"Are
not museums the temples in which sacrifices are made to apologize for so much
destruction, as if we wanted suddenly to stop destroying and were beginning the
indefinite cult of conserving, protecting, repairing?" (Bruno Latour)
"La
béance qui se forme est celle du sens, de la verité ou de la valeur" (J.C.
Nancy
"Uma crise no campo das
doenças é ou uma exacerbação, ou um enfraquecimento, ou uma metaptose numa outra
afecção, ou o fim". (Hipócrates)
Crise dos valores
- crise da veridicção
A noção de "frame" (estrutura cognitiva)
permite ver uma palavra como um "nó" onde se cruzam várias
"janelas enquadrando os vários sentidos da entrada lexical, possibilitando
a relação entre os diferentes sentidos da palavra entre si e com os sentidos
das palavras afins[1]. Que é uma
"crise" no dicionário? Crise = Mudança que sobrevém no curso de uma
doença aguda. Fig. Conjuntura perigosa; momento perigoso e decisivo. Embaraço
na marcha regular dos negócios. (Lello Editores). Mas a crise não é um monema,
nem mesmo um texto. Lobriga-se como uma tempestade, uma afecção, uma ruptura
fracturante ou instauradora, um sismo.
Fala-se de crise do ambiente, da crise da
objectividade, da crise católica, de valores flutuantes. A defesa dos valores
torna-se a expressão encantatória de um regresso às tradições culturais que
permitem a uma sociedade premunir-se contra o afundamento da moral[2]. Está a perder-se o elo social tradicional, a credibilidade,
como se houvesse de um lado aqueles que definem os factos e do outro os que
definem os valores. A invocação do valor parece depender das oportunidades
políticas. Morrer pela liberdade era um sinal de glória póstuma. Fala-se de
crise do ambiente, da crise da objectividade, da crise católica, de valores
flutuantes. A defesa dos valores torna-se a expressão encantatória de um
regresso às tradições culturais que permitem a uma sociedade premunir-se contra
o afundamento da moral[3].
O político, o religioso, a escola, a família, a ética entraram em crise. De que
problema se trata? Da regulação do saber e do crer? Da mudança de regime de
sentido ditada pelo coração, pela indignação e da efusão colectiva de cada uma
destas realidades? Da crise do regime institucional (da representação)? Da
crise da racionalidade – este parece ser o nó górdio. Já nos anos trinta o teorema de Godel
tinha introduzido um limite na possibilidade de uma racionalidade absoluta,
capaz de uma decisão completa sobre o que é verdadeiro ou falso. Já na viragem
do milénio, António Damásio, pelo lado das neurociências, veio mostrar que o
emocional prevalece sobre o racional, retomando o esteio freudiano de um
inconsciente incontrolável. Mas onde isto mais entronca no real é porque a
definição de ciência económica é a da ciência que estuda a afectação racional
de recursos escassos a actividades alternativas. Se o racional está em crise a
economia também está e portanto decorre a instabilização da legitimidade das
regras de condução da casa, reconhecendo-as afinal como emanando de uma ordem
pulsional.
Estamos
a assistir ao colapso da dicotomia facto/valor[4].
Não há duvida que "Precisamos de pensar sem demora um mundo que sai, de
maneira lenta e brutal ao mesmo tempo, de todas as suas condições adquiridas de
verdade, de sentido e de valor"[5].
O pensamento ocidental nunca suportou o
vazio da significação, o não-lugar e o não-valor: sempre recorreu a um lugar, a
uma economia, a uma transcendência. Afinal, todos os sistemas assentam na noção
de fiabilidade, componente essencial
das instituições da modernidade. A
fiabilidade minimiza as formas de risco, desenvolvendo-se toda a actividade
humana dentro de margens de risco e de perigo calculadas. A noção de risco
invadiu, visivelmente, todas as áreas do humano e do não-humano. O motivo do
"risco", introduzida por Ulrich Beck, significa que a vida se foi
tornando mais perigosa, que no dia-a-dia se tem a impressão de que as coisas
podem ser piores. Os nossos antepassados acreditavam que o céu lhes podia cair
em cima da cabeça; nós hoje receamos que o céu nos caia em cima da cabeça mas
sob a forma de mudanças radicais de clima ou de atentados terroristas. A
Conferência Episcopal Portuguesa traça o quadro da crise em termos claramente
sintomatológicos, atribuindo a alguns grupos a intenção de provocar
"rupturas fracturantes , em relação à tradicional cultura portuguesa, ou
mesmo em relação à influência da doutrina da Igreja na sociedade"[6].
