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  A Liminaridade da Clonagem Reprodutiva Humana, ou Elogio da Sabedoria da Repugnância

  [ Hermínio Martins ]

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Num livro recentemente publicado, um reconhecido filósofo moral do Reino Unido, que se tem dedicado, de modo sistemático, a debates de interesse público geral e da área da saúde, relegou a questão da clonagem humana para o domínio do futurismo tecnológico, senão mesmo da fantasia tecnológica, para além do alcance da ética e, talvez, de qualquer tipo de reflexão filosófica séria, pelo menos nos tempos mais próximos. Isto é desconcertante, porque a questão tem sido abordada com alguma atenção por filósofos da moral, da lei, da biologia, da tecnologia, bem como por teólogos, desde há algum tempo. Já desde os anos 70 do séc. XX que pensadores da estatura de Hans Jonas debateram a vastidão e a gravidade das implicações do problema, enquanto convidados de simpósios dedicados ao tema. E, nos anos mais recentes, na sequência do marco que o aparecimento da ovelha Dolly passou a constituir, em 1997, o ritmo do debate aumentou, e numerosas publicações e colecções de ensaios foram surgindo, da autoria de académicos respeitados de variadas áreas e de países diferentes. A clonagem reprodutiva humana ainda não é uma realidade (embora a clonagem animal, tanto terapêutica como reprodutiva, já o seja, por certo; assim também a clonagem humana terapêutica, tanto de facto como de jure, embora tenha recebido pouca atenção filosófica), apesar de existir um corpus considerável de pensamento a ela dedicado (bem como muito comentário fácil, muitas vezes por parte de pessoas que poderiam ter dado melhor contributo).

A clonagem reprodutiva humana (CRH) está mais obviamente relacionada com a área das tecnologias reprodutivas genéticas, ou novas tecnologias reprodutivas, ainda que constitua um ramo distinto desta área, logo à partida: é pelo menos problemático considerar se as implicações sociais (por ex. de filiação e parentesco), éticas, axiológicas, e metafísicas desta área potencialmente nova das tecnologias reprodutivas podem ser tomadas apenas no prolongamento das mesmas implicações das tecnologias de reprodução assistida (fertilização in vitro) praticadas até agora, como se constituíssem qualquer espécie de continuidade (todos os que vêem como possível a solução de continuidade estão com certeza iludidos, ou pior). Aquilo a que poderíamos chamar o argumento de subsunção ou, talvez, a Tese Perfeita da Continuidade, defendida por um número considerável de especialistas de bioética e genética, e que está bem patente nas conferências publicadas, justificaria o juízo do filósofo já referido: de que a CRH, se porventura se impuser, e só nessa altura, não precisa de ser tratada com especificidade, porque já sabemos tudo o que é preciso em termos valorativos sobre as tecnologias reprodutivas, e sabemos que não têm contra-indicações (o principal, e tácito, sustentáculo deste tipo de juízo são os Estados Unidos, e o Ocidente Liberal: outros enquadramentos morais, ou mesmo outras correntes de pensamento do Ocidente nem são consideradas dignas de discussão, sem chegarem a ser alvo de recusa: que foi feito do "diálogo da humanidade" ou até do descritivo, ou mesmo normativo, relativismo cultural?). Essencialmente, está-se a partir de princípios falaciosos, já que, se é certo que há analogias entre a CRH e as tecnologias reprodutivas mais antigas (TR), igualmente há dissemelhanças, de entre as quais se destaca a assexualidade da CRH. A questão a ver é saber se isto traz uma diferença essencial à situação axiológica ou às implicações sociais dessa prática, a diferentes níveis de incidência. Prima facie, é defensável que este aspecto é uma novidade de uma ordem de grandeza muito maior, e um feito biotecnológico de muito maior alcance do que quaisquer dos que constituíram as tecnologias reprodutivas dos últimos trinta anos. Aqueles que puserem objecções a isto confrontar-se-ão, por certo, com a tese da perfeita continuidade como exemplo acabado de um "declive escorregadio": O argumento do "declive escorregadio" é usado contra as novas tecnologias, mas os defensores do argumento também defendem que, se há uma continuidade em relação às tecnologias anteriores, então a nova solução deve ser adoptada; e isto é o mesmo, claro, que defende a tese do "declive escorregadio". Os sociólogos têm mostrado com frequência como as tecnologias estabelecidas são de tal modo tomadas como certas, omnipresentes, implicadas no correr da vida diária, que se "naturalizam": todos aqueles que procuram legitimar as tecnologias futuras, com o argumento de que prolongam as que já se tornaram familiares, tentam recorrer a uma espécie de naturalização antecipatória, ou prospectiva. Claro que muitos especialistas de bioética negam que o declive escorregadio seja contínuo, defendendo que nunca tem lugar um impulso incontrolável, ou uma transição irrefreável, e que podemos sempre parar a qualquer momento, numa série de inovações biotecnológicas estreitamente relacionadas quando efeitos prejudiciais significativos forem descobertos (e isto parece mais matéria de confiança optimista do que outra coisa). Acresce a esta a tese secundária de que tecnologias de reparação dos estragos infligidos pelas tecnologias podem sempre ser desenvolvidas em bom tempo, antes que um prejuízo irreversível de grande escala tenha sido causado aos macro-sistemas (ecossistemas, sistemas climáticos, solos, lagos, etc). Para uma dada tecnologia n, uma tecnologia n+1 reparadora poderá ser sempre desenvolvida, e em bom tempo.

