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  Duas ou três coisas que eu sei sobre a clonagem, ou: Da vida na era da sua reprodutibilidade técnica

  [ Fernando Cascais ]

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Uma

Insistem os biólogos que a definição verdadeira de clonagem não se aplica àquela que mais tem sido publicitada desde que Ian Wilmut clonou a ovelha Dolly, fonte dos maiores assombros e dos piores agouros.

Com efeito, a replicação, isto é, a produção de cópias geneticamente idênticas, ocorre comummente em muitas espécies de organismos invertebrados simples. Tais organismos não se reproduzem, replicam-se, clonam-se, propagam-se mediante a produção de cópias rigorosamente idênticas de si próprios. São esses os clones verdadeiros porque todo o seu material genético provém de um único organismo. Nos vertebrados, porém, clones rigorosamente idênticos só os gémeos monozigóticos, que partilham a totalidade do património genético. E esses ocorrem apenas sob determinadas condições, relativamente raras, e sem qualquer interferência da tecnociência humana. Em laboratório, é desde há décadas prática corrente a produção de clones de moléculas, de células, de plantas e de animais. Aliás, a clonagem desde há muito que é praticada na agricultura como bem conhecida técnica artesanal para obter exemplares de estirpes vegetais com determinadas características desejadas. Na primeira metade da década de oitenta, foi aperfeiçoada a clonagem por transferência nuclear com recurso a células adultas como fontes de núcleos, a qual permitiu a produção de Dolly e constitui a técnica actualmente disponível para a clonagem de organismos superiores, entre os quais os seres humanos. Esta técnica, relativamente simples em si mesma, consiste na retirada do núcleo de uma célula – enucleação – que em seguida é substituído pelo núcleo de uma outra célula, aquele que contém o património genético que se pretende ver reproduzido. A célula assim resultante será a célula mãe do futuro clone. Na técnica clássica, recorria-se apenas a células totitopentes, as primeiras dezasseis células que resultam da multiplicação da célula germinal. Com a ovelha Dolly, recorreu-se pela primeira vez a células adultas, que até aí se acreditava não poderem ser utilizadas para clonagem. No entanto, esta técnica de transferência nuclear leva a que a célula mãe do clone possua, além do património genético contido no núcleo transferido para a célula hospedeira enucleada, alguns genes provenientes do ácido desoxirribonucleico contido nas mitocôndrias desta última. No caso de um vertebrado superior como o homem, um clone obtido por este meio irá assim possuir, além dos cerca de 100 000 genes provenientes do núcleo celular, uns 60 genes provenientes do ADN mitocondrial da célula enucleada, enquanto que os gémeos monozigóticos possuem um património genético rigorosamente idêntico, o que faz deles clones totais. Esta tornou-se a principal razão para que muitos biólogos prefiram falar de transferência nuclear quando se trata da técnica laboratorial de produção de cópias genéticas, e reservem o termo de clonagem apenas para a ocorrência natural de gémeos idênticos. De facto, os gémeos idênticos são cópias rigorosas um do outro mas não do seu progenitor. Em contrapartida, na clonagem laboratorial, o que se pretende é que o clone seja uma cópia rigorosa, não do seu progenitor, que em rigor não o é, mas do dador do material genético. De resto, a National Bioethics Advisory Commission norte-americana sobre a clonagem, no seu relatório de 1997 sobre a clonagem, não hesita em reconhecer que, mesmo a simples nível técnico, permanecem sem resposta muitas questões importantes acerca da exequibilidade da clonagem por transferência de núcleo com recurso a células adultas como fontes de núcleos, da qual a ovelha Dolly constituiu o ensaio pioneiro, tornando-a no ovino mais famoso desde que João Baptista chamou a Cristo o cordeiro de Deus, na curiosa expressão de Stephen Jay Gould. Depressa porém, se lhe juntaria Polly, não já somente clone, mas clone transgénico, o primeiro obtido num mamífero.

