Num livro recentemente publicado,
um reconhecido filósofo moral do Reino Unido, que se
tem dedicado, de modo sistemático, a debates de interesse
público geral e da área da saúde, relegou
a questão da clonagem humana para o domínio
do futurismo tecnológico, senão mesmo da fantasia
tecnológica, para além do alcance da ética
e, talvez, de qualquer tipo de reflexão filosófica
séria, pelo menos nos tempos mais próximos.
Isto é desconcertante, porque a questão tem
sido abordada com alguma atenção por filósofos
da moral, da lei, da biologia, da tecnologia, bem como por
teólogos, desde há algum tempo. Já desde
os anos 70 do séc. XX que pensadores da estatura de
Hans Jonas debateram a vastidão e a gravidade das implicações
do problema, enquanto convidados de simpósios dedicados
ao tema. E, nos anos mais recentes, na sequência do
marco que o aparecimento da ovelha Dolly passou a constituir,
em 1997, o ritmo do debate aumentou, e numerosas publicações
e colecções de ensaios foram surgindo, da autoria
de académicos respeitados de variadas áreas
e de países diferentes. A clonagem reprodutiva humana
ainda não é uma realidade (embora a clonagem
animal, tanto terapêutica como reprodutiva, já
o seja, por certo; assim também a clonagem humana terapêutica,
tanto de facto como de jure, embora tenha recebido
pouca atenção filosófica), apesar de
existir um corpus considerável de pensamento
a ela dedicado (bem como muito comentário fácil,
muitas vezes por parte de pessoas que poderiam ter dado melhor
contributo).
A clonagem reprodutiva humana
(CRH) está mais obviamente relacionada com a área
das tecnologias reprodutivas genéticas, ou novas tecnologias
reprodutivas, ainda que constitua um ramo distinto desta área,
logo à partida: é pelo menos problemático
considerar se as implicações sociais (por ex.
de filiação e parentesco), éticas, axiológicas,
e metafísicas desta área potencialmente nova
das tecnologias reprodutivas podem ser tomadas apenas no prolongamento
das mesmas implicações das tecnologias de reprodução
assistida (fertilização in vitro) praticadas
até agora, como se constituíssem qualquer espécie
de continuidade (todos os que vêem como possível
a solução de continuidade estão com certeza
iludidos, ou pior). Aquilo a que poderíamos chamar
o argumento de subsunção ou, talvez, a Tese
Perfeita da Continuidade, defendida por um número considerável
de especialistas de bioética e genética, e que
está bem patente nas conferências publicadas,
justificaria o juízo do filósofo já referido:
de que a CRH, se porventura se impuser, e só nessa
altura, não precisa de ser tratada com especificidade,
porque já sabemos tudo o que é preciso em termos
valorativos sobre as tecnologias reprodutivas, e sabemos que
não têm contra-indicações (o principal,
e tácito, sustentáculo deste tipo de juízo
são os Estados Unidos, e o Ocidente Liberal: outros
enquadramentos morais, ou mesmo outras correntes de pensamento
do Ocidente nem são consideradas dignas de discussão,
sem chegarem a ser alvo de recusa: que foi feito do "diálogo
da humanidade" ou até do descritivo, ou mesmo
normativo, relativismo cultural?). Essencialmente, está-se
a partir de princípios falaciosos, já que, se
é certo que há analogias entre a CRH e as tecnologias
reprodutivas mais antigas (TR), igualmente há dissemelhanças,
de entre as quais se destaca a assexualidade da CRH. A questão
a ver é saber se isto traz uma diferença essencial
à situação axiológica ou às
implicações sociais dessa prática, a
diferentes níveis de incidência. Prima facie,
é defensável que este aspecto é uma novidade
de uma ordem de grandeza muito maior, e um feito biotecnológico
de muito maior alcance do que quaisquer dos que constituíram
as tecnologias reprodutivas dos últimos trinta anos.