Crise confiança, antes de mais: "Há sintomas preocupantes de perda de
confiança nas instituições, há cada vez mais margem para a ilegalidade e para a
anomia"[7] As mudanças
no mundo teórico propiciam uma relação com a mudança no mundo dos valores. Mas
nós saíamos da modernidade sem ter entrado nela plenamente. Entrámos numa crise
de valores de onde não saímos. Tanto a "globalização" como a
"fragmentação" exprimem, a seu modo, a crise da unidade e a crise da
multiplicidade[8]. A crise de
valores exprime uma mudança na evolução cultural, que arrasta consigo a mudança
no mundo das crenças. A tecnologia e a linguagem (cultura informativa)
modificaram os hábitos e as crenças (cultura valorativa)[9]. A tecnologia globalizou não apenas os mercados mas toda a experiência
humana. A modernidade estabeleceu formas de interconexão que abarcam o globo
inteiro e que alteraram os modelos mais tradicionais das instituições e das
pessoas. A dificuldade para a ética radica no predomínio da distância nas
formas de relação pessoal. À relação face a face impõe-se hoje uma relação
predominantemente centrada no cognitivo e no virtual. A sociedade digital
afecta substancialmente as formas de vida em sociedade, mudando o âmbito das
crenças em torno do conhecimento e dos valores.
A crise em fases
Béjin distingue numa crise social generalizada várias fases: uma fase
de descrédito e de "regressões", de crise das medidas; uma fase de
acme efervescente, de crise-desmedida; uma fase de resolução, ao longo da qual
são decididas, aplicadas medidas de crise que correspondem a uma finalidade
propriamente terapêutica[10]. O ouro, o carisma, as revelações, as evidências fundamentais, o corpo
radioso do prazer: tais são os penhores a que os agentes regressam quando já
não têm confiança nos sinais dos valores. Já em 1932 P. Valéry, interrogando-se
sobre o descrédito que afectava todos os traços escritos de obrigações (moeda
fiduciária e escriptural, contratos, tratados entre Estados) e até o próprio
ouro, concluía: Trata-se portanto de uma
crise geral dos valores. Nada lhe escapa, nem na ordem económica, nem na ordem
moral, nem na ordem política...Em suma, crise de confiança, crise das
concepções fundamentais (1957, p. 1036). Mais tarde (cf. Valéry, 1862, p.
258 s.) o mesmo autor sugere que a crise dos valores significava também um
desregramento das apreciações quantitativas. Não estamos apenas então na
perturbação do sistema dos juízos éticos; estaria também qualificada uma
alteração violenta dos instrumentos de estimação quantitativa, de fixação de
preços. Paul
Krugman, professor em Princeton, editorialista do New York Times duas vezes por semana desde janeiro de 2000, foi o
primeiro a evidenciar a colisão entre os interesses políticos e económicos
orquestrados por aquilo a que chamou a "Busheconomy". Este economista
é o único a analisar o aspecto essencial da política actual: essa mistura dos
interesses duma classe, da empresa e do Partido Republicano que é a marca do
governo Bush. As reduções de impostos, o programa de reforma das reformas
públicas, o escândalo Enron, a crise energética e o caso Harken (companhia
petrolífera para a qual Bush
trabalhou). Todas estas questões são integradas por Krugman numa mesma crónica
sobre a política do governo Bush, a desigualdade das riquezas, a subida em
flecha do capitalismo de copinage. "Primeiro utilizam-se números
falsificados para justificar chorudos presentes nos escalões mais elevados.
Depois, se a situação se degrada, deixa-se aos assalariados o pagamento da
factura"[11].