Uma outra questão, de menor importância, que pode ser avançada é a presunção, ou mesmo a convicção, de que as tecnologias reprodutivas aceites estão para ficar, e, porque foram aceites, podemos tomar como certo que a questão da sua certidão e virtude axiológica não precisa, ou não deve, voltar a ser levantada (pelo menos naquele a que podemos chamar o presente moral). Não só a aceitação é tomada como conclusiva no que diz respeito à validade normativa (uma versão social da falácia naturalista) mas a aceitação de cada nova tecnologia reprodutiva é tomada como factual, racional e valorativamente irreversível por uma espécie de efeito de engrenagem em cadeia. Isto é singular, pois, apesar da aceitação do princípio da permanente revisibilidade de todas as premissas (cognitivas, metodológicas, teóricas, valorativas), à imagem do que fazem muitas pessoas de pensamento disciplinado, bem intencionadas e filosoficamente informadas, não fica de parte a possibilidade de que - à luz de experiências subsequentes e outros avanços, de reflexão teórica, por exemplo, a respeito das tecnologias reprodutivas, ou outros contextos de avaliação - possamos acabar por reconsiderar o que foi aceite (de um modo análogo aos procedimentos do método hipotético-dedutivo ou do equilíbrio reflexivo alargado, embora isto tenda para um excessivo conservadorismo, ao contrário do que faz a versão falsificacionista de Popper do primeiro método). As reavaliações analíticas, explanatórias ou axionormativas do passado, constituem a substância da modernidade cultural: não há razão para delas isentar as tecnologias correntes, aceites, e mesmo estabelecidas, e deixar de sujeitá-las à reconsideração e reavaliação, à luz dos seus impactos, especialmente ecológicos e humano-biológicos, à luz de novas, ou crescentes, provas (o uso de pesticidas; o recurso constante a raios-X a que milhões, especialmente crianças, foram expostos, durante décadas, desnecessariamente, como agora somos levados a acreditar; a prática da lobotomia; o uso de várias drogas milagrosas, tudo casos a contemplar). Não nos limitamos, nem mesmo nesta sociedade crescentemente hipertecnológica, a desenvolver tecnologias aceites, e defendendo, com base na sua aceitação, que outras, análogas, ou ainda mais sofisticadas, deverão, por implicação, ser aceites: por vezes, olhamos para trás e rejeitamos tecnologias que se tornaram muito utilizadas; e fazemo-lo até justamente porque se tornaram tão universalmente aceites, por todo o mundo. Tão largamente usadas e abusadas, como no caso da utilização grotescamente massiva e crescente de pesticidas, em todos os tipos de ecossistemas. Somos, com certeza, capazes de aprender com a experiência (e isso inclui a auto-reflexão amadurecida) para conseguir contemplar o impacto de certas tecnologias e práticas bio-médicas a uma nova luz, através de um novo conhecimento, nova informação, nova apreciação dos impactos das práticas, não apenas em nós próprios, mas, possivelmente, em futuras gerações: uma vez que os impactos podem ser tão duradouros, tão persistentes, tão latentes, tão profundos e praticamente irreversíveis, acabámos por incluir as futuras gerações no nosso horizonte moral, e de uma forma talvez sem precedentes. Alguns filósofos morais, senão mesmo filósofos populares, ainda tomam isto como paradoxal (como poderão indivíduos não especificáveis ter interesses ou vontades?). Não se pode passar apenas de práticas aceites, como, por exemplo, as técnicas reprodutivas que se