Uma
Insistem os biólogos que a definição
verdadeira de clonagem não se aplica àquela
que mais tem sido publicitada desde que Ian Wilmut clonou
a ovelha Dolly, fonte dos maiores assombros e dos piores agouros.
Com efeito, a replicação, isto
é, a produção de cópias geneticamente
idênticas, ocorre comummente em muitas espécies
de organismos invertebrados simples. Tais organismos não
se reproduzem, replicam-se, clonam-se, propagam-se
mediante a produção de cópias rigorosamente
idênticas de si próprios. São esses os
clones verdadeiros porque todo o seu material genético
provém de um único organismo. Nos vertebrados,
porém, clones rigorosamente idênticos só
os gémeos monozigóticos, que partilham a totalidade
do património genético. E esses ocorrem apenas
sob determinadas condições, relativamente raras,
e sem qualquer interferência da tecnociência humana.
Em laboratório, é desde há décadas
prática corrente a produção de clones
de moléculas, de células, de plantas e de animais.
Aliás, a clonagem desde há muito que é
praticada na agricultura como bem conhecida técnica
artesanal para obter exemplares de estirpes vegetais com determinadas
características desejadas. Na primeira metade da década
de oitenta, foi aperfeiçoada a clonagem por transferência
nuclear com recurso a células adultas como fontes de
núcleos, a qual permitiu a produção de
Dolly e constitui a técnica actualmente disponível
para a clonagem de organismos superiores, entre os quais os
seres humanos. Esta técnica, relativamente simples
em si mesma, consiste na retirada do núcleo de uma
célula – enucleação – que em seguida
é substituído pelo núcleo de uma outra
célula, aquele que contém o património
genético que se pretende ver reproduzido. A célula
assim resultante será a célula mãe do
futuro clone. Na técnica clássica, recorria-se
apenas a células totitopentes, as primeiras dezasseis
células que resultam da multiplicação
da célula germinal. Com a ovelha Dolly, recorreu-se
pela primeira vez a células adultas, que até
aí se acreditava não poderem ser utilizadas
para clonagem. No entanto, esta técnica de transferência
nuclear leva a que a célula mãe do clone possua,
além do património genético contido no
núcleo transferido para a célula hospedeira
enucleada, alguns genes provenientes do ácido desoxirribonucleico
contido nas mitocôndrias desta última. No caso
de um vertebrado superior como o homem, um clone obtido por
este meio irá assim possuir, além dos cerca
de 100 000 genes provenientes do núcleo celular, uns
60 genes provenientes do ADN mitocondrial da célula
enucleada, enquanto que os gémeos monozigóticos
possuem um património genético rigorosamente
idêntico, o que faz deles clones totais. Esta tornou-se
a principal razão para que muitos biólogos prefiram
falar de transferência nuclear quando se trata da técnica
laboratorial de produção de cópias genéticas,
e reservem o termo de clonagem apenas para a ocorrência
natural de gémeos idênticos. De facto, os gémeos
idênticos são cópias rigorosas um do outro
mas não do seu progenitor. Em contrapartida, na clonagem
laboratorial, o que se pretende é que o clone seja
uma cópia rigorosa, não do seu progenitor, que
em rigor não o é, mas do dador do material genético.
De resto, a National Bioethics Advisory Commission
norte-americana sobre a clonagem, no seu relatório
de 1997 sobre a clonagem, não hesita em reconhecer
que, mesmo a simples nível técnico, permanecem
sem resposta muitas questões importantes acerca da
exequibilidade da clonagem por transferência de núcleo
com recurso a células adultas como fontes de núcleos,
da qual a ovelha Dolly constituiu o ensaio pioneiro, tornando-a
no ovino mais famoso desde que João Baptista chamou
a Cristo o cordeiro de Deus, na curiosa expressão de
Stephen Jay Gould. Depressa porém, se lhe juntaria
Polly, não já somente clone, mas clone transgénico,
o primeiro obtido num mamífero.
Além daquele primeiro óbice
biológico à produção laboratorial
de clones totais, um outro factor de monta contraria o sonho
tecnocientífico do automatismo da repetição
biológica que a clonagem realmente é: a interferência
do ambiente no modo como os genes se expressam e que nunca
é desprezível, como qualquer biólogo
hoje reconhece sem hesitar. Mesmo no caso de gémeos
monozigóticos, a expressão génica pode
ser alterada por interferência, deliberada ou casual,
do meio externo, o que começa por acontecer no caso
de os gémeos serem separados e criados em meios diferentes.
