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  Clone art

  [ Paulo Cunha e Silva ]

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A possibilidade  de criação de um duplo é uma das pulsões mais persistentes da Natureza humana. O duplo de um outro. Um outro que poderá ser idêntico a um terceiro porque o terceiro faz coisas especiais. Um terceiro especializado. Ou um duplo de mim próprio que me reflecte e me confronta com a minha própria natureza.

O Homem foi criado à semelhança de Deus, a mulher à semelhança do Homem (a partir de uma costela; como Eva de Adão). Há portanto um desejo de semelhança que ocupa a nossa história simbólico-religiosa  desde a criação. A própria história da Evolução organiza-se a partir deste princípio de semelhança, ou melhor de parentesco, ou de genealogia. A diferença é uma raridade, é um déficit dos mecanismos de reprodução. Como é óbvio, a principal função da reprodução seria a reprodução. A maquinaria genética estrutura-se a partir de princípios de reprodução que tentam diminuir a variabilidade e o acaso até um mínimo possível.

Essa seria a tese da reprodução como fixação. A esta tese é possível opôr a da reprodução como variação. E a arte contemporânea observa esta bifurcação entre o desejo romântico do único e do irrepetível, do mistério da criação, da singularidade da obra, e a evidência da cópia, primeiro como contrafacção, depois como divulgação, finalmente como produção. A cópia é a aura contemporânea.

Mas observemos, através de um olhar parabiológico, as estratégias que o próprio corpo utiliza para multiplicar e como, de acordo com esta tese, o faz em nome da variação, da adaptação e da evolução.

A multiplicação biológica ao permitir o aparecimento da diferença, não é um processo que se limita à replicação, à repetição. E é, curiosamente, a repetição o mecanismo que engendra a variação: a repetição transporta no seu seio o seu contrário (Deleuze, 1969). Darwin afirma: "Uma vez que um órgão se repete muitas vezes num mesmo animal ele tende particularmente a variar, quer pelo número, quer pela conformação" (cit. Quéau, 1989, p. 126). O movimento de um estado ao mesmo estado (a repetição) admite a transformação (a variação), como se, durante o percurso previamente estabelecido, surgissem novas possibilidades que apontassem para outros trajectos e outros destinos.

O corpo é, no início, uma célula: o ovo que resulta da fusão de outras duas (chamadas germinativas). Transporta cada uma delas metade do material genético que se encontra nos cromossomas (das células somáticas). Ao número e arranjo dos cromossomas dá-se o nome de cariótipo, e este é uma característica da espécie.

Por paradoxal que pareça, se é verdade que o cariótipo é o denominador comum da espécie, quer dizer, todas as células normais dos indivíduos da mesma espécie apresentam o mesmo cariótipo (exceptuando as células germinativas), também é verdade que ele pode ser a fonte da variabilidade interpessoal (Jacquard, 1978; Jacob, 1981). "O mesmo é diferente sem ser outro", porque quando a diferença é levada ao exagero e institui o outro, "quando a sede de alteridade é levada muito longe, o sujeito, demasiado alterado, dissolve-se"  (Quéau, p. 127, 128). Este conflito aparente entre fixismo e diversidade foi resolvido com a descoberta de uma molécula com propriedades bioquímicas insuspeitadas: o DNA.

O DNA é o agente da grande economia semântica com que o corpo é construído. Com quatro letras (quatro nucleótidos) escreve-se o texto mais complexo do Universo, sendo o significante global dessa linguagem a própria molécula de DNA. Os significados (ou melhor as relações significado-significante), foram cartografados, através de uma das maiores aventuras (talvez uma aventura monótona!) a que o Homem se devotou, conhecida pelo nome de projecto, "Genoma Humano", com o qual se pretende iluminar a nossa identidade mais profunda, aquilo que de facto somos. Todavia ele não é um programa, como inicialmente se pretendia, mas um conjunto de dados, de potencialidades que se vão revelando, no confronto com o ambiente dinâmico que a ecologia celular vai revelando. O programa acaba por ser a disponibilidade que o genoma oferece quando interactua com o ambiente celular. Se somos próprios, e não uma colagem mais ou menos aleatória de fragmentos, não só ao genoma humano o devemos, mas sim à relação que significante e significado vão estabelecendo numa interacção espiral. O significante dá ao significado a possibilidade de se ressignificar. A mesma morfologia admite no fixismo da forma a variabilidade funcional, a variabilidade discursiva (dos discursos do corpo). Dois gémeos homozigóticos, apesar de terem a mesma forma (ou muito idêntica), são diferentes, mesmo quando o meio os pretende formatar na semelhança absoluta (Cunha e Silva, 1999).