estabeleceram ou "naturalizaram" nos últimos vinte e cinco anos (e quão curto é este período, mesmo para o homo sapiens sapiens) para a consequente aceitação de uma nova tecnologia reprodutiva, a ser adicionada ao repertório existente, porque técnicas anteriores, supostamente análogas, passaram a ser utilizadas (uma espantosa interferência linear, directa e simples, às vezes traçada pelos mesmos académicos que alinham com o procedimento coerenticista, alegadamente não-linear, do "equilíbrio reflexivo alargado" de Rawls-Daniels: o que haverá de "alargado" neste tipo de interferência, com o seu eixo único de precedência?). Tal como nas nossas vidas individuais ou colectivas podemos passar a ver o nosso passado de um novo modo (embora alguns possam argumentar que o arrependimento, o remorso, a culpa, a expiação e sentimentos similares não têm lugar, ou têm um papel de facto e de jure muito limitado no nosso esquema conceptual corrente, moral e ético-político, de acordo com o qual vivem o Homem e a Mulher Proteiformes), também na avaliação das tecnologias podemos conceber o passado recente de um novo modo, e não apenas o presente como uma extensão de um repertório presumivelmente valioso, ou mesmo justificável por si mesmo. Pode haver (e claro que também pretendo argumentar que deveria haver, com igual caução racional) uma retransmissão retrospectiva de desvalorização e invalidação, tal como para os extensionalistas há uma transmissão de valor e validade automática, apodíctica, dinâmica, da tecnologia correntemente aceite para a tecnologia biogenética ou bioreprogenética, presumivelmente análoga, emergente ou projectada. Esta última fornece, de facto, uma via apelativa e fácil para desproblematizar e neutralizar o que a ética popular ou o senso comum pode pensar, como quando toma a CRH como algo muito perturbante. Mas a inovação tecnológica, especialmente no que diz respeito à reprodução humana, costuma progredir apenas através da constante adiaforização de campos anteriormente dotados de valor, tal como fez o capitalismo moderno, como aponta Carl Schmitt no seu inventário das sucessivas neutralizações feitas no Ocidente; e especialmente Schumpeter, que via o capitalismo, e não a ciência, como o destruidor da mentalidade pré-lógica da participação mística: pode até dizer-se que este processo é tão parte do seu motor principal quanto o conhecimento e o experimentalismo, embora isto possa ser invertido, em parte, como no caso dos protestos pelos direitos dos animais e da mudança da sensibilidade moral em relação à dor animal e ao sofrimento, nas últimas décadas (embora em prática há muito tempo). Esta não é uma matéria inconsequente, se tivermos em conta as centenas de milhares de animais de laboratório manipulados ou mortos ano após ano, e as disputas correntes sobre os organismos geneticamente modificados (OGM), cujo uso está a ser acima de tudo imposto pelo governo, no Reino Unido, contra a opinião pública. Aquilo a que chamámos o efeito de engrenagem em cadeia de aceitação/validação de cada tecnologia emergente que se apresenta, ao qual os defensores da CRH recorrem preferencialmente como argumento decisivo, só nos pode pôr no caminho de um conservadorismo auto-suficiente, avesso ao conhecimento e à auto-crítica, capaz de sacrificar a abertura do futuro (tão estimado pelos liberais como sendo uma das suas profissões de fé centrais, e justamente) em prol de um passado recente sem exame, tido como certo e, até, triunfalisticamente proclamado.