De resto, lembra Richard Lewontin que é sobretudo a
compulsão patológica dos progenitores para criar
uma identidade inumana entre os gémeos homozigóticos
que constitui a maior ameaça à individualidade
dos indivíduos geneticamente idênticos. Ora,
precisamente, e ao contrário dos gémeos homozigóticos
que compartilham o mesmo ventre materno, o mesmo tempo de
vida e, em regra, a mesma cultura e espaço geográfico,
o clone nunca pode partilhar o mesmo ventre materno com o
seu dador, nem, em princípio, o seu tempo de vida,
como assinala Stephen Jay Gould.
Eis porque Lewontin, à cabeça
de muitos outros, tem insistentemente denunciado a falácia
determinista que preside à fantasia tecnocientífica
da clonagem, de resto já apontada no relatório
da National Bioethics Advisory Commission, mas que,
por outro lado, também contribui, em sentido
oposto, para alimentar boa parte dos receios vulgarmente publicitados
acerca da clonagem. A falácia determinista consiste
na redução dos traços físicos
e psíquicos da identidade do indivíduo ao seu
património genético, ou, por oiutras palavras,
de fazer rebater, sem resto, a biologia sobre a biografia.
Diz Lewontin que ela não passa da versão revista
e actualizada das antiquíssimas superstições
acerca do sangue que tanto dão origem à obsessiva
busca dos órfãos adoptados pelos seus progenitores
biológicos, como à moderna reactualização
da criação de crianças à imagem
e semelhança daquilo que os pais acreditam ser mais
"verdadeiro" e essencial neles próprios,
doravante não já pela imposição
de rígidas regras culturais, simbólicas, no
processo de inculturação e educação,
mas mediante o recurso às inéditas possibilidades
biotecnológicas, não simbólicas. À
rigidez da simbolicidade pretende-se assim substituir, em
nome de uma superior eficácia, o determinismo biotecnológico.
Lewontin é de opinião que, se não fosse
a crença no sangue como essência, desapareceria
muita da motivação para a clonagem de seres
humanos, convencido ele, que também está, que
são as possibilidades comerciais que guiam a investigação
científica na clonagem. Questão de moda, aponta
por seu lado Stephen Jay Gould, para quem o pêndulo
dela pende actualmente para o lado das bases genéticas
do comportamento, de preferência às sociais,
no já arrastado debate da nature versus nurture,
o que contribui para virar os ventos de onde sopram algumas
decisões de política social e científica
e garantir a certos sectores da comunidade científica
uma transitória proeminência com a concomitante
ilusão de se tomar por iluminação permanente
o que não passa de moda passageira.
Mas é também esse fetichismo
da repetição absoluta que dá origem ao
estendal de problemas morais e éticos que se costumam
levantar a propósito da clonagem humana, que não
da clonagem de outros seres. Sinédoque equívoca
que substitui gene por pessoa, lhe chama Lewontin, que sublinha
que essa crença errónea no determinismo genético
ignora, inadvertida ou propositadamente, o facto da complexa
interacção, quer entre genes, quer entre eles
e o meio envolvente, e os respectivos efeitos na expressão
génica. Não é outra a razão, diz
ainda Lewontin, pela qual a ideia de clonar um Einstein não
passa de um absurdo biológico. A repetição
automática não é pois o resultado indesmentível,
mas sim uma fantasia tecnocientífica e uma fantasia
realmente fracassada. Assim, aquilo que, à partida,
se afigura efectivamente mais inquietante na perspectiva da
clonagem é a vontade que a impulsiona, que não
tanto os seus (im)prováveis resultados. Por outras
palavras, o que mais inquieta num possível clone não
é o facto dele, de resto não absolutamente garantido
no actual estado de avanço das possibilidades tecnocientíficas,
mas sobretudo a ideia dele.
O que é então a clonagem enquanto
ideia? Em primeiro lugar, o sonho da criação
do duplo, e um duplo necessariamente mais perfeito que o original;
logo de imediato, a repetição automática
do protótipo, não uma única vez, mas
tantas quantas as desejadas ou necessárias ao aperfeiçoamento
pretendido; e de seguida, a manipulabilidade indefinida da
matéria-prima biológica do original; em suma,
a ideia da vida na era da sua reprodutibilidade técnica.
