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A
possibilidade
de criação de um duplo é uma das pulsões mais persistentes
da Natureza humana. O duplo de um outro. Um outro que poderá ser idêntico
a um terceiro porque o terceiro faz coisas especiais. Um terceiro
especializado. Ou um duplo de mim próprio que me reflecte e me
confronta com a minha própria natureza.
O Homem
foi criado à semelhança de Deus, a mulher à semelhança do Homem (a
partir de uma costela; como Eva de Adão). Há portanto um desejo de
semelhança que ocupa a nossa história simbólico-religiosa
desde a criação. A própria história da Evolução
organiza-se a partir deste princípio de semelhança, ou melhor de
parentesco, ou de genealogia. A diferença é uma raridade, é um déficit
dos mecanismos de reprodução. Como é óbvio, a principal função
da reprodução seria a reprodução. A maquinaria genética
estrutura-se a partir de princípios de reprodução que tentam
diminuir a variabilidade e o acaso até um mínimo possível.
Essa seria a tese da reprodução como fixação. A esta tese é possível
opôr a da reprodução como variação. E a arte contemporânea
observa esta bifurcação entre o desejo romântico do único e do
irrepetível, do mistério da criação, da singularidade da obra, e a
evidência da cópia, primeiro como contrafacção, depois como
divulgação, finalmente como produção. A cópia é a aura contemporânea.
Mas
observemos, através de um olhar parabiológico, as estratégias que o
próprio corpo utiliza para multiplicar e como, de acordo com esta
tese, o faz em nome da variação, da adaptação e da evolução.
A
multiplicação biológica ao permitir o aparecimento da diferença, não
é um processo que se limita à replicação, à repetição. E é,
curiosamente, a repetição o mecanismo que engendra a variação: a
repetição transporta no seu seio o seu contrário (Deleuze, 1969).
Darwin afirma: "Uma vez que um órgão se repete muitas vezes num
mesmo animal ele tende particularmente a variar, quer pelo número,
quer pela conformação" (cit. Quéau, 1989, p. 126). O movimento
de um estado ao mesmo estado (a repetição) admite a transformação
(a variação), como se, durante o percurso previamente estabelecido,
surgissem novas possibilidades que apontassem para outros trajectos e
outros destinos.
O corpo
é, no início, uma célula: o ovo que resulta da fusão de outras
duas (chamadas germinativas). Transporta cada uma delas metade do
material genético que se encontra nos cromossomas (das células somáticas).
Ao número e arranjo dos cromossomas dá-se o nome de cariótipo, e
este é uma característica da espécie.
Por
paradoxal que pareça, se é verdade que o cariótipo é o denominador
comum da espécie, quer dizer, todas as células normais dos indivíduos
da mesma espécie apresentam o mesmo cariótipo (exceptuando as células
germinativas), também é verdade que ele pode ser a fonte da
variabilidade interpessoal (Jacquard, 1978; Jacob, 1981). "O
mesmo é diferente sem ser outro", porque quando a diferença é
levada ao exagero e institui o outro, "quando a sede de
alteridade é levada muito longe, o sujeito, demasiado alterado,
dissolve-se"
(Quéau, p. 127, 128). Este conflito aparente entre fixismo e
diversidade foi resolvido com a descoberta de uma molécula com
propriedades bioquímicas insuspeitadas: o DNA.
O
DNA é o agente da grande economia semântica com que o corpo é
construído. Com quatro letras (quatro nucleótidos) escreve-se o
texto mais complexo do Universo, sendo o significante global dessa
linguagem a própria molécula de DNA. Os significados (ou melhor as
relações significado-significante), foram cartografados, através de
uma das maiores aventuras (talvez uma aventura monótona!) a que o
Homem se devotou, conhecida pelo nome de projecto, "Genoma
Humano", com o qual se pretende iluminar a nossa identidade mais
profunda, aquilo que de facto somos. Todavia ele não é um programa,
como inicialmente se pretendia, mas um conjunto de dados, de
potencialidades que se vão revelando, no confronto com o ambiente dinâmico
que a ecologia celular vai revelando. O programa acaba por ser a
disponibilidade que o genoma oferece quando interactua com o ambiente
celular. Se somos próprios, e não uma colagem mais ou menos aleatória
de fragmentos, não só ao genoma humano o devemos, mas sim à relação
que significante e significado vão estabelecendo numa interacção
espiral. O significante dá ao significado a possibilidade de se
ressignificar. A mesma morfologia admite no fixismo da forma a
variabilidade funcional, a variabilidade discursiva (dos discursos do
corpo). Dois gémeos homozigóticos, apesar de terem a mesma forma (ou
muito idêntica), são diferentes, mesmo quando o meio os pretende
formatar na semelhança absoluta (Cunha e Silva, 1999).