Todos os ramos do movimento eugénico, que incluiu praticamente todos os países ocidentais, entre países do centro e da semi-perifieria, advogaram grandes mudanças nas instituições reprodutivas e nos seus procedimentos, e trabalharam arduamente e com um grande sentido de urgência para isso: a urgência foi uma função da crença de que os stocks genéticos, étnicos, nacionais, orientados por classes sociais, e a própria espécie, estavam a deteriorar-se progressivemente. E esta crença em tendências disgénicas globais ou locais, em populações humanas sob condições de pan-mistura, de liberdade reprodutiva ou de, pelo menos, liberdade reprodutiva não-orientada, continua a ser reiterada: veja-se, por exemplo, recentemente, por parte de um dos teóricos do evolucionismo do nosso tempo, o falecido W. D. Hamilton, e outros de igual distinção científica, mesmo no campo da genética (deste ponto de vista as nossas sociedades estão geneticamente doentes, ou em deterioração genética, o que era, com certeza, um assunto a ter em conta por todos, à excepção apenas dos mais libertários, se tal fosse verdade, ou mesmo possível). Contudo, aquele que foi, senão o primeiro, pelo menos um dos primeiros textos a antecipar mais do que apenas mudanças nas instituições, o desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas sobre uma base científica, a partir das descobertas da genética, da embriologia e da bioquímica, para o melhoramento da espécie, foi o especialista em genética, matemático, teórico do evolucionismo e polímato J. B. S. Haldane, no seu panfleto Daedalus, de 1923. Não se trata de uma mera curiosidade histórica, já que teve um impacto imediato nas classes educadas (sendo reimpresso muitas vezes nos anos seguintes), despertou o interesse de uma das primeiras mulheres do jornalismo científico do reino Unido, que não só casou de seguida com o autor (e se tornou conhecida como Charlotte Haldane) como também escreveu um romance de ficção científica feminista inspirado pela problemática (e recentemente reeditado e discutido por estudiosos do feminismo). A obra (juntamente com outros trabalhos) desencadeou uma resposta sob a forma de um panfleto, depois transformado em livro, da autoria de Bertrand Russel. Tratava-se de uma crítica dos processos de transformação da sociedade através de técnicas psicológicas, biológicas ou industriais. The Scientific Outlook foi publicado em 1931 e foi uma das influências mais importantes de Aldous Huxley, cujo romance Brave New World, também publicado em 1931, tratava, de algum modo, o papel das tecnologias das tecnologias reprodutivas humanas, incluindo a ectogénese, e a produção em série de seres humanos geneticamente idênticos (embora não fossem "clones" no preciso sentido técnico contemporâneo, pois não eram produzidos por "transferência de núcleos de células somáticas" e, ao contrário dos clones e clonados actuais, eram seres co-natais) construídos para serem verdadeiramente fungíveis e intermutáveis, tal como o Ford modelo T, através de uma espécie de Fordismo genético, tanto a nível psicológico, como psicotrópico e social, numa sociedade cientificamente planeada (que antecipava a "dessublimação repressiva" atribuída às sociedades tardo-capitalistas, algumas décadas mais tarde). Sempre à Esquerda, Haldane tornou-se depois membro do Partido Comunista Britânico, onde permaneceu durante bastantes anos. O seu livro, que teve grande aceitação, é relevante pelo lançamento de uma série de inovações biotecnológicas, não só destinadas ao melhoramento da agricultura e agronomia ou saúde pública, mas também às estruturas básicas da reprodução: Haldane não acertou ao especular sobre a ectogénese e a partenogénese nos humanos, que não estão sequer no horizonte; mas o seu alvo principal, a transformação biotecnológica da reprodução humana, e a ênfase na Era que se aproxima, marcada, acima de tudo, na produção, na medicina, e na generalidade das áreas da vida, pelas invenções biológicas, foi certamente profético (numa altura em que o pensamento convencional a respeito do futuro da economia ainda estava associado às invenções físicas e químicas, em paz e guerra, embora Haldane ainda considerasse a guerra química como um mal necessário). Pode-se sempre considerar que a CRH será o "melhor que se pode arranjar" em relação à ectogénese, já que constitui, afinal, um afastamento radical em relação à forma básica de reprodução que esteve em prática ao longo da história da espécie, e da reprodução de todos os seres sexuados da história da vida (conseguida, evidentemente, com Dolly, uma estreia em termos da biohistória).