Contudo, por vezes, o rigor (exclusivo) colocado na construção do indivíduo, isto é, na individuação, na atribuição da identidade biológica (ou outra), é baralhado por um qualquer pequeno erro do desenvolvimento que se vai somando ao longo do processo e termina na aberração inviável que faz as delícias de qualquer galeria de monstros. Sendo, estes, bem capazes de rivalizar com o imaginário medieval produtor desses sobressaltos topológicos na representação do corpo cuja génese José Gil descreve em "Monstros" (1994). Um monstro seria sempre, para o autor, "uma superabundância de realidade", "um excesso de presença" mesmo que lhe faltem órgãos (ibid., p. 79). Trata-se, portanto, de um corpo que ultrapassa a lógica económica (de espaços e de materiais) com que os seres vivos, enquanto projecto biológico que responde perante um código (o código genético), são traçados. O excesso que eles revelam decorre de um defeito (por exemplo, o da duplicação ou transcrição do código genético). Aqui, multiplicar é subtrair. Um ser com duas cabeças é um ser biologicamente diminuído apesar de, numa perspectiva antropo-simbólica, "(...) um corpo sem cabeça nunca ser apreendido como menos que um corpo (...), como um homem ou um corpo diminuidos, (... pois) a sua imagem contém sempre mais substância que uma imagem vulgar" (ibid., p. 80).

Nesse contexto ele funciona como um utensílio que a razão usa para se ultrapassar, uma vez que "o monstro demonstra (...) que todas as formas são possíveis, e que toda a forma contém todas as outras formas em potência" (Quéau, 1989, p. 301). Assim ele antecipa e introduz o medo que acompanha o facto de uma forma conjectural se transformar numa forma factual. É a angústia dos pais perante o filho que vai nascer. Ele funcionaria, desta forma, como "uma espécie de passagem em direcção ao mundo infinito das formas possíveis" (ibid.).

O DNA é assim, simultaneamente, o espelho da simetria e o espectro do caos.

Como é o espelho da simetria é uma espécie de princípio clónico natural. É por isso de admitir que o homem compulsado por esta necessidade de reproduzir tenha tido nos territórios em que a diferença era permitida e estimulada, esse desejo terminal de originalidade, de criar um diferente, de criar diferença.

A arte aurática sempre se desenvolveu a partir dessa moldura de originalidade. E quando era necessário reproduzir o original para o difundir, a reprodução sempre valeu infinitamente menos. Aqui a reprodução não era um igual, mesmo quando a cópia era perfeita; era um outro, desvalorizado, desqualificado.

A arte contemporânea altera o estatuto do duplo, porque, justamente dispensa o original de comparecer ao tribunal da aura.

Pensemos em dois artistas que colocam imediatamente esta questão, Andy Wharol (com os seus múltiplos) e Joseph Beuys e recuemos em direcção a um anterior, Marcel Duchamp.

O ready made de Duchamp é já um clone (Duchamp, 1980). É já a ideia de arte como clonagem do mundo. Não da arte como criação de uma realidade alternativa, mas da arte como confirmação do mundo. O seu mictório/fonte é a possibilidade de reiteração, dessa re-iteração. Mais do que um objecto encontrado (object trouvé). O ready made é uma moldura sobre a realidade préfabricada. Ele é assim um duplo de si próprio, que ganhou visibilidade estética a partir da suspensão da anestesia do real (Bragança de Miranda, 2002). Ele é o mesmo, mas está fora do sítio, do contexto, e por isso coloca-se no eixo visual da nossa perplexidade. Ao ser um clone do banal, o ready made desbanaliza a realidade.

Todavia, depois de Walter Benjamin, a questão já não é a do “estatuto da obra de arte na era da reprodutibilidade tecnológica”, mas na era da reprodutibilidade digital.  A condição digital vem resgatar uma nova apreciação do duplo. Uma biocondição. O duplo digital tem tanto valor como o original que não existe. O duplo digital é um infinito, é um universo de possibilidades  que só se concretiza quando o sistema está “ligado” (Wired).

Bibliografia

Bragança  de Miranda, J. (2002) Teoria da Cultura, Século XXI, Lisboa.

Cunha e Silva (1999) O Lugar do Corpo — Elementos para uma Cartografia Fractal, Instituto Piaget, Lisboa.

Duchamp, M. (1990 ed.) Engenheiro do Tempo Perdido, entrevista com P. Cabanne, Assírio & Alvim, Lisboa.

Deleuze, G. (1969) Différance et Répétition, PUF, Paris.

Gil, J. (1994) Monstros, Quetzal, Lisboa.

Jacob, F. (1981) Le Jeau des Possibles. Essai sur la Diversité du Vivant, Seuil, Paris.

Jacquard, A. (1978) Eloge de la Différence. La Génétique et les Hommes, Seuil, Paris.

Quéau, P. (1989) Metaxu, Théorie de L'Art Intermédiaire, Ed. Champs Vallon, Seyssel.