Aqueles que puserem objecções a isto confrontar-se-ão,
por certo, com a tese da perfeita continuidade como exemplo
acabado de um "declive escorregadio": O argumento
do "declive escorregadio" é usado contra
as novas tecnologias, mas os defensores do argumento também
defendem que, se há uma continuidade em relação
às tecnologias anteriores, então a nova solução
deve ser adoptada; e isto é o mesmo, claro, que defende
a tese do "declive escorregadio". Os sociólogos
têm mostrado com frequência como as tecnologias
estabelecidas são de tal modo tomadas como certas,
omnipresentes, implicadas no correr da vida diária,
que se "naturalizam": todos aqueles que procuram
legitimar as tecnologias futuras, com o argumento de que prolongam
as que já se tornaram familiares, tentam recorrer a
uma espécie de naturalização antecipatória,
ou prospectiva. Claro que muitos especialistas de bioética
negam que o declive escorregadio seja contínuo, defendendo
que nunca tem lugar um impulso incontrolável, ou uma
transição irrefreável, e que podemos
sempre parar a qualquer momento, numa série de inovações
biotecnológicas estreitamente relacionadas quando efeitos
prejudiciais significativos forem descobertos (e isto parece
mais matéria de confiança optimista do que outra
coisa). Acresce a esta a tese secundária de que tecnologias
de reparação dos estragos infligidos pelas tecnologias
podem sempre ser desenvolvidas em bom tempo, antes que um
prejuízo irreversível de grande escala tenha
sido causado aos macro-sistemas (ecossistemas, sistemas climáticos,
solos, lagos, etc). Para uma dada tecnologia n, uma
tecnologia n+1 reparadora poderá ser sempre
desenvolvida, e em bom tempo.
Uma outra questão,
de menor importância, que pode ser avançada é
a presunção, ou mesmo a convicção,
de que as tecnologias reprodutivas aceites estão para
ficar, e, porque foram aceites, podemos tomar como certo que
a questão da sua certidão e virtude axiológica
não precisa, ou não deve, voltar a ser levantada
(pelo menos naquele a que podemos chamar o presente moral).
Não só a aceitação é tomada
como conclusiva no que diz respeito à validade normativa
(uma versão social da falácia naturalista) mas
a aceitação de cada nova tecnologia reprodutiva
é tomada como factual, racional e valorativamente irreversível
por uma espécie de efeito de engrenagem em cadeia.
Isto é singular, pois, apesar da aceitação
do princípio da permanente revisibilidade de todas
as premissas (cognitivas, metodológicas, teóricas,
valorativas), à imagem do que fazem muitas pessoas
de pensamento disciplinado, bem intencionadas e filosoficamente
informadas, não fica de parte a possibilidade de que
- à luz de experiências subsequentes e outros
avanços, de reflexão teórica, por exemplo,
a respeito das tecnologias reprodutivas, ou outros contextos
de avaliação - possamos acabar por reconsiderar
o que foi aceite (de um modo análogo aos procedimentos
do método hipotético-dedutivo ou do equilíbrio
reflexivo alargado, embora isto tenda para um excessivo conservadorismo,
ao contrário do que faz a versão falsificacionista
de Popper do primeiro método). As reavaliações
analíticas, explanatórias ou axionormativas
do passado, constituem a substância da modernidade cultural:
não há razão para delas isentar as tecnologias
correntes, aceites, e mesmo estabelecidas, e deixar de sujeitá-las
à reconsideração e reavaliação,
à luz dos seus impactos, especialmente ecológicos
e humano-biológicos, à luz de novas, ou crescentes,
provas (o uso de pesticidas; o recurso constante a raios-X
a que milhões, especialmente crianças, foram
expostos, durante décadas, desnecessariamente, como
agora somos levados a acreditar; a prática da lobotomia;
o uso de várias drogas milagrosas, tudo casos a contemplar).