Contudo,
por vezes, o rigor (exclusivo) colocado na construção do indivíduo,
isto é, na individuação, na atribuição da identidade biológica
(ou outra), é baralhado por um qualquer pequeno erro do
desenvolvimento que se vai somando ao longo do processo e termina na
aberração inviável que faz as delícias de qualquer galeria de
monstros. Sendo, estes, bem capazes de rivalizar com o imaginário
medieval produtor desses sobressaltos topológicos na representação
do corpo cuja génese
José Gil
descreve
em "Monstros" (1994). Um monstro seria sempre, para o autor,
"uma superabundância de realidade", "um excesso de
presença" mesmo que lhe faltem órgãos (ibid., p. 79).
Trata-se, portanto, de um corpo que ultrapassa a lógica económica
(de espaços e de materiais) com que os seres vivos, enquanto projecto
biológico que responde perante um código (o código genético), são
traçados. O excesso que eles revelam decorre de um defeito (por
exemplo, o da duplicação ou transcrição do código genético).
Aqui, multiplicar é subtrair. Um ser com duas cabeças é um ser
biologicamente diminuído apesar de, numa perspectiva antropo-simbólica,
"(...) um corpo sem cabeça nunca ser apreendido como menos que
um corpo (...), como um homem ou um corpo diminuidos, (... pois) a sua
imagem contém sempre mais substância que uma imagem vulgar" (ibid.,
p. 80).
Nesse
contexto ele funciona como um utensílio que a razão usa para se
ultrapassar, uma vez que "o monstro demonstra
(...) que todas as formas são possíveis, e que toda a forma contém
todas as outras formas em potência" (Quéau, 1989, p. 301).
Assim ele antecipa e introduz o medo que acompanha o facto de uma
forma conjectural se transformar numa forma factual. É a angústia
dos pais perante o filho que vai nascer. Ele funcionaria, desta forma,
como "uma espécie de passagem em direcção ao mundo infinito
das formas possíveis" (ibid.).
O
DNA é assim, simultaneamente, o espelho da simetria e o espectro do
caos.
Como
é o espelho da simetria é uma espécie de princípio clónico
natural. É por isso de admitir que o homem compulsado por esta
necessidade de reproduzir tenha tido nos territórios em que a diferença
era permitida e estimulada, esse desejo terminal de originalidade, de
criar um diferente, de criar diferença.
A
arte aurática sempre se desenvolveu a partir dessa moldura de
originalidade. E quando era necessário reproduzir o original para o
difundir, a reprodução sempre valeu infinitamente menos. Aqui a
reprodução não era um igual, mesmo quando a cópia era perfeita;
era um outro, desvalorizado, desqualificado.
A
arte contemporânea altera o estatuto do duplo, porque, justamente
dispensa o original de comparecer ao tribunal da aura.
Pensemos
em dois artistas que colocam imediatamente esta questão, Andy Wharol
(com os seus múltiplos) e Joseph Beuys e recuemos em direcção a um
anterior, Marcel Duchamp.
O
ready made de Duchamp é já
um clone (Duchamp, 1980). É já a ideia de arte como clonagem do
mundo. Não da arte como criação de uma realidade alternativa, mas
da arte como confirmação do mundo. O seu mictório/fonte é a
possibilidade de reiteração, dessa re-iteração. Mais do que um
objecto encontrado (object trouvé).
O ready made é uma moldura
sobre a realidade préfabricada. Ele é assim um duplo de si próprio,
que ganhou visibilidade estética a partir da suspensão da anestesia
do real (Bragança de Miranda, 2002). Ele é o mesmo, mas está fora
do sítio, do contexto, e por isso coloca-se no eixo visual da nossa
perplexidade. Ao ser um clone do banal, o ready
made desbanaliza a realidade.
Todavia,
depois de Walter Benjamin, a questão já não é a do “estatuto da
obra de arte na era da reprodutibilidade tecnológica”, mas na era
da reprodutibilidade digital. A
condição digital vem resgatar uma nova apreciação do duplo. Uma
biocondição. O duplo digital tem tanto valor como o original que não
existe. O duplo digital é um infinito, é um universo de
possibilidades que só se
concretiza quando o sistema está “ligado” (Wired).
Bibliografia
Bragança
de Miranda, J. (2002) Teoria da Cultura, Século XXI, Lisboa.
Cunha
e Silva (1999) O Lugar do Corpo
— Elementos para uma Cartografia Fractal, Instituto Piaget,
Lisboa.
Duchamp,
M. (1990 ed.) Engenheiro do
Tempo Perdido, entrevista com P. Cabanne, Assírio & Alvim,
Lisboa.
Deleuze,
G. (1969) Différance et Répétition,
PUF, Paris.
Gil,
J. (1994) Monstros, Quetzal,
Lisboa.
Jacob,
F. (1981) Le Jeau des Possibles.
Essai sur la Diversité du Vivant, Seuil, Paris.
Jacquard,
A. (1978) Eloge de la Différence.
La Génétique et les Hommes, Seuil, Paris.
Quéau,
P. (1989) Metaxu, Théorie de
L'Art Intermédiaire, Ed. Champs Vallon, Seyssel.
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