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  Teoria do Fantasma - o efeito Cronenberg em poesia

  [ Fernando Guerreiro ]

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A Literatura é Terror

1. O poema, como operação (aparelho, máquina) produz o seu outro, o autor , seja ele um duplo ou um fantasma. A Literatura apresenta-se assim como uma máquina de produzir fantasmas. Daí o poder dizer-se que, no que tem de mais essencial, a literatura (o seu corpo sideral: espectral) é sempre fantástica.

2. Do texto, quem quer que por ele passe, sai sempre estranho, alterado. Inquietante estranheza do semelhante. Partícula un do heimeliche (Freud). Como corpo aural (ou espectral),o texto (o poema) produz sempre o seu fantasma.

3. Qualquer encontro com o texto é assim um encontro com o seu fantasma (Anne Rice)

O próprio autor surge como fantasma do seu texto, sua projecção espectral ou fantasmática. Por um lado, o duplo resultante da sua construção (diz-se o fantasma do texto como o da casa), por outro a reevocação imaginária na leitura de um outro (é-se sempre o fantasma de um outro - ou o outro do fantasma, hipótese do filme Os Outros de Alejandro Amenábar).

O leitor surge no texto como a antecipação do encontro, no futuro, com o nosso fantasma.

4. "Dégager le fantôme de l’objet" (Théophile Gautier). Isto é,sobre o <real> produzir o espectro, a verdade do fantasma. O que implica o risco do Sujeito, no processo, se tornar ele próprio um fantasma.

É esse o momento verdadeiro da alucinação em que no espelho não vem o rosto mas a hipótese,o fantasma (real) da carne sobre a qual,como uma película protectora, se lançou a cortina (explicação) antropomórfica do rosto. O in-humano da carne, no espelho, é essa hipótese imensa do estranho, do alienígena (em nós), do monstro (A criatura no espelho em The Prince of Darkness de John Carpen-ter).

5. Na sua abstração essencializante - que a estranha, a faz caminhar no sentido do estranho, da proximidade estranhante que resulta da descoberta desse totalmente outro em nós, alienígena- a poesia é Fantástica. Apresenta o "fantástico" como o domínio por excelência da Literatura. Uma "ausenta-ção" que produz real - esse real totalmente outro, estranho, mutante, que constitui a matéria primeira dos sonhos (Poe) e da sua teoria, como literatura.

6. Anterioridade do Fantasma. Casa do Ser de que somos os invasores (Amenábar), os locatários (R. Polanski) ou, na melhor das hipóteses, as sempre incómodas (dispensáveis) visitas. É ela que nos delega o Ser, nos comunica essência ou conteúdo. Entrar no Ser, então, é nela tomar lugar, ocupar uma parte do seu espaço, reconciliarmo-nos com o nosso estatuto de hóspedes ou de portadores do ser do Fantasma. É essa a sua realidade fundadora: história familiar,do mito ou do Ics (N. Abraham), de que somos a "avant-scène", o simulacro, a simulação local figural e discursiva. Sim, um efeito do fantasma.

7. A Literatura é Fantástica porque trabalha directamente sobre a espessura corpórea - e escultóri-ca - do Imaginário, a que ela comunica realidade (materialidade) objectivando e corporizando o Fan-tasma (tornando-o -à e pela letra - visível). A realidade do Fantasma do que lemos como literatura res-titui-nos nesse espaço outro, interior ou lateral, de detrás da morte, do Ics ou da cabeça, que profunda-mente nos (re)desenha e estrutura. O efeito de estranheza (de "unheimliche") da Literatura vem assim de, através dela - do seu universo real de simulação -, nos reconhecermos em nós próprios os visitan-tes de uma casa que nos é desconhecida (revelação do Horla de Guy de Maupassant).

8. Dos finais do século XVIII ao XIX dentro, a Literatura dir-se-ia prenhe, grávida de uma possi- bilidade que ainda não consegue totalmente conceber, algo que só será revelado com a invenção do cinema.

O gótico da literatura de terror, negra, do final do século ou as várias modalidades excêntricas do primeiro romantismo (o cinetismo transpanorâmico da literatura de viagens de V. Hugo e A.Dumas) constituem movimentos, esgares, convulsões interiores que rasgam a forma no sentido dessa (im)pos-sibilidade que, do ponto de vista técnico: das condições de representação, ainda não pode ter curso.