Além daquele primeiro óbice biológico à produção laboratorial de clones totais, um outro factor de monta contraria o sonho tecnocientífico do automatismo da repetição biológica que a clonagem realmente é: a interferência do ambiente no modo como os genes se expressam e que nunca é desprezível, como qualquer biólogo hoje reconhece sem hesitar. Mesmo no caso de gémeos monozigóticos, a expressão génica pode ser alterada por interferência, deliberada ou casual, do meio externo, o que começa por acontecer no caso de os gémeos serem separados e criados em meios diferentes. De resto, lembra Richard Lewontin que é sobretudo a compulsão patológica dos progenitores para criar uma identidade inumana entre os gémeos homozigóticos que constitui a maior ameaça à individualidade dos indivíduos geneticamente idênticos. Ora, precisamente, e ao contrário dos gémeos homozigóticos que compartilham o mesmo ventre materno, o mesmo tempo de vida e, em regra, a mesma cultura e espaço geográfico, o clone nunca pode partilhar o mesmo ventre materno com o seu dador, nem, em princípio, o seu tempo de vida, como assinala Stephen Jay Gould.

Eis porque Lewontin, à cabeça de muitos outros, tem insistentemente denunciado a falácia determinista que preside à fantasia tecnocientífica da clonagem, de resto já apontada no relatório da National Bioethics Advisory Commission, mas que, por outro lado, também contribui, em sentido oposto, para alimentar boa parte dos receios vulgarmente publicitados acerca da clonagem. A falácia determinista consiste na redução dos traços físicos e psíquicos da identidade do indivíduo ao seu património genético, ou, por oiutras palavras, de fazer rebater, sem resto, a biologia sobre a biografia. Diz Lewontin que ela não passa da versão revista e actualizada das antiquíssimas superstições acerca do sangue que tanto dão origem à obsessiva busca dos órfãos adoptados pelos seus progenitores biológicos, como à moderna reactualização da criação de crianças à imagem e semelhança daquilo que os pais acreditam ser mais "verdadeiro" e essencial neles próprios, doravante não já pela imposição de rígidas regras culturais, simbólicas, no processo de inculturação e educação, mas mediante o recurso às inéditas possibilidades biotecnológicas, não simbólicas. À rigidez da simbolicidade pretende-se assim substituir, em nome de uma superior eficácia, o determinismo biotecnológico. Lewontin é de opinião que, se não fosse a crença no sangue como essência, desapareceria muita da motivação para a clonagem de seres humanos, convencido ele, que também está, que são as possibilidades comerciais que guiam a investigação científica na clonagem. Questão de moda, aponta por seu lado Stephen Jay Gould, para quem o pêndulo dela pende actualmente para o lado das bases genéticas do comportamento, de preferência às sociais, no já arrastado debate da nature versus nurture, o que contribui para virar os ventos de onde sopram algumas decisões de política social e científica e garantir a certos sectores da comunidade científica uma transitória proeminência com a concomitante ilusão de se tomar por iluminação permanente o que não passa de moda passageira.

Mas é também esse fetichismo da repetição absoluta que dá origem ao estendal de problemas morais e éticos que se costumam levantar a propósito da clonagem humana, que não da clonagem de outros seres. Sinédoque equívoca que substitui gene por pessoa, lhe chama Lewontin, que sublinha que essa crença errónea no determinismo genético ignora, inadvertida ou propositadamente, o facto da complexa interacção, quer entre genes, quer entre eles e o meio envolvente, e os respectivos efeitos na expressão génica. Não é outra a razão, diz ainda Lewontin, pela qual a ideia de clonar um Einstein não passa de um absurdo biológico. A repetição automática não é pois o resultado indesmentível, mas sim uma fantasia tecnocientífica e uma fantasia realmente fracassada. Assim, aquilo que, à partida, se afigura efectivamente mais inquietante na perspectiva da clonagem é a vontade que a impulsiona, que não tanto os seus (im)prováveis resultados. Por outras palavras, o que mais inquieta num possível clone não é o facto dele, de resto não absolutamente garantido no actual estado de avanço das possibilidades tecnocientíficas, mas sobretudo a ideia dele.

O que é então a clonagem enquanto ideia? Em primeiro lugar, o sonho da criação do duplo, e um duplo necessariamente mais perfeito que o original; logo de imediato, a repetição automática do protótipo, não uma única vez, mas tantas quantas as desejadas ou necessárias ao aperfeiçoamento pretendido; e de seguida, a manipulabilidade indefinida da matéria-prima biológica do original; em suma, a ideia da vida na era da sua reprodutibilidade técnica.

