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  A Feira dos Clones

  [ Jacinto Godinho ]

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O Divx permite clonar filmes infinitamente e em simultâneo. O caminho mais fácil para penetrar na sua análise seria a do tradicional criticismo estético que historicamente condena tudo o que é reprodutível e que fez escola a partir de uma difusão estereotipada da sentença de Walter Benjamin sobre a perda de aura da arte nos tempos modernos.

Curiosamente devido a uma leitura estreita , os seguidores de Benjamim ligaram essa aura à fisicalidade “única” da obra, verificável em artes tradicionais como a pintura, a escultura, o artesanato etc.
Mas a aura de Benjamim é tudo menos física, e quem assim a leu, derivada da matéria leu-a erradamente. Ela deriva sobretudo da tradição do sublime hebraico. Trata-se de “um algo” que exala da coisa, que impede sobre ela, que não é palpável, visível ou temporal.

Benjamim ligou esse algo à origem e a um original da obra tido por único e por isso não repetível. Não fora assim e dificilmente entenderíamos que artes como a literatura, o cinema, ou a fotografia possuíssem aura já que são reprodutíveis e poucos negarão certamente que as melhores obras dos melhores autores possuam esse “algo único” que as torna irrepetiveis apesar dos milhares de cópias que delas se fazem.

Como compreender então o estatuto da substância física da obra que se altera ao sabor de teorias tão dispares que ou a entendem como o principal doador da arte a uma obra, ou a desprezam como mero suporte sem significado?
É tempo de reavaliar a questão do suporte, tentando situá-lo na economia da obra e na sua experiência já que é sobretudo esse suporte que está a ser transformado, de uma forma vertiginosa, pelo digital.

Os filmes são actualmente um dos vectores essenciais da experiência moderna, profusamente por isso enredados em esquemas preferencialmente económicos e mas também estéticos já que é neles que se centra um dos principais campos estratégicos de produção do autor, figura ainda relevante para o jogo da identidade moderna.

As grandes distribuidores de cinema prepararam com todo o cuidado a passagem dos filmes da fita para os dígitos . O principal perigo desta passagem é reprodutibilidade viral do digital que se pode replicar infinitamente em cópias sem perca de qualidade de som e imagem.

Como vimos no artigo anterior o CSS foi a chave encontrada para bloquear o poder de cópia do digital nos filmes em DVD. O Decss e o Divx são as armas de assalto dos piratas descobriram para parir ao assalto do tesouro dos filmes libertando-os para a reproductibilidade.

Kazaa - o mercado negro da net.

Existem algumas redes de tráfico que circulam pelas convencionais redes mafiosas comercializando as cópias digitais. Mas este é um fenómeno marginal em relação à nova economia que o imenso tráfego de clones digitais está a provocar no ciberespaço. Para gerir o tráfego surgiram uma nova espécie de interfaces, onde se cruzam milhões de internautas em simultâneo. São centros de partilha de ficheiros; uma mistura entre feira, aeroporto e centro comercial. Tomemos como exemplo o mais famoso deles – o Kazaa sucessor do defunto Napster. No momento em que escrevo este texto estão “ 3,555,376 users online sharing 648,380,756 files”. Se pensarmos que a maioria dessas cópias são Divx de filmes em exibição ou a comercializar em DVD, mp3 de musicas também à venda no mercado e programas de computador, o valor dos ficheiros que se trocam é incalculável porque a maioria são de obras com direitos reservados de cópias. No entanto no Kazaa não se vende nada tudo se troca. O utilizador busca o ficheiro que pretende e pois alinha o computador em fila de espera até chegar a sua vez de fazer o download. O processo pode durar apenas uns minutos ou dias e até meses. Tudo se passa num estranho cenário de pobreza visual, onde dominam os números e as cores que fornecem uma linguagem básica. Num dos rivais do Kazaa o WinMx a cor mais desejada é o verde. Significa que o utilizador que tem o ficheiro pretendido, está conectado e tem portas abertas para iniciar o download. Mas o símbolo mais desejado é um pequeno rectângulo comprido que se vai enchendo como uma garrafa à medida que o ficheiro vai passando para o computador. Este processo de fruição temporal é quebrado por vezes por ocasionais conversas entre os utilizadores cuja nacionalidade é sempre surpreendente. Caem mensagens de chineses, finlandeses, gregos e argelinos em simultâneo. Kanabeach, Joselitoooo, Kyiosummontuewedhufrisat, Noir_des_iles, Diavolo são alguns nomes exemplares dos nomes descartáveis que os utilizadores usam. O anonimato é protegida a todo o custo sempre o utilizador acede novamente surge sempre com um novo nome.
Neste mercado de clones onde os filmes são o tesouro mais precioso não se apura nenhuma sociedade de iluminados pela estética própria do cinema.

A grandeza constitutiva não é o gosto mas a estatística. Nesta estranha sociedade dos sujeitos virtuais as elites voltam mais uma vez a constituir-se em redor da posse e do numero. O Kazaa atribui ao melhres proprietários o nome de “guru”. Os “gurus” podem oferecer quatro David Lynch e toda a obra de Miles Davies.

Poucas trillers filmados se comparam ao suspense dos ultimos bits a chegar para concluir o download.

Quem tem mais espaço em gigas no disco? Quem tem mais filmes? Quem tem mais mortes no DOOM3?

Dos 4% aos 100% por cento mede-se a satisfação de uma bebedeira virtual.

Num pequeno disco de metal tenho agora todo um latifúndio, quase um continente...