A radicalidade que esperávamos, e mesmo desejávamos, da parte das tecnologias reprodutivas humanas, estaria suficientemente cumprida através deste passo. Note-se que Haldane não via esta nova Era de invenções biológicas, na qual vivemos e amamos (ou não, conforme os casos), como apenas biologicamente benéfica para os indivíduos e para a espécie, mas também como felizmente "escandalosa", intelectual e moralmente catártica, acima de tudo - especialmente nos seus efeitos desafiadores da religião, da autoridade dos sacerdotes e de códigos morais e legais (que o faziam sofrer, pessoal e profissionalmente). Libertava-se, assim, todo o domínio da sexualidade e reprodução humanas das limitações não-tecnológicas existentes ou, talvez mesmo, de todas as limitações, fossem as relações sociais ligadas à reprodução, digamos, separando o sexo da reprodução (permitindo assim que a actividade sexual gratificante seja maximizada sem barreiras, como no romance de Huxley, no qual até o ciúme foi suprimido, um pouco antes de Margaret Mead ter feito o seu famoso anúncio de que a inexistência do ciúme era um facto antropológico, e não da ficção utópica, retirando-o de vez da lista dos supostos universais da humanidade), e separando a reprodução da actividade sexual, se não através da CRH, então não prevista, ou impossível de prever, ao menos, talvez, pela partenogénese. Separavam-se a reprodução e a actividade sexual das contingências legais, pelo menos para além de um certo mínimo: para Haldane, estas invenções biológicas eram, também, tal como foi dito do telescópio no século XVIII, uma "artilharia moral" para bombardear os céus espirituais. Não me parece a mim evidente que precisemos de mais uma nova "artilharia moral" no Ocidente, ou de criar um novo meio tecnológico para este fim. Haldane acabou mesmo por ir trabalhar e viver para a Índia, tendo exprimido muita simpatia por algumas facetas do modo de vida hindu: vive la différence!, e a pluralidade de civilizações!

A CRH, como muitas outras inovações tecnológicas da história recente, e mesmo das tecnologias da informação, não se imporá pelo estímulo do mercado, ou sequer pela imprensa ou pela pura necessidade humana: a impor-se, consegui-lo-á por meio da própria dinâmica tecnológica, pelo impulso de realização do que é tecnologicamente possível como tal, e pelo crédito, fama ou notoriedade adquiridos pelos vencedores da corrida. As justificações podem depois encontrar-se após o acontecimento (até, talvez, uma espécie de justificação mercantil: é o caso da clonagem de animais de estimação - uma espécie de membros virtuais da família. Alguma procura parece já ter expressão, e consta que há pagamentos feitos com grande avanço a pelo menos uma empresa nos Estados Unidos, mas até agora ainda não houve entregas deste tipo. Parece haver uma ironia das circunstâncias no facto de as espécies escolhidas para animais de estimação pelos humanos não estarem entre as espécies mais fáceis de clonar). Ainda assim, as perspectivas para a CRH sobem num contexto estrutural e histórico que é, não só de explosão da informação genética e genómica e das capacidades de processamento de informação, mas também de explosão do mercado genético global, com a expansão sempre crescente do mercado de serviços genéticos de vários tipos, a utilitarização de entidades epistémicas na genética e na biotecnologia, o impulso da engenharia genética em todas as suas facetas, incluindo não só a somática (a terapia genética somática revelou-se um grande desapontamento) mas também as perspectivas da engenharia do genoma das células estaminais. A reprogenética, ou engenharia do genoma das células estaminais, implica aquilo a que se chamava a eugenia negativa ou positiva, incluindo, então, o melhoramento - talvez o melhoramento indefinido de todas as qualidades e atributos, físicos ou mentais, dos seres humanos, com algum tipo de base genética, algo que possa ser composto e reforçado, mesmo dentro do tempo de uma vida, pela activação ou substituição de "superalelos" instalados nos indivíduos melhorados geneticamente no estado pré-natal. Assim se melhorava o ser, feminino ou masculino, durante o seu período de vida, todas as vezes necessárias, pelo menos dentro de um leque determinado de traços. Ora, a CRH tem condições para articular-se com estes desenvolvimentos, dadas as actuais tendências de comercialização e utilitarização de genes e órgãos ("o banco de órgãos universal") e de serviços de reprodução assistida; dado o clima moral associado a estas tendências, isto terá um curso ainda imprevisível, e avaliá-lo apenas em termos das "preferências" (sempre supostamente determinadas, pré-estabelecidas, fixas, imperiosas, auto-contidas, coerentes e completas) daqueles que serão clonados, parece-me bastante irrealista. Em si mesma, parece fazer a conjugação (em certos aspectos muito inquietante) de dois grandes sonhos. Um é muito antigo, e o outro talvez tenha ganho destaque recentemente: o sonho da Cópia Perfeita e o sonho do Bebé Perfeito, combinados no Ser Perfeito, ou Sempre Aperfeiçoável (mas claro que podem estar envolvidas muitas outras motivações e, de acordo com o princípio da heterogonia das finalidades, é provável que sim). É uma, mas apenas uma, das vias em que está a evoluir o perfeccionismo genético.