Não nos limitamos, nem mesmo nesta sociedade crescentemente
hipertecnológica, a desenvolver tecnologias aceites,
e defendendo, com base na sua aceitação, que
outras, análogas, ou ainda mais sofisticadas, deverão,
por implicação, ser aceites: por vezes, olhamos
para trás e rejeitamos tecnologias que se tornaram
muito utilizadas; e fazemo-lo até justamente porque
se tornaram tão universalmente aceites, por todo o
mundo. Tão largamente usadas e abusadas, como no caso
da utilização grotescamente massiva e crescente
de pesticidas, em todos os tipos de ecossistemas. Somos, com
certeza, capazes de aprender com a experiência (e isso
inclui a auto-reflexão amadurecida) para conseguir
contemplar o impacto de certas tecnologias e práticas
bio-médicas a uma nova luz, através de um novo
conhecimento, nova informação, nova apreciação
dos impactos das práticas, não apenas em nós
próprios, mas, possivelmente, em futuras gerações:
uma vez que os impactos podem ser tão duradouros, tão
persistentes, tão latentes, tão profundos e
praticamente irreversíveis, acabámos por incluir
as futuras gerações no nosso horizonte moral,
e de uma forma talvez sem precedentes. Alguns filósofos
morais, senão mesmo filósofos populares, ainda
tomam isto como paradoxal (como poderão indivíduos
não especificáveis ter interesses ou vontades?).
Não se pode passar apenas de práticas aceites,
como, por exemplo, as técnicas reprodutivas que se
estabeleceram ou "naturalizaram" nos últimos
vinte e cinco anos (e quão curto é este período,
mesmo para o homo sapiens sapiens) para a consequente
aceitação de uma nova tecnologia reprodutiva,
a ser adicionada ao repertório existente, porque técnicas
anteriores, supostamente análogas, passaram a ser utilizadas
(uma espantosa interferência linear, directa e simples,
às vezes traçada pelos mesmos académicos
que alinham com o procedimento coerenticista, alegadamente
não-linear, do "equilíbrio reflexivo alargado"
de Rawls-Daniels: o que haverá de "alargado"
neste tipo de interferência, com o seu eixo único
de precedência?). Tal como nas nossas vidas individuais
ou colectivas podemos passar a ver o nosso passado de um novo
modo (embora alguns possam argumentar que o arrependimento,
o remorso, a culpa, a expiação e sentimentos
similares não têm lugar, ou têm um papel
de facto e de jure muito limitado no nosso esquema
conceptual corrente, moral e ético-político,
de acordo com o qual vivem o Homem e a Mulher Proteiformes),
também na avaliação das tecnologias podemos
conceber o passado recente de um novo modo, e não apenas
o presente como uma extensão de um repertório
presumivelmente valioso, ou mesmo justificável por
si mesmo. Pode haver (e claro que também pretendo argumentar
que deveria haver, com igual caução racional)
uma retransmissão retrospectiva de desvalorização
e invalidação, tal como para os extensionalistas
há uma transmissão de valor e validade automática,
apodíctica, dinâmica, da tecnologia correntemente
aceite para a tecnologia biogenética ou bioreprogenética,
presumivelmente análoga, emergente ou projectada. Esta
última fornece, de facto, uma via apelativa e fácil
para desproblematizar e neutralizar o que a ética popular
ou o senso comum pode pensar, como quando toma a CRH como
algo muito perturbante. Mas a inovação tecnológica,
especialmente no que diz respeito à reprodução
humana, costuma progredir apenas através da constante
adiaforização de campos anteriormente dotados
de valor, tal como fez o capitalismo moderno, como aponta
Carl Schmitt no seu inventário das sucessivas neutralizações
feitas no Ocidente; e especialmente Schumpeter, que via o
capitalismo, e não a ciência, como o destruidor
da mentalidade pré-lógica da participação
mística: pode até dizer-se que este processo
é tão parte do seu motor principal quanto o
conhecimento e o experimentalismo, embora isto possa ser invertido,
em parte, como no caso dos protestos pelos direitos dos animais
e da mudança da sensibilidade moral em relação
à dor animal e ao sofrimento, nas últimas décadas
(embora em prática há muito tempo). Esta não
é uma matéria inconsequente, se tivermos em
conta as centenas de milhares de animais de laboratório
manipulados ou mortos ano após ano, e as disputas correntes
sobre os organismos geneticamente modificados (OGM), cujo
uso está a ser acima de tudo imposto pelo governo,
no Reino Unido, contra a opinião pública.
