de vai e vem patémicos vividos pelos sujeitos[24]. Isto significa que não estamos condenados a um único tipo de movimento: o da decadência ou da ascendência, ou ainda o da amplificação; não haverá ainda o da atenuação, que não se confunde com o regime da "paz perpétua" com que sonhava o filósofo? Estaremos já tão arruinados que nenhuma "sombra de valor" nos guarda do abismo?

 

 

 



[1] Mário Vilela, Metáforas do Nosso tempo, Almedina, 2002, p. 146.

[2] John Frow, Cultural Studies & Cultural Value, Clarendon Press, 1995.

 

[3] John Frow, Cultural Studies & Cultural Value, Clarendon Press, 1995.

 

[4] Hilary Putnam, The Collapse of the Fact/Value Dichotomy and Other essays, Harvard Univ. Press, 2002.

[5] Jean-Luc Nancy, La Communaute affrontee, Galilee, 2001, p. 14.

[6] Nota Pastoral. Crise de Sociedade, Crise de Civilização, 2, 2001, p. 4.

[7] Ibidem, p. 5.

[8] Bruno Latour, War of Worlds: what about peace? Prockly Paradig Press, 2002, p. 22.

[9] Vd. N. Bilbeny, La revolución en la ética, Barcelona, 1997, p. 54ss.

[10] André Béjin, "Crise des valeurs, crise des mesures", in Communications, nº 25, p. 39-72.

[11] Nicholas Confessore, The Washington Monthly (extractos), Washington, in Courrier International nº 636 (9-15 janiero) 2003, p. 30.

[12] Maria Alzira Seixo, "Modernités Insaisissables - Remarques sur la Fiction Portugaise Contemporaine", in Dedalus, nº 1, 1991, p. 303-314.

[13] Barbara Cassin, L'effet Sophistique, 1995, p. 30. cf. fragmento VIII, 15s: "a decisão a esse respeito está nisto: é ou não é (estin ê ouk estin)

[14] José Ramón de la Osa, "Crisis de valores y cultura del conocimineto", in Estudios Filosóficos, 136 (1998), p. 444.

[15] Jean Baudrillard, La Transparence du Mal, Paris, Galilée, 1990, p. 13-14; Mots de passe, Pauvert, 2000.

[16] A. J. Greimas e J. Fontanille, Sémiotique des passions, Paris, Seuil, 1991, pp. 21ss.

[17] O conceito de estereótipo proposto na filosofia da linguagem por Putnam (1975), e a s noções de representação estabilizadas e fixadas em memória artificial, ditas frames (M. Minsky 1975), scripts (R. C. Schank / R. P. Abelson 1977) e schemata (D. Rumelhartn1975) são conceitos importados por Lakoff (1987).

[18] Bernard Williams, Truth and Treuthfulness, Princepton University Press, 2002.

[19] José Augusto Mourão e José Casquilho, "Catástrofes fiduciárias: o valor ondulatório do

dinheiro", in Comunicação e Sociedade, Vol. 14, nº 1,2/C.C.H.S., 2001.

 

[20] cf. Enciclopédia Einaudi-vol. 4 Local-Global, pag. 41, IN-CM, 1985

 

[21] " R. Thom, Paraboles et catastrophes, Flammarion, 1983, p. 83.

 

[22] Eric Landowski, O olhar comprometido, in Galáxia, nº 2, 2001, p. 25.

[23] Bruno Latour, Politiques de la nature, La Découverte, 1999, p. 153.

[24] José Augusto Mourão e José Casquilho, art. cit..