E vão duas
Por outro lado, não é insensato
fazer remontar o sonho da repetição ao da imortalidade,
quer na sua versão judeo-cristã da ressurreição
da carne, quer na sua versão helénica da eterna
juventude. Ambas, mas talvez sobretudo a segunda, traduzem
um sonho de repetição desta vida, desprovida
de finitude e de dor, no além. No entanto, tal sonho
de repetição só adquire a sua forma moderna
a partir do momento em que a vida passa a ser abordada como
positividade tecnocientificamente cognoscível e manipulável
e se expulsam definitivamente os antigos deuses de uma natureza
e de uma vida desse modo esvaziadas de sobrenatureza, isto
é, inteiramente fisicalizadas. Que o mesmo é
dizer: disponibilizadas para manipulação tecnocientífica,
que doravante substitui um projecto humanamente tangível
ao que dantes cabia apenas ao domínio do prodígio
divino. Então, o que passa a perfilar-se no horizonte
de expectativas da ciência é o sonho de um duplo
mais perfeito que o corpo, susceptível de o recriar
em estado de plenitude física, de eterna juventude,
que não já a imortalidade da alma, na sequência
da ambição a que Bacon votou a tecnociência
moderna, de (re)criar uma cópia da natureza mais perfeita
do que o próprio original. O autómato foi essa
fantasia da ciência-cultura que desde os alvores da
tecnociência moderna passou a guiar a acção
da ciência-ciência. A produção de
clones é apenas a última versão de tal
fantasia que realmente guia a persecução de
possibilidades tecnocientíficas. Neste sentido, porém,
a clonagem, ou, melhor dizendo, a transferência de núcleos,
insere-se no quadro mais vasto da experimentação
com embriões, a qual, por sua vez, há que enquadrar
no pano de fundo da experimentação humana, que,
enfim, remete para o autêntico experimentum mundi
consubstanciado pela exploração tecnocientífica
de possibilidades, que não só as biológicas.
Com efeito, o desenvolvimento das técnicas necessárias
à clonagem humana surge no prolongamento das técnicas
de fertilização in vitro, no campo da
medicina da reprodução. Por sua vez, a medicina
da reprodução não só é
terreno de eleição da experimentação
com embriões, como tem constituído inexaurível
fonte de argumentos legitimadores dela. Mas é equivocamente
que o tem sido. Na verdade, a clonagem não constitui,
em rigor, uma forma de reprodução, ao nível
dos vertebrados superiores e da espécie humana, nem
talvez uma alternativa realista a ela. A chamada clonagem
reprodutiva teria precisamente essa ambição,
ao contrário da clonagem com fins exclusivamente terapêuticos.
A contestação generalizada e feroz da clonagem
como forma alternativa à reprodução e
as obstruções legais que até agora a
tolheram têm contribuído para que muitos cientistas
recorram a um uso falacioso do argumento da terapêutica
na tentativa de, exorbitando o âmbito desta de maneira
a que toda a clonagem se possa abrigar debaixo do seu chapéu
legitimador, fazerem passar por terapêutica a clonagem
reprodutiva. De facto, porém, o que move a investigação
que invoca essa finalidade é muito menos uma preocupação
beneficente que um puro interesse cognitivo centrado nas perspectivas
que oferece a experimentação com embriões
humanos. Não é nada invulgar a comunidade médica
e científica invocarem a legitimidade terapêutica,
que se apressam a fazer equivaler ao bem comum e, logo, a
um interesse universal, quando de facto é são
os seus próprios interesses cognitivos que estão
em causa. Há que notar, a este respeito, que a técnica
de clonagem actualmente existente é uma única
e mesma, quer para a clonagem com fins reprodutivos, quer
para a clonagem com fins terapêuticos, o que faz com
que a distinção seja irrelevante em termos de
legitimidade. O desenvolvimento dela transforma-se assim,
por si só, num atractivo irresistível para um
sector da comunidade científica ocupado com a investigação.
De resto, a percepção disto mesmo surgiu muito
precocemente, mal se aventou a simples possibilidade técnica
da clonagem, que então tinha ainda muito de ficção
científica. Desde a década de sessenta que a
clonagem humana era objecto não só de reflexão
como sobretudo de entusiástico apoio, na medida em
que veiculava a promessa de abrir impensadas perspectivas
de experimentação com a matéria-prima
biológica. Nesse sentido se pronunciavam já
J. B. S. Haldane em 1963, Joshua Lederberg em 1967 e James
Watson em 1971. Há que dizer, a este propósito,
que, se por um lado a clonagem vegetal se tornou comum na
agronomia desde meados da década de sessenta e a clonagem
animal, primeiro com répteis, peixes e anfíbios
e depois, a partir de 1986, com mamíferos, por outro
lado, desde 1972, foi possível o cruzamento da clonagem
com a criação de seres transgénicos,
a partir do momento em que Paul Berg clonou um gene quimérico,
isto é, resultante do cruzamento genético de
uma bactéria com um vírus. Com efeito, isto
significa que a clonagem não aparece sòzinha,
mas antes associada, desde muito cedo, a uma vasta gama de
experimentações, entre as quais a produção
de organismos transgénicos, prática com a qual
ela se cruza, no quadro mais vasto da persecução
da manipulabilidade ilimitada da matéria-prima biológica.