Aquilo a que chamámos o efeito de engrenagem em cadeia
de aceitação/validação de cada
tecnologia emergente que se apresenta, ao qual os defensores
da CRH recorrem preferencialmente como argumento decisivo,
só nos pode pôr no caminho de um conservadorismo
auto-suficiente, avesso ao conhecimento e à auto-crítica,
capaz de sacrificar a abertura do futuro (tão estimado
pelos liberais como sendo uma das suas profissões de
fé centrais, e justamente) em prol de um passado recente
sem exame, tido como certo e, até, triunfalisticamente
proclamado.
Todos os ramos do movimento
eugénico, que incluiu praticamente todos os países
ocidentais, entre países do centro e da semi-perifieria,
advogaram grandes mudanças nas instituições
reprodutivas e nos seus procedimentos, e trabalharam arduamente
e com um grande sentido de urgência para isso: a urgência
foi uma função da crença de que os stocks
genéticos, étnicos, nacionais, orientados por
classes sociais, e a própria espécie, estavam
a deteriorar-se progressivemente. E esta crença em
tendências disgénicas globais ou locais, em populações
humanas sob condições de pan-mistura, de liberdade
reprodutiva ou de, pelo menos, liberdade reprodutiva não-orientada,
continua a ser reiterada: veja-se, por exemplo, recentemente,
por parte de um dos teóricos do evolucionismo do nosso
tempo, o falecido W. D. Hamilton, e outros de igual distinção
científica, mesmo no campo da genética (deste
ponto de vista as nossas sociedades estão geneticamente
doentes, ou em deterioração genética,
o que era, com certeza, um assunto a ter em conta por todos,
à excepção apenas dos mais libertários,
se tal fosse verdade, ou mesmo possível). Contudo,
aquele que foi, senão o primeiro, pelo menos um dos
primeiros textos a antecipar mais do que apenas mudanças
nas instituições, o desenvolvimento de
novas tecnologias reprodutivas sobre uma base científica,
a partir das descobertas da genética, da embriologia
e da bioquímica, para o melhoramento da espécie,
foi o especialista em genética, matemático,
teórico do evolucionismo e polímato J. B. S.
Haldane, no seu panfleto Daedalus, de 1923. Não
se trata de uma mera curiosidade histórica, já
que teve um impacto imediato nas classes educadas (sendo reimpresso
muitas vezes nos anos seguintes), despertou o interesse de
uma das primeiras mulheres do jornalismo científico
do reino Unido, que não só casou de seguida
com o autor (e se tornou conhecida como Charlotte Haldane)
como também escreveu um romance de ficção
científica feminista inspirado pela problemática
(e recentemente reeditado e discutido por estudiosos do feminismo).