E vão duas

Por outro lado, não é insensato fazer remontar o sonho da repetição ao da imortalidade, quer na sua versão judeo-cristã da ressurreição da carne, quer na sua versão helénica da eterna juventude. Ambas, mas talvez sobretudo a segunda, traduzem um sonho de repetição desta vida, desprovida de finitude e de dor, no além. No entanto, tal sonho de repetição só adquire a sua forma moderna a partir do momento em que a vida passa a ser abordada como positividade tecnocientificamente cognoscível e manipulável e se expulsam definitivamente os antigos deuses de uma natureza e de uma vida desse modo esvaziadas de sobrenatureza, isto é, inteiramente fisicalizadas. Que o mesmo é dizer: disponibilizadas para manipulação tecnocientífica, que doravante substitui um projecto humanamente tangível ao que dantes cabia apenas ao domínio do prodígio divino. Então, o que passa a perfilar-se no horizonte de expectativas da ciência é o sonho de um duplo mais perfeito que o corpo, susceptível de o recriar em estado de plenitude física, de eterna juventude, que não já a imortalidade da alma, na sequência da ambição a que Bacon votou a tecnociência moderna, de (re)criar uma cópia da natureza mais perfeita do que o próprio original. O autómato foi essa fantasia da ciência-cultura que desde os alvores da tecnociência moderna passou a guiar a acção da ciência-ciência. A produção de clones é apenas a última versão de tal fantasia que realmente guia a persecução de possibilidades tecnocientíficas. Neste sentido, porém, a clonagem, ou, melhor dizendo, a transferência de núcleos, insere-se no quadro mais vasto da experimentação com embriões, a qual, por sua vez, há que enquadrar no pano de fundo da experimentação humana, que, enfim, remete para o autêntico experimentum mundi consubstanciado pela exploração tecnocientífica de possibilidades, que não só as biológicas. Com efeito, o desenvolvimento das técnicas necessárias à clonagem humana surge no prolongamento das técnicas de fertilização in vitro, no campo da medicina da reprodução. Por sua vez, a medicina da reprodução não só é terreno de eleição da experimentação com embriões, como tem constituído inexaurível fonte de argumentos legitimadores dela. Mas é equivocamente que o tem sido. Na verdade, a clonagem não constitui, em rigor, uma forma de reprodução, ao nível dos vertebrados superiores e da espécie humana, nem talvez uma alternativa realista a ela. A chamada clonagem reprodutiva teria precisamente essa ambição, ao contrário da clonagem com fins exclusivamente terapêuticos. A contestação generalizada e feroz da clonagem como forma alternativa à reprodução e as obstruções legais que até agora a tolheram têm contribuído para que muitos cientistas recorram a um uso falacioso do argumento da terapêutica na tentativa de, exorbitando o âmbito desta de maneira a que toda a clonagem se possa abrigar debaixo do seu chapéu legitimador, fazerem passar por terapêutica a clonagem reprodutiva. De facto, porém, o que move a investigação que invoca essa finalidade é muito menos uma preocupação beneficente que um puro interesse cognitivo centrado nas perspectivas que oferece a experimentação com embriões humanos. Não é nada invulgar a comunidade médica e científica invocarem a legitimidade terapêutica, que se apressam a fazer equivaler ao bem comum e, logo, a um interesse universal, quando de facto é são os seus próprios interesses cognitivos que estão em causa. Há que notar, a este respeito, que a técnica de clonagem actualmente existente é uma única e mesma, quer para a clonagem com fins reprodutivos, quer para a clonagem com fins terapêuticos, o que faz com que a distinção seja irrelevante em termos de legitimidade. O desenvolvimento dela transforma-se assim, por si só, num atractivo irresistível para um sector da comunidade científica ocupado com a investigação. De resto, a percepção disto mesmo surgiu muito precocemente, mal se aventou a simples possibilidade técnica da clonagem, que então tinha ainda muito de ficção científica. Desde a década de sessenta que a clonagem humana era objecto não só de reflexão como sobretudo de entusiástico apoio, na medida em que veiculava a promessa de abrir impensadas perspectivas de experimentação com a matéria-prima biológica. Nesse sentido se pronunciavam já J. B. S. Haldane em 1963, Joshua Lederberg em 1967 e James Watson em 1971. Há que dizer, a este propósito, que, se por um lado a clonagem vegetal se tornou comum na agronomia desde meados da década de sessenta e a clonagem animal, primeiro com répteis, peixes e anfíbios e depois, a partir de 1986, com mamíferos, por outro lado, desde 1972, foi possível o cruzamento da clonagem com a criação de seres transgénicos, a partir do momento em que Paul Berg clonou um gene quimérico, isto é, resultante do cruzamento genético de uma bactéria com um vírus. Com efeito, isto significa que a clonagem não aparece sòzinha, mas antes associada, desde muito cedo, a uma vasta gama de experimentações, entre as quais a produção de organismos transgénicos, prática com a qual ela se cruza, no quadro mais vasto da persecução da manipulabilidade ilimitada da matéria-prima biológica. Com efeito, afirma Isabelle Rieusset-Lemarié, a sociedade dos clones não é o universo asseptizado proporcionador da monotonia de criaturas banais à força de serem estandardizadas, é a proliferação metamórfica de criaturas transgénicas. Recorda igualmente esta autora que as potencialidade das técnicas de reprodução participam também de uma lógica intervencionista, como de resto toda a tecnociência moderna que visa transformar a natureza, que não apenas observá-la, como Bacon precocemente a tinha imaginado. Neste sentido, a clonagem fornece um exemplo particularmente ilustrativo da dinâmica imparável da tecnociência, em estrita obediência ao imperativo técnico: tudo o que puder ser tecnicamente feito, sê-lo-á sem que se lhe possa opor de forma eficaz ou duradoura qualquer limitação simbólica, isto é, de tipo jurídico-político ou ético. Deveria ser suficiente para nos fazer dar a devida atenção a isso o facto de alguns cientistas não hesitarem em recorrer a países complacentes para levarem por diante a clonagem humana que a legislação dos EUA e da Comunidade Europeia se apressaram a interditar liminarmente.