Daí o carácter perturbante, convulso, dessa literatura. O seu lado "monstruoso" de que a fábula da coisa de Fankenstein - núcleo duro da metaficção anómica e colectiva do grupo de Genebra (Mary e Percy Shelley, Byron e Polidori) -é talvez o mais elaborado registo.

Constituído o cinema como dispositivo de representação e de presentificação (monstração /Gri-vel/) de sensações em condições reais de simulação, toda a modernidade se viu alterada pelo que lhe aparecia como uma relação encarnada com as imagens : ou seja,o mito da transsubstanciação por fim realizado.

Resta saber que paradigma se encontra hoje em formação: passagem do estado Cronenberg da(s) arte(s) - da literatura como dispositivo imaginante de sensações, cinema - a algo que,prescindindo tal-vez de qualquer vínculo narrativo, encontra no poder de fixação (histericização) de uma imagem heteróclita e solta o seu princípio de congregação . Como um rizoma em acto, performante.

9. Assim, como arquitectura/estrutura, o Gótico constitui o depósito mais profundo, arcaico e nu - corpo ainda sem carnes, sem o revestimento de uma possível ficção antropomórfica e humana- do nosso imaginário Tanto o labirinto e a geografia soterradas do nosso pensamento como o esqueleto mineral e inorgânico,a estrutura óssea (arcaica ou cósmica) do ics de que uma das mais credíveis figurações pode ser o DNA metalizado da criatura dos dois primeiros Aliens (de Riddley Scott e James Cameron).

Compreende-se, portanto, por que na sua dimensão metabólica (e arqueológica - já que há uma história: ficção das origens que só se deslinda no/como futuro), o "monstro" se apresenta sempre como uma figura experimental, aberta e rizomática, entre campos - modos de ser e natureza -, dada sempre em transformação, devir. Deste modo, nos corpos mutilados ou degenerados de tantos filmes gore (dos Freaks de Todd Browning ao Massacre do Texas de Tobe Hooper) rompe-se com uma concepçáo an-tropomórfica e aristotélica do belo como categoria do "humano" - assim como com o projecto finalista e mimético que lhe é subjacente: o de uma mimese para o belo em função do modelo equilibrado e orgânico do corpo do homem (Poética, VII) -, propondo-se antes corpos abertos e incompletos, verdadeiros mobiles experimentais de osso, nervos e carne, arrranjos inumanos que em si enunciam o pro-jecto possível e viável, já em campo, de uma outra natureza. mpiro (romântico). Mais do que um retorno ao passado historicista ou nostálgico, as referências medievalizantes do início do século XIX procuram, sobre uma percepção do fim (da História, do Sujeito, da Lieratura), recolocar (fantasmaticamente: no plano do Fantasma) a questão da origem e, com ela, a hipótese (ficção: utopia) de um novo princípio .

Romantismo e fantástico seriam assim um produto do "mal" do Sujeito e da sociedade (da litera-tura) que tomam por objecto - nesse estado terminal (limite) de tensão - o in-forme ou o sem forma do já-não ou do ainda-não do representável - esse estado da matéria em que se confundem os estados de vigília e de sonho, o orgânico e o inorgânico, a morte e a vida.

Escreve C. Nodier a propósito de Byron (l822): " Ce merveilleux inconnu de tous les siècles litté-raires, fut emprunté aux idées vagues et à peine indiquées que les classiques paraissent s’être formées de l’état qui précède et qui suit l’existence animée de l’être matériel. On le chercha dans ce mélange confus d’éléments sans formes, sans rapports, sans nécéssité, sans objet, que l’imagination est obligé de se représenter quand elle veut supposer l’absence de la création vivante;on le chercha dans les images ténébreuses de l’Érèbe et de la Nuit, dans ces émanations informes et muettes des tombeaux, auxquelles la terreur attribue une figure analogue à celle des morts dont elles apportent sur la terre les sinistres messages; dans cette abstraction indéfinissable et terrible dont parle Tertullien: Je ne sais quoi qui succède au cadavre, et qui n’a de nom dans aucune langue".

No Vampiro, projecção e cristalização do princípio do "sonho" (ou do cinema ) no quotidiano, en-quanto figura e alegoria da situação do poeta (romântico), podemos reconhecer a crisálida mutante (o escritor no seu estado de vampiro) de uma espécie e texto futuros.