Com efeito, afirma Isabelle Rieusset-Lemarié, a sociedade
dos clones não é o universo asseptizado proporcionador
da monotonia de criaturas banais à força de
serem estandardizadas, é a proliferação
metamórfica de criaturas transgénicas. Recorda
igualmente esta autora que as potencialidade
das técnicas de reprodução participam
também de uma lógica intervencionista, como
de resto toda a tecnociência moderna que visa transformar
a natureza, que não apenas observá-la,
como Bacon precocemente a tinha imaginado. Neste sentido,
a clonagem fornece um exemplo particularmente
ilustrativo da dinâmica imparável da tecnociência,
em estrita obediência ao imperativo técnico:
tudo o que puder ser tecnicamente feito, sê-lo-á
sem que se lhe possa opor de forma eficaz ou duradoura qualquer
limitação simbólica, isto é, de
tipo jurídico-político ou ético. Deveria
ser suficiente para nos fazer dar a devida atenção
a isso o facto de alguns cientistas não hesitarem em
recorrer a países complacentes para levarem por diante
a clonagem humana que a legislação dos EUA e
da Comunidade Europeia se apressaram a interditar liminarmente.
E mais uma
Só a possibilidade de passagem da
clonagem de seres não humanos à clonagem humana
levantou pruridos éticos. Prática corrente na
agricultura e na pecuária, o que não deixa de
atestar o clássico esvaziamento ético da natureza
na era da ciência, por sua vez já herdeiro do
privilégio judeo-cristão do homem como pleno
usufruidor da criação divina foi a iminência
da sua transferência para o plano humano que despertou
um sentimento de visceral repulsa a que Leon Kass deu mais
elaborada forma racional, chamando-lhe a sabedoria da repugnância.
O que atesta também que, ao contrário da reverência
antiga para com - toda - a natureza como horizonte normativo
da intervenção técnica humana, o que
configura a hybris tecnocientífica moderna é
o atentado não contra a natureza não-humana,
mas contra a natureza no corpo humano, hoje porventura
o herdeiro directo da natureza humana tal como a concebia
a metafísica dualista, grega primeiro, cristã
depois. Com efeito, o que permitiu, em última análise,
que o corpo herdasse na Modernidade os antigos privilégios
metafísicos da alma, foi o gesto, por um lado, cartesiano,
de cisão entre a res extensa, puramente inerte,
e a res cogitans, princípio motriz, e por outro
lado, anatomista, que, debruçado sobre o cadáver
dissecado, acaba por nele reintroduzir a antiga alma platónica
remodelada por Descartes sob a forma da res cogitans
feita elemento vital que o (re)anima, nele instilando, não
exactamente o sopro da vida dos antigos mitos, mas o seu funcionamento
puramente mecânico e informacional: a res cogitans
é aquilo que informa a res extensa do corpo.
Com efeito, para Descartes, a vida tudo tem de movimento auto-reprodutível,
de um autómato. Com La Mettrie,
o funcionamento mecânico do corpo consuma-se na figura
do homem-máquina, com a qual fica desenhado, desde
então, o sonho do autómato perfeito que a biomedicina
irá prosseguir sem desfalecimento até ao advento
da era dos clones, quando, tomada em mãos pela engenharia
genética, a vida é já pura informação,
mensagem por completo inscrita no código genético.
Aquilo que, com Descartes, com a anatomia inauguradora da
medicina científica moderna e com La Mettrie, começa
por se estabelecer, é, com efeito, a cisão entre
a vida e a sua forma corpórea: a vida passa a ser um
princípio transportável de corpo para corpo
e de suporte material para suporte material, uma vez que é
independente dele(s). Não é outro o pressuposto
fundador da vida artificial, tal como foi teorizada por Langton.