A guerra no Iraque é um bom exemplo. Na
interpretação do professor Said Barbosa Dib a guerra é antes do mais uma guerra
do dólar contra o euro, a partir do momento em que em Novembro de 2000 o
ditador Saddam tomou a decisão de indexar as exportações petrolíferas do Iraque
ao euro, abandonando o padrão-dólar e assim criando um facto e abrindo um
precedente. Se a OPEP adoptasse essa política a desvalorização (já nítida) do
dólar criaria um buraco enorme na economia dos EUA a que se seguiria um período
de caos e depressão. Esse é o pânico da Administração e da Reserva Federal e o
controlo do petróleo na região tornou-se um objectivo estratégico.
Na segunda dissertação da Genealogia
da moral, Nietzsche afirma: o homem
designa-se como o ser que mede valores, que avalia e que mede, o animal
estimador por excelência (1971, p. 263). Bergson dirá: medir é uma operação completamente humana...A natureza não mede nem
conta (1970, p. 680). O modo de julgar o homem e de colocar os valores
marca em todas as épocas os vários restauradores dos princípios estritos que se
distinguem pelo pessimismo na consideração daqueles que classificam de
"libertinos" (caso dos jansenistas no século XVII) e na recusa de
qualquer concordismo com a natureza ou com a moral naturalista. Se a
modernidade é dominada pelo epistémico e pela crítica, a pós-modernidade é-o
pela comunicação e pela oscilação do "princípio de realidade". A
crise da consciência passa, obviamente, pelo apagamento humanista da
determinação, do juízo de valor e da procura da verdade. É interessante saber
que no domínio da literatura, quando se pretende determinar o específico do pós-modernismo,
se fala igualmente de "transgressão dos níveis ontológicos e de vacilação
entre diversos graus de realidade" (McHale 1987: 228). O "efeito
global de desenraizamento" que as novas tecnologias dos "media"
impuseram denuncia em que mundo de "fabula" vivemos em que tudo vale
tudo. Uma das vias para achar este apagamento seria percorrer a ficção
portuguesa contemporânea, como o fez Alzira Seixo, verificando os lugares em que tal falha se pronuncia[12]. Verificaríamos então que nem Saramago nem Cardoso Pires cedem
completamente ao paradigma pós-moderno, porque há resquícios de julgamento, de
valores, de presença ao tempo, demasiado evidentes na sua escrita e que não
podemos escamotear. Frente ao preceituário que Douwe Fokkema estabeleceu
(Fokkema 1984: 64-65), nenhum autor português é inteiramente pós-moderno. João Barrento
tem falado de uma nova categoria em que teria encontrado a ficção portuguesa: o
Realismo Urbano Total - um tipo de literatura que tem por missão contar uma
história "com pessoas iguais às pessoas que a gente conhece", segundo
os "modelos da vida tal como ela é", e com uma forma de escrita que
se limitaria a transpor a expressão quotidiana e que se caracterizaria acima de
tudo pela total falta de estilo. Estaríamos assim no lado contrário daquilo que
Mallarmé considerava ser a literatura - "a universal reportagem". Há
sem dúvida dúvida que formas de localismo que se aproximam de formas de
"Terceiro-Mundismo". A insistência na 'pureza local', de acordo com o
argumento convincente de Arif Dirlik, "pode bem servir como desculpa para
um revivalismo reacionário com as mais antigas formas de opressão (A. Dirlik,
1996: 36). Porque a melhor literatura foi sempre aquela que tem como casa o
mundo, e que melhor articulou a memória local e global, permitindo que o local
se torne global na sua capacidade para representar as múltiplas dimensões da
existência humana.
A
crise do sentido
B. Cassin
mostrou, a respeito do Górgias que
tudo roda à volta da necessidade da krisis:
entre o ser e o não-ser[13].
De onde procede o sentido? Do objecto, do sujeito, da relação entre objecto e
sujeito? A resposta do positivista é a da codibilidade
(Pacheco Moura) vertida para o conhecimento comum, congelado do mundo, a
codificação unívoca. Já para o desconstrucionista o objecto desaparece para dar
lugar ao leitor soberano. De facto, o mundo
axiológico nunca fica vazio. O plano dos valores nunca desaparece, é uma
exigência da natureza da pessoa na sua necessidade de hierarquizar a informação
do meio em que vive. "O mundo do valorativo nunca fica desprovido, a
questão é 'quem' ou 'quê' o preenche"[14].