Por fim, enquanto prática das formas, quer historicamente quer hoje, o Gótico apresenta-se como uma prática dos limites: melhor, um conjunto muito diversificado de práticas (meios e registos) que definem (em todos os sentidos, acabam) as formas no preciso ponto em que elas estão prestes a romper-se - e se rompem - mas ainda se fixam e objectivam retro e projectivamente, produzindo essa crisálida congelada e em coma (paradoxal e impossível) que constitui a larva (em latim, segundo Lessing, o espectro/fantasma) da sua forma a vir futura.

É esse o carácter terminal do Gótico. Aquilo a que também dou o nome de teoria do Fantasma : procurar pela forma,a linguagem - tudo seres vivos de uma nova criação paradoxal, híbrida e impura - fazer vir, facilitar a vinda (como second coming, segunda vinda) de uma nova raça (criação) e realidade presentes futuras.

O Gótico consistiria assim num conjunto de elementos, formas e figuras,a interpretar menos como reelaborações secundárias, segundas - metáforas ou alegorias, que também são - do que como materiais primeiros : a matéria prima, bruta, as formações mais directas e imediatas ,os significantes - obtidos por processos de raspagem, tracção - da estrutura profunda em funcionamento do nosso Ser composto de carne, emoção e pensamento. Uma linguagem primeira e hieroglífica, ao mesmo tempo densa e original, primitiva.

Pense-se num Gótico ressurreicional, solar, metamórfico, do 4º dia.

10. Poesia é o nome que dou a certas perturbações que em mim provocam as palavras e de que eu sou o local de ocorrência , o hospedeiro e o portador .

Ao fim e ao cabo, procuro provocar pelas palavras ou fazer que em mim aconteçam as transformações que Carpenter e Cronenberg produzem nos seus filmes.

Para Burroughs, sabe-se, a linguagem era um vírus. Também para mim o poema consiste numa injecção no corpo, na introdução no metabolismo de um princípio estranho, heterogéneo, que nos tra-balha, transforma, nos torna maiores do que somos, transportando-nos para um espaço outro, uma realidade acrescentada e alterada onde a nossa parte inumana - esse mais em nós - vem finalmente ao nosso encontro.

Imagine-se agora esse processo (viral, infeccioso) a passar de dentro (de nós) para fora (os outros). E vice-versa. É esse o seu poder de conversão (contaminação) antropológico (metamórfico), anuncia-dor de uma nova realidade e de uma outra natureza . Pense-se numa deformação, variante, semelhante a uma espécie disseminada, migradora, a percorrer os séculos:os deuses primitivos, e a vir, de Lovecraft e Poe ?

O carácter inaudito de uma concepção antropológica de poesia. Algo infelizmente só nomeável a título póstumo. Como se só pela boca da morte se pudesse formular e dizer o impossível (o horror) de uma grande esperança (metamórfica,refundadora) dos vivos.

11. A. fala-me dos livros, em termos orgânicos, como se fossem criações biológicas suas.

Para mim,contudo, o que escrevo surge-me sempre mais como o dejecto da fórmula, com um estaturo inorgânico. Não algo de cosubstancial mas antes o produto estranho resultante de uma injecção infecciosa , do desfuncionamento do orgânico. Admitida a heterogeneidade da linguagem - o seu carácter infeccioso, de vírus -, ela revela, desperta, deixa cair em nós, do seu processo, a hipótese alienante mas fundadora do inumano e do inorgânico. Essa coisa-outra - natureza, entidade alienígena - sobre a qual se constroi , como dispositivo de ambientação/defesa , a ficção (protectora) do "humano". A verdade da "poesia" (se se quiser, da "literatura") não está em produzir mais ( e melhor) do "mesmo", mas antes em fazer vir e suportar o peso (dilacerante) dessa estranheza. Melhor: criar, alimentar e dar à luz - se possível, nelas transmutar-se - as criações híbridas desse cruzamentos contra-natura (como a tenente Ripley do programa de hibridação trans (in)orgânica dos Aliens 3 e 4, de David Fincher e J-P. Jeunot).

12. Reencontro em Jean Louis Schefer a hipótese de uma vida: história embrionária das imagens (ficções) de que seríamos a crisálida, o portador e a cobaia experimentais : "la chose humaine dont nous sommes une forme provisoire"/"une chose de passage qui par ses dispositifs peut capter des imaginations de ressemblances, c’est à dire d’autres formes, d’autres liens",escreve em Main Courante 3. Não só a "figuration est métamorphose" como a "segregação" (regurgitação) das imagens - a hipótese virtual (e viral) que em nós gera o corpo do fantasma (esse corpo-revestimento, invólucro do nosso, ideal e descartável) -