A obra (juntamente com outros trabalhos) desencadeou uma resposta
sob a forma de um panfleto, depois transformado em livro,
da autoria de Bertrand Russel. Tratava-se de uma crítica
dos processos de transformação da sociedade
através de técnicas psicológicas, biológicas
ou industriais. The Scientific Outlook foi publicado
em 1931 e foi uma das influências mais importantes de
Aldous Huxley, cujo romance Brave New World, também
publicado em 1931, tratava, de algum modo, o papel das tecnologias
das tecnologias reprodutivas humanas, incluindo a ectogénese,
e a produção em série de seres humanos
geneticamente idênticos (embora não fossem "clones"
no preciso sentido técnico contemporâneo, pois
não eram produzidos por "transferência de
núcleos de células somáticas" e,
ao contrário dos clones e clonados actuais, eram seres
co-natais) construídos para serem verdadeiramente fungíveis
e intermutáveis, tal como o Ford modelo T, através
de uma espécie de Fordismo genético,
tanto a nível psicológico, como psicotrópico
e social, numa sociedade cientificamente planeada (que antecipava
a "dessublimação repressiva" atribuída
às sociedades tardo-capitalistas, algumas décadas
mais tarde). Sempre à Esquerda, Haldane tornou-se depois
membro do Partido Comunista Britânico, onde permaneceu
durante bastantes anos. O seu livro, que teve grande aceitação,
é relevante pelo lançamento de uma série
de inovações biotecnológicas, não
só destinadas ao melhoramento da agricultura e agronomia
ou saúde pública, mas também às
estruturas básicas da reprodução: Haldane
não acertou ao especular sobre a ectogénese
e a partenogénese nos humanos, que não estão
sequer no horizonte; mas o seu alvo principal, a transformação
biotecnológica da reprodução humana,
e a ênfase na Era que se aproxima, marcada, acima de
tudo, na produção, na medicina, e na generalidade
das áreas da vida, pelas invenções biológicas,
foi certamente profético (numa altura em que o pensamento
convencional a respeito do futuro da economia ainda estava
associado às invenções físicas
e químicas, em paz e guerra, embora Haldane ainda considerasse
a guerra química como um mal necessário). Pode-se
sempre considerar que a CRH será o "melhor que
se pode arranjar" em relação à ectogénese,
já que constitui, afinal, um afastamento radical em
relação à forma básica de reprodução
que esteve em prática ao longo da história da
espécie, e da reprodução de todos os
seres sexuados da história da vida (conseguida, evidentemente,
com Dolly, uma estreia em termos da biohistória).
A radicalidade que esperávamos,
e mesmo desejávamos, da parte das tecnologias reprodutivas
humanas, estaria suficientemente cumprida através deste
passo. Note-se que Haldane não via esta nova Era de
invenções biológicas, na qual vivemos
e amamos (ou não, conforme os casos), como apenas biologicamente
benéfica para os indivíduos e para a espécie,
mas também como felizmente "escandalosa",
intelectual e moralmente catártica, acima de tudo -
especialmente nos seus efeitos desafiadores da religião,
da autoridade dos sacerdotes e de códigos morais e
legais (que o faziam sofrer, pessoal e profissionalmente).
Libertava-se, assim, todo o domínio da sexualidade
e reprodução humanas das limitações
não-tecnológicas existentes ou, talvez mesmo,
de todas as limitações, fossem as relações
sociais ligadas à reprodução, digamos,
separando o sexo da reprodução (permitindo assim
que a actividade sexual gratificante seja maximizada sem barreiras,
como no romance de Huxley, no qual até o ciúme
foi suprimido, um pouco antes de Margaret Mead ter feito o
seu famoso anúncio de que a inexistência do ciúme
era um facto antropológico, e não da ficção
utópica, retirando-o de vez da lista dos supostos universais
da humanidade), e separando a reprodução da
actividade sexual, se não através da CRH, então
não prevista, ou impossível de prever, ao menos,
talvez, pela partenogénese. Separavam-se a reprodução
e a actividade sexual das contingências legais, pelo
menos para além de um certo mínimo: para Haldane,
estas invenções biológicas eram, também,
tal como foi dito do telescópio no século XVIII,
uma "artilharia moral" para bombardear os céus
espirituais. Não me parece a mim evidente que precisemos
de mais uma nova "artilharia moral" no Ocidente,
ou de criar um novo meio tecnológico para este fim.