"Valor" é empregue em semiótica em duas acepções diferentes,
o "valor" que subentende um projecto de vida e o "valor" em
sentido estrutural (Saussure). Qualquer valor, em sentido estrutural, é um
valor posicional, i.é., uma posição num “espaço” abstracto decomposto em
domínios através de uma categorização. Releva de uma tipologia de relações
entre termos. Sem existência isolada, os valores dos termos dum paradigma
definem-se reciprocamente, negativamente pelo seu conflito dinâmico e complementarmente no preenchimento do espaço. Os
valores (virtuais e abstractos) “linguísticos” relevam da forma do conteúdo e
os valores axiológicos constituem aquilo a que Greimas chamou “o sentido da
vida”. A conciliação entre estas duas acepções permite formar o conceito de
objecto de valor: um objecto que dá um "sentido" (uma orientação
axiológica) a um projecto de vida e um objecto que adquire uma significação por
diferença, em oposição e complementaridade,
relativamente a outros objectos. A reflexão sobre o valor tem outros
prolongamentos.
Baudrillard evoca um ensaio de classificação outrora
feito sobre a trilogia do valor, a que acrescenta agora um outro estádio, o
estádio fractal. Havia um estádio natural do valor de uso, um estádio mercantil
do valor de troca e um estádio estrutural do valor-signo. Uma lei natural, uma
lei mercantil, uma lei estrutural do valor. Ao primeiro correspondia um
referente natural e o valor desenvolvia-se em referência a um uso natural do
mundo. Ao segundo correspondia um equivalente geral e o valor desenvolvia-se em
referência a uma lógica da mercadoria. Ao terceiro corresponde um código e o
valor desenvolve-se nele em referência a um conjunto de modelos. No quarto
estádio, viral ou fractal, deixa de haver referente, equivalência, natural ou
geral, deixa de haver lei do valor, havendo só uma espécie de epidemia do valor, metástase geral do
valor, de proliferação e de dispersão aleatória. O bem deixa de estar na
vertical do mal. Cada valor brilha um instante no céu da simulação, depois
desaparece no vazio. É o esquema do fractal e é o esquema actual da nossa
cultura [15]. Greimas falava de protensividade (o termo é de Husserl) mole ou de
caos mole das tensões[16]
.
Os critérios de validade
entraram em colapso. O sentido e o valor caíram em ruína (Putnam)[17].
A "verdade" entrou em crise[18],
se por crise se entende a operação de discernir. Mas o tempo não parece de feição para se falar da verdade. No “operativismo”
nada há a “desocultar” – o esplendor do falso tornou o “autêntico” suspeito de
metafísica. O mundo está cheio de Baudolinos à solta, fiados muito mais no
espectáculo da sua aparição do que na proferição da verdade. Porque falam os
economistas do “preço da verdade”? A verdade é indispensável a qualquer
sociedade humana. É preciso defender o valor da verdade contra os cépticos
pós-modernos, que negam a sua existência, e contra os defensores do bom senso,
que a dão por adquirida. Negar alegremente a existência da realidade objectiva e
celebrar esta negação é politicamente perigoso e intelectualmente preguiçoso. A
verdade não é uma deusa qualquer diante da qual os cientistas se devam
ajoelhar. É uma norma que regula a investigação científica, a regra do jogo,
diante da qual não temos nem deveres nem obrigações. Dir-se-á
que continua válida a enunciação da escolástica
que Tomás de Aquino formulou: a verdade é a adequação dos factos com o
intelecto. A maior parte dos argumentos dos “verifóbicos” são grosseiros
“non sequitur” que Platão e Aristóteles estigmatizaram na sua crítica dos
sofistas. Todas as idades tiveram os seus sofistas. Desde o começo do mundo que
se maquilha a verdade e que a linguagem mente.
