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           Esta
          série de emissões radiofónicas de Vitorino Nemésio pode ser lida
          como um complemento e prolongamento reflexivos de alguma sua poesia.
          Mas é também permitido considerar Era
          do átomo, crise do homem, publicado em 1976 pela Livraria
          Bertrand, como uma obra singular na cultura portuguesa. Não sei se as
          causeries tiveram algum
          impacte - o livro de 1976 não teve seguramente nenhum. Os tempos não
          lhe eram favoráveis, e o próprio Nemésio nota, no fim de uma
          palestra à volta da « baixa de afabilidade e cortesia no mundo »
          (a que procura contrapor modestas esperanças de « re-humanização »)
          :  « Ao
          corrigir as provas tipográficas deste capítulo, escrito há anos,
          quase que sorrio ante a ingenuidade de supor susceptíveis de correcção
          educacional, persuasiva, comportamentos humanos afinal
          progressivamente agravados pela nossa agressividade congénita, numa
          era de violência e neurose colectiva. O povo português, que vive a
          sua maior crise histórica em exacerbação ideológica, é exemplo
          disso » (p. 122). O desfasamento era total entre considerações
          de fundo sobre « a situação espiritual da época », para
          citar um título de 1931 de Karl Jaspers, principal referência filosófica
          de Nemésio, e a actualidade portuguesa de 76. Hoje tornou-se possível
          ler o livro que aqui se apresenta. O desfasamento foi reabsorvido pela
          permanência dos problemas tratados em Era do átomo, crise do homem. Eles não mudaram substancialmente,
          antes se agravaram. Outras « armas de destruição maciça »,
          como hoje dizemos, se acrescentaram às nucleares; o âmbito e as
          imprevísiveis implicações e consequências das manipulações biológicas
          estendem-se já bem para lá das advertências de Nemésio (p. 64);
          estamos a entrar na era das catástrofes ecológicas. Mesmo se a
          perspectiva de Nemésio é datada e pode talvez aparecer como demasiado comprometida com uma escola de pensamento - grosso modo, a vertente espiritualista e cristã do « existencialismo »
          de inspiração fenomenológica -, a « era » é a mesma.
          
           Num
          primeiro plano de leitura, ecoa nestas palestras uma teoria de obras
          que - retomando a formulação de Max Scheler, frequentemente citado -
          o nosso autor designa por « antropologia filosófica »
          (cf. em particular As formas do
          saber e a sociedade, 1926 e A
          posição do homem no cosmos, 1928). Nemésio lembra a importância
          que na sua juventude deu a Spengler - ele e a sua geração, e a
          anterior, em toda a Europa - empregando aliás várias vezes o
          adjectivo « fáustico » de O
          declínio do Ocidente (1918-1922, cf. também O
          homem e a técnica, 1931); e evoca também o seu mestre Ortega, além
          de Jaspers. A tecnologia é um dos pólos desta reflexão antropológica.
          Ela cristalizou-se na ameaça apocalíptica da bomba atómica. Sem
          lhes citar os títulos, Nemésio refere-se repetidas vezes a dois
          livros de Jaspers : A bomba atómica
          e o futuro do homem (1958) e Razão
          e contra-razão no nosso tempo (1950, por mim traduzido em 1960 ou
          1961, nas ed. Minotauro do amigo Bruno da Ponte...). Curiosamente, não
          menciona Heidegger que, como sabemos, levou ao extremo a denúncia da
          técnica enquanto esmagamento do ser (cf. os ensaios da primeira parte
          de Ensaios e conferências
          de 1954, traduzidos em francês em 1958). Talvez Ortega tenha
          acautelado o jovem Nemésio quanto à « inflação de ser »,
          como dizia, característica do mago de Messkirch (com o andar dos anos
          ela só aumentou); mas é fora de dúvida que a reflexão de Nemésio
          coincide em parte com a de Heidegger. A estes autores e aos demais que
          o autor encontrará, junta-se, na lista das fontes principais de Nemésio,
          o magnum opus de Werner
          Sombart sobre O capitalismo
          moderno (1916-1927). As análises da técnica contidas no seu
          terceiro tomo (A vida económica
          no apogeu do capitalismo) desenvolvem as teses de Marx sobre o
          « parcelamento » do homem « adaptado às
          necessidades do capitalismo » e são largamente consonantes com
          as de Spengler. Tudo isto à sombra tutelar de Nietzsche, pai de um
          pessimismo metafísico que contaminou definitivamente a sua
          posteridade - por ambígua que seja a posição do próprio Nietzsche
          (como nota Nemésio, cf. p. 105). É bem interessante que Nemésio
          tenha descortinado afinidades profundas entre estas diferentes escolas
          de pensamento. Só mais tarde filósofos profissionais mostraram
          convergências entre Marx e alguns temas da « antropologia filosófica »
          e da ontologia heideggeriana (cf. entre outros J. R. Santander, Trabajo
          y praxis en El ser y el tiempo de
          Martin Heidegger, Puebla, 1985). Elas estão sujacentes a uma
          proposição como esta, de Nemésio : « Por escravidão do homem
          à máquina não se entende a cota de rendimento que dela lhe cabe,
          senão a transferência da liberdade e disponibilidade humana ao
          objecto « máquina », a imolação da vida em seu altar »
          (p. 84). Nemésio menciona aliás explicitamente o conceito marxista
          de alienação (p. 19).   |  |