Haldane acabou mesmo por ir trabalhar e viver para a Índia,
tendo exprimido muita simpatia por algumas facetas do modo
de vida hindu: vive la différence!, e a pluralidade
de civilizações!
A CRH, como muitas outras inovações
tecnológicas da história recente, e mesmo das
tecnologias da informação, não se imporá
pelo estímulo do mercado, ou sequer pela imprensa ou
pela pura necessidade humana: a impor-se, consegui-lo-á
por meio da própria dinâmica tecnológica,
pelo impulso de realização do que é tecnologicamente
possível como tal, e pelo crédito, fama ou notoriedade
adquiridos pelos vencedores da corrida. As justificações
podem depois encontrar-se após o acontecimento (até,
talvez, uma espécie de justificação mercantil:
é o caso da clonagem de animais de estimação
- uma espécie de membros virtuais da família.
Alguma procura parece já ter expressão, e consta
que há pagamentos feitos com grande avanço a
pelo menos uma empresa nos Estados Unidos, mas até
agora ainda não houve entregas deste tipo. Parece haver
uma ironia das circunstâncias no facto de as espécies
escolhidas para animais de estimação pelos humanos
não estarem entre as espécies mais fáceis
de clonar). Ainda assim, as perspectivas para a CRH sobem
num contexto estrutural e histórico que é, não
só de explosão da informação genética
e genómica e das capacidades de processamento de informação,
mas também de explosão do mercado genético
global, com a expansão sempre crescente do mercado
de serviços genéticos de vários tipos,
a utilitarização de entidades epistémicas
na genética e na biotecnologia, o impulso da engenharia
genética em todas as suas facetas, incluindo não
só a somática (a terapia genética somática
revelou-se um grande desapontamento) mas também as
perspectivas da engenharia do genoma das células estaminais.
A reprogenética, ou engenharia do genoma das células
estaminais, implica aquilo a que se chamava a eugenia negativa
ou positiva, incluindo, então, o melhoramento - talvez
o melhoramento indefinido de todas as qualidades e atributos,
físicos ou mentais, dos seres humanos, com algum tipo
de base genética, algo que possa ser composto e reforçado,
mesmo dentro do tempo de uma vida, pela activação
ou substituição de "superalelos" instalados
nos indivíduos melhorados geneticamente no estado pré-natal.
Assim se melhorava o ser, feminino ou masculino, durante o
seu período de vida, todas as vezes necessárias,
pelo menos dentro de um leque determinado de traços.
Ora, a CRH tem condições para articular-se com
estes desenvolvimentos, dadas as actuais tendências
de comercialização e utilitarização
de genes e órgãos ("o banco de órgãos
universal") e de serviços de reprodução
assistida; dado o clima moral associado a estas tendências,
isto terá um curso ainda imprevisível, e avaliá-lo
apenas em termos das "preferências" (sempre
supostamente determinadas, pré-estabelecidas, fixas,
imperiosas, auto-contidas, coerentes e completas) daqueles
que serão clonados, parece-me bastante irrealista.
Em si mesma, parece fazer a conjugação (em certos
aspectos muito inquietante) de dois grandes sonhos. Um é
muito antigo, e o outro talvez tenha ganho destaque recentemente:
o sonho da Cópia Perfeita e o sonho do Bebé
Perfeito, combinados no Ser Perfeito, ou Sempre Aperfeiçoável
(mas claro que podem estar envolvidas muitas outras motivações
e, de acordo com o princípio da heterogonia das finalidades,
é provável que sim). É uma, mas apenas
uma, das vias em que está a evoluir o perfeccionismo
genético.