Tratámos
já, em outro lugar[19]
da questão do valor e da teoria semiótica do valor no âmbito da teoria das
Catástrofes, paradigma fundado por René Thom. Pela sua
pertinência como modelo geral de uma crise retomamos uma descrição sintética da
ruga.
A ruga
A
ruga está representada na figura seguinte – trata-se da variedade dos
equilíbrios de um sistema dinâmico com dois parâmetros (ou variáveis externas:
a,b) e uma variável de estado (x),
regido por uma função potencial. Os equilíbrios são os pontos críticos desse
sistema; de entre os pontos críticos existe um conjunto notável de pontos – o conjunto
catastrófico- correspondente ao rebordo da ruga (na figura representada pela
curva em forma de lacete) que, projectado no plano dos parâmetros [a,b]
constitui uma curva designada cúspide onde ocorre um ponto singular – o ponto
de cúspide[20]
Imaginemos
uma pequena esfera percorrendo a variedade dos equilibrios como se tratasse da
representação simbólica da trajectória de um sistema; se a esfera se aproxima
do rebordo da ruga fica à beira de transitar catastroficamente para baixo, como
se caísse num abismo: essa é a catástrofe.
Admitamos
que a varíavel de estado (x) expressa
na vertical representa um índice de confiança (fidúcia) global; a transição
abrupta para um nível inferior representa um salto que fará tremer todos os
laços de confiança institucional no mundo, indiciando a emergência de uma nova
ordem mundial.
Coda
À semiótica,
mais do que analisar textos cabe analisar o devir dos regimes de sentido, as
práticas sociais acontecendo: uma greve, uma crise, uma nova moda. O voto do
fazer científico é este: "substituir ao visível complicado o invisível
simples[21].
Contrariamente a um quadro, um romance, uma sopa de pedra, que em si mesmas nos
aparecem como totalidades de sentido, "totalidades em
auto-funcionamento" (Greimas dixit), uma crise, uma greve, só em acto, no
aberto, se deixam captar. Uma crise não é um texto mas uma interacção, um
processo em curso. Uma greve não é um texto que trata
dum processo, mas um processo em acto, em devir, a acontecer E.
Landowski fala de práticas sociais se fazendo[22].
O sentido duma crise nunca nos é dado de mão beijada, é preciso construí-lo:
"compreender" é fazer, é operar, é construir. É útil manter a
oposição textos vs práticas para
caracterizar, por um lado, objectos fechados, congelados, e por outro processos
abertos, em devir.
A nossa crise é uma crise de normas mais do que valores.
É a norma que permite deliberar sobre os valores e estabelecer entre eles uma
hierarquia. Sem elas, nenhuma moral autónoma é relevante. È então a moral
autónoma que está em jogo. A expressão "Mas há mesmo assim um problema
ético!" exprime a nossa indignação afirmando que os poderosos se
esqueceram de tomar em consideração determinadas associações de humanos e de
não-humanos. Acusamo-los de terem tomado decisões demasiado depressa, num
pequeno círculo; indignamo-nos porque esqueceram ou recusaram certas vozes que,
se fossem consultadas, teriam modificado a definição dos factos de que se fala
ou que teria mudado uma outra versão da discussão. Fazer apelo aos valores é
formular uma exigência de consulta prévia[23].
A metáfora da crise como onda, movimento ondulatório,
talvez seja a que melhor convém ao animal humano que permanentemente faz
promessas sem saber se as pode cumprir. A base do fiduciário está no
"crédito". O contrato fiduciário assenta na crença no valor. Na figura sucessória romana do fideicomisso o fiduciário está
encarregado de conservar e transmitir os bens legados a um outro destinatário,
podendo deles tomar o usufruto. O percurso fiduciário exprime os estados
de vai e vem patémicos vividos pelos sujeitos[24].
Isto significa que não estamos condenados a um único tipo de movimento: o da
decadência ou da ascendência, ou ainda o da amplificação; não haverá ainda o da
atenuação, que não se confunde com o regime da "paz perpétua" com que
sonhava o filósofo? Estaremos já tão arruinados que nenhuma "sombra de
valor" nos guarda do abismo?