E mais uma

Só a possibilidade de passagem da clonagem de seres não humanos à clonagem humana levantou pruridos éticos. Prática corrente na agricultura e na pecuária, o que não deixa de atestar o clássico esvaziamento ético da natureza na era da ciência, por sua vez já herdeiro do privilégio judeo-cristão do homem como pleno usufruidor da criação divina foi a iminência da sua transferência para o plano humano que despertou um sentimento de visceral repulsa a que Leon Kass deu mais elaborada forma racional, chamando-lhe a sabedoria da repugnância. O que atesta também que, ao contrário da reverência antiga para com - toda - a natureza como horizonte normativo da intervenção técnica humana, o que configura a hybris tecnocientífica moderna é o atentado não contra a natureza não-humana, mas contra a natureza no corpo humano, hoje porventura o herdeiro directo da natureza humana tal como a concebia a metafísica dualista, grega primeiro, cristã depois. Com efeito, o que permitiu, em última análise, que o corpo herdasse na Modernidade os antigos privilégios metafísicos da alma, foi o gesto, por um lado, cartesiano, de cisão entre a res extensa, puramente inerte, e a res cogitans, princípio motriz, e por outro lado, anatomista, que, debruçado sobre o cadáver dissecado, acaba por nele reintroduzir a antiga alma platónica remodelada por Descartes sob a forma da res cogitans feita elemento vital que o (re)anima, nele instilando, não exactamente o sopro da vida dos antigos mitos, mas o seu funcionamento puramente mecânico e informacional: a res cogitans é aquilo que informa a res extensa do corpo. Com efeito, para Descartes, a vida tudo tem de movimento auto-reprodutível, de um autómato. Com La Mettrie, o funcionamento mecânico do corpo consuma-se na figura do homem-máquina, com a qual fica desenhado, desde então, o sonho do autómato perfeito que a biomedicina irá prosseguir sem desfalecimento até ao advento da era dos clones, quando, tomada em mãos pela engenharia genética, a vida é já pura informação, mensagem por completo inscrita no código genético. Aquilo que, com Descartes, com a anatomia inauguradora da medicina científica moderna e com La Mettrie, começa por se estabelecer, é, com efeito, a cisão entre a vida e a sua forma corpórea: a vida passa a ser um princípio transportável de corpo para corpo e de suporte material para suporte material, uma vez que é independente dele(s). Não é outro o pressuposto fundador da vida artificial, tal como foi teorizada por Langton. Mas será precisamente esse também o seu equívoco, contra o qual avisa Isabelle Rieusset-Lemarié numa obra a todos os títulos notável sobre a era dos clones multimédia. Diz ela que o propósito que persegue Langton com a vida artificial não é pois apenas o estudo, mas sim dar origem à reprodução multimédia da vida. Esta, por sua vez, assenta na separação dualista, não já em res extensa e res cogitans, mas entre mensagem e meio, ou melhor, na oposição informática entre o ‘software’ e o ‘hardware’, a qual se manifesta em particular através de uma concepção que opõe a vida aos diferentes suportes que ela pode tomar, os quais são depreciados como simples matéria inerte que apenas está vocacionada para ser instrumentalizada. Trata-se aqui, assinala ainda Isabelle Rieusset-Lemarié, de uma confusão abusiva o paradigma do contágio viral e o paradigma do vivo, confusão entre o vírus e o seu portador, de tal modo que, na propagação contagiosa de um vírus, o material vivo que permite a reprodução do agente que ele propaga não passa de um simples suporte instrumentalizado pela mensagem que o parasita, ou seja, o meio - o organismo - não passa de um instrumento de propagação da mensagem - o código genético, viral ou outro qualquer - com a qual não se confunde. Segundo a concepção langtoniana de vida artificial, a vida fica reduzida a um material destinado a ser instrumentalizado ao serviço de processos que o parasitam, a vida confunde-se com o seu simulacro, ela não é já o que existe naturalmente, mas o produto de uma intervenção tecnocientífica que lhe confere existência real, no que há que registar a incessante convergência entre reprodutibilidade técnica e biológica na sociedade de reprodução multimédia.