As reacções das
massas às perspectivas da CRH têm sido de grande
preocupação, e mesmo repugnância, misturadas,
contudo, com um sentimento de resignação. A
preocupação e a repugnância parecem-me
maioritariamente sãs, e acho-me inteiramente de acordo
com o extraordinariamente eloquente e revelador ensaio de
Leon Kass, intitulado "A Sabedoria da Repugnância",
neste e muitos outros aspectos pertinentes. E que dizer da
resignação (totalmente compreensível,
à luz da torrente da moda da genética e das
tecnologias reprodutivas, da ainda maior penetração
do mercado genotecnológico em todos os ramos da vida,
e da subjugação de cada vez mais áreas
da intimidade, privacidade e da pessoa a cânones "Tecnológico-Benthamianos",
para usar o termo de F. R. Leavis)? Em termos metafísicos,
um Princípio de Plenitude funcionou, primeiro, no pensamento
do Ocidente, como uma celebração de uma imutável
Ordem da Natureza. Depois, como uma heurística para
o universalmente inclusivo processo evolutivo e um princípio
teleológico das ciências em geral; mas, mais
recentemente, tem servido como uma caução do
desenvolvimento tecnológico (embora continue importante
na cosmologia e no pensamento modal, por exemplo no chamado
realismo modal de David Lewis). Na última forma é
também conhecido como "o imperativo tecnológico",
ou, numa fórmula mais mundana, a "regra Gabor",
ou ainda, de outras formas, tais como "o que pode ser,
deve ser", identificado no discurso tecnólatra
pelo teórico de sistemas H. Obzekhan. Neste ponto,
podemos e devemos delimitar fronteiras: há um elemento
de arbitrariedade em qualquer delimitação de
fronteiras, mas tal não as torna indefensáveis
ou ilegítimas, pois qualquer vida a ser vivida tem
de ser mantida por fronteiras, não atribuídas
de forma óbvia pela natureza, embora esta liminaridade
da passagem para a reprodução assexuada dos
seres humanos e a produção deliberada de cópias,
mesmo se "perfeitas", pareça mais luminosa
do que a maior parte das tecnologias reprodutivas, uma espécie
de tremendum, de incursão completamente deslocada
no "sublime tecnológico". Claro que a tese
de que esta passagem implica uma liminaridade, a transposição
de um limiar metafisicamente significativo, uma mudança
num parâmetro básico da existência humana,
seria totalmente rejeitada por muitos, senão todos
os especialistas de genética e bioética. Mas
aqui há uma brecha de valores e hermenêutica
entre estes especialistas e um substancial caudal de opinião.
Este cenário só levianamente poderia ser tomado
como o de um choque de campos opostos: pró-ciência
versus anti-ciência, iluminados versus
desinformados; parafraseando Whitehead, a marca de uma pessoa
civilizada está na sua constância em relação
a algumas distinções e fronteiras, por mais
precárias ou desafiáveis, querendo manter, mesmo
na expectativa da derrota, o seu papel de testemunha.
De acordo com o mesmo espírito
podemos citar Paul Ramsey, que se dedicou a algumas destas
questões da ética das tecnologias reprodutivas
há já algumas décadas (um dos seus livros
nesta área chamou-se, já na altura, O Homem
Fabricado (The Fabricated Man): "um homem
de consciência séria faz questão de afirmar
que, na consideração de questões eticamente
urgentes, pode haver algumas coisas que os humanos não
devem fazer. As coisas boas que os humanos fazem podem ser
tornadas completas apenas pelas coisas que eles se recusam
a fazer". Ou, por outras palavras, a autonomia racional
humana e a capacidade humana para o bem implicam tanta nolonté
(o útil termo de Renouvier) como volições
positivas, enquanto volonté. E nunca antes como
agora, na conjuntura das liminaridades.
Apud Leon Kass, "The
wisdom of repugnance" (originalmente publicado na revista
The New Republic, em 1997) e reimpresso noutros lugares,
incluindo The Human Cloning Debate (O Debate em
Redor da Clonagem Humana), org. Glenn McGee (Berkeley,
Berkeley Hill Books, 2000; e em The Ethics of Human Cloning,
(Ética da Clonagem Humana) Washington DC, AEI,
1998).
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