As reacções das massas às perspectivas da CRH têm sido de grande preocupação, e mesmo repugnância, misturadas, contudo, com um sentimento de resignação. A preocupação e a repugnância parecem-me maioritariamente sãs, e acho-me inteiramente de acordo com o extraordinariamente eloquente e revelador ensaio de Leon Kass, intitulado "A Sabedoria da Repugnância", neste e muitos outros aspectos pertinentes. E que dizer da resignação (totalmente compreensível, à luz da torrente da moda da genética e das tecnologias reprodutivas, da ainda maior penetração do mercado genotecnológico em todos os ramos da vida, e da subjugação de cada vez mais áreas da intimidade, privacidade e da pessoa a cânones "Tecnológico-Benthamianos", para usar o termo de F. R. Leavis)? Em termos metafísicos, um Princípio de Plenitude funcionou, primeiro, no pensamento do Ocidente, como uma celebração de uma imutável Ordem da Natureza. Depois, como uma heurística para o universalmente inclusivo processo evolutivo e um princípio teleológico das ciências em geral; mas, mais recentemente, tem servido como uma caução do desenvolvimento tecnológico (embora continue importante na cosmologia e no pensamento modal, por exemplo no chamado realismo modal de David Lewis). Na última forma é também conhecido como "o imperativo tecnológico", ou, numa fórmula mais mundana, a "regra Gabor", ou ainda, de outras formas, tais como "o que pode ser, deve ser", identificado no discurso tecnólatra pelo teórico de sistemas H. Obzekhan. Neste ponto, podemos e devemos delimitar fronteiras: há um elemento de arbitrariedade em qualquer delimitação de fronteiras, mas tal não as torna indefensáveis ou ilegítimas, pois qualquer vida a ser vivida tem de ser mantida por fronteiras, não atribuídas de forma óbvia pela natureza, embora esta liminaridade da passagem para a reprodução assexuada dos seres humanos e a produção deliberada de cópias, mesmo se "perfeitas", pareça mais luminosa do que a maior parte das tecnologias reprodutivas, uma espécie de tremendum, de incursão completamente deslocada no "sublime tecnológico". Claro que a tese de que esta passagem implica uma liminaridade, a transposição de um limiar metafisicamente significativo, uma mudança num parâmetro básico da existência humana, seria totalmente rejeitada por muitos, senão todos os especialistas de genética e bioética. Mas aqui há uma brecha de valores e hermenêutica entre estes especialistas e um substancial caudal de opinião. Este cenário só levianamente poderia ser tomado como o de um choque de campos opostos: pró-ciência versus anti-ciência, iluminados versus desinformados; parafraseando Whitehead, a marca de uma pessoa civilizada está na sua constância em relação a algumas distinções e fronteiras, por mais precárias ou desafiáveis, querendo manter, mesmo na expectativa da derrota, o seu papel de testemunha.

De acordo com o mesmo espírito podemos citar Paul Ramsey, que se dedicou a algumas destas questões da ética das tecnologias reprodutivas há já algumas décadas (um dos seus livros nesta área chamou-se, já na altura, O Homem Fabricado (The Fabricated Man): "um homem de consciência séria faz questão de afirmar que, na consideração de questões eticamente urgentes, pode haver algumas coisas que os humanos não devem fazer. As coisas boas que os humanos fazem podem ser tornadas completas apenas pelas coisas que eles se recusam a fazer". Ou, por outras palavras, a autonomia racional humana e a capacidade humana para o bem implicam tanta nolonté (o útil termo de Renouvier) como volições positivas, enquanto volonté. E nunca antes como agora, na conjuntura das liminaridades.

Apud Leon Kass, "The wisdom of repugnance" (originalmente publicado na revista The New Republic, em 1997) e reimpresso noutros lugares, incluindo The Human Cloning Debate (O Debate em Redor da Clonagem Humana), org. Glenn McGee (Berkeley, Berkeley Hill Books, 2000; e em The Ethics of Human Cloning, (Ética da Clonagem Humana) Washington DC, AEI, 1998).