Mas será precisamente esse também o seu equívoco,
contra o qual avisa Isabelle Rieusset-Lemarié numa
obra a todos os títulos notável sobre a era
dos clones multimédia. Diz ela que o propósito
que persegue Langton com a vida artificial não é
pois apenas o estudo, mas sim dar origem à reprodução
multimédia da vida. Esta, por sua vez, assenta na separação
dualista, não já em res extensa e res
cogitans, mas entre mensagem e meio, ou melhor, na oposição
informática entre o ‘software’ e o ‘hardware’, a qual
se manifesta em particular através de uma concepção
que opõe a vida aos diferentes suportes que ela pode
tomar, os quais são depreciados como simples matéria
inerte que apenas está vocacionada para ser instrumentalizada.
Trata-se aqui, assinala ainda Isabelle Rieusset-Lemarié,
de uma confusão abusiva o paradigma do contágio
viral e o paradigma do vivo, confusão entre o vírus
e o seu portador, de tal modo que, na propagação
contagiosa de um vírus, o material vivo que permite
a reprodução do agente que ele propaga não
passa de um simples suporte instrumentalizado pela mensagem
que o parasita, ou seja, o meio - o organismo - não
passa de um instrumento de propagação da mensagem
- o código genético, viral ou outro qualquer
- com a qual não se confunde. Segundo
a concepção langtoniana de vida artificial,
a vida fica reduzida a um material destinado a ser instrumentalizado
ao serviço de processos que o parasitam, a vida confunde-se
com o seu simulacro, ela não é já o que
existe naturalmente, mas o produto de uma intervenção
tecnocientífica que lhe confere existência real,
no que há que registar a incessante convergência
entre reprodutibilidade técnica e biológica
na sociedade de reprodução multimédia.
Sustenta Isabelle Rieusset-Lemarié
que bem se pode opor ao pressuposto dualista da vida artificial
a célebre fórmula de Marshall McLuhan, segundo
a qual o meio é a mensagem. Na vida, meio e mensagem
são consubstanciais. Acrescenta esta autora que, em
matéria de vida, afirmar a consubstancialidade da mensagem
e e do médium é opor-se a toda a instrumentação
do material vivo sob pretexto que ele não passaria
do suporte inerte que veicula a mensagem, afirmação
esta que não é apenas uma ‘profissão
de fé’ destinada a preservar a materialidade da vida
em nome de uma ética, antes constitui uma descrição
científica adequada à natureza singular do vivo.
Com efeito, se a mensagem não se confunde com o seu
media em todas as situações, no vivo
a mensagem é indissociável do media.
Eis porque a clonagem aponta para os limites, que
hoje parecem estar em vias de ser atingidos, da cultura da
cópia que prevalece no Ocidente desde o advento da
tipografia descrita por Marshall McLuhan na sua Galáxia
Gutemberg". Assinala com inteira justeza Isabelle Rieusset-Lemarié
que o que acontece actualmente
com as possibilidades da engenharia genética equivale
a ultrapassar o culto da mimesis, da imitação
da natureza que longamente orientou a ciência e a arte
ocidentais, e a avançar decididamente na senda da recriação
das suas formas. Daí que Polly, a primeira ovelha-clone
transgénica, clone e transgénica, seja também
o primeiro protótipo de fábrica viva. A clonagem
humana, muito mais do que servir propósitos enquadráveis
nos estreitos limites da medicina da reprodução,
abalançar-se-ia à transformação
do embrião humano em produto fungível e comerciável
à escala industrial, uma fábrica de bens de
consumo, a começar, mas decerto que não a ficar-se,
pelos usos médicos e farmacêuticos, aquilo que
em inglês muito bem traduz o termo "commodification".
A nosso ver, será sobretudo isso o que de mais inquietante
se pode vislumbrar na clonagem humana. O que se afigura pôr
em causa a unicidade individual na era da sua reprodução
multimédia não é pois tanto
duplicação dela pelo idêntico
- eis o grande temor que ela mais comummente suscita - como
a sua metamorfose.
Um apontamento final. Que, para se justificar
a interdição da clonagem humana, se invoquem
os direitos do clone, criatura por vir, criatura-sempre-por-vir,
leva-nos já para o terreno dos direitos das gerações
futuras, ou seja, dos sujeitos de direito que não podem
sê-lo pelo simples facto de que ainda não são,
os direitos daquilo que não existe, e, logo, uma nova
metafísica a que um Hans Jonas não foi alheio.
Tema interessantíssimo, mas a que haverá que
dar outro seguimento.
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