Sustenta Isabelle Rieusset-Lemarié que bem se pode opor ao pressuposto dualista da vida artificial a célebre fórmula de Marshall McLuhan, segundo a qual o meio é a mensagem. Na vida, meio e mensagem são consubstanciais. Acrescenta esta autora que, em matéria de vida, afirmar a consubstancialidade da mensagem e e do médium é opor-se a toda a instrumentação do material vivo sob pretexto que ele não passaria do suporte inerte que veicula a mensagem, afirmação esta que não é apenas uma ‘profissão de fé’ destinada a preservar a materialidade da vida em nome de uma ética, antes constitui uma descrição científica adequada à natureza singular do vivo. Com efeito, se a mensagem não se confunde com o seu media em todas as situações, no vivo a mensagem é indissociável do media. Eis porque a clonagem aponta para os limites, que hoje parecem estar em vias de ser atingidos, da cultura da cópia que prevalece no Ocidente desde o advento da tipografia descrita por Marshall McLuhan na sua Galáxia Gutemberg". Assinala com inteira justeza Isabelle Rieusset-Lemarié que o que acontece actualmente com as possibilidades da engenharia genética equivale a ultrapassar o culto da mimesis, da imitação da natureza que longamente orientou a ciência e a arte ocidentais, e a avançar decididamente na senda da recriação das suas formas. Daí que Polly, a primeira ovelha-clone transgénica, clone e transgénica, seja também o primeiro protótipo de fábrica viva. A clonagem humana, muito mais do que servir propósitos enquadráveis nos estreitos limites da medicina da reprodução, abalançar-se-ia à transformação do embrião humano em produto fungível e comerciável à escala industrial, uma fábrica de bens de consumo, a começar, mas decerto que não a ficar-se, pelos usos médicos e farmacêuticos, aquilo que em inglês muito bem traduz o termo "commodification". A nosso ver, será sobretudo isso o que de mais inquietante se pode vislumbrar na clonagem humana. O que se afigura pôr em causa a unicidade individual na era da sua reprodução multimédia não é pois tanto duplicação dela pelo idêntico - eis o grande temor que ela mais comummente suscita - como a sua metamorfose.

Um apontamento final. Que, para se justificar a interdição da clonagem humana, se invoquem os direitos do clone, criatura por vir, criatura-sempre-por-vir, leva-nos já para o terreno dos direitos das gerações futuras, ou seja, dos sujeitos de direito que não podem sê-lo pelo simples facto de que ainda não são, os direitos daquilo que não existe, e, logo, uma nova metafísica a que um Hans Jonas não foi alheio. Tema interessantíssimo, mas a que haverá que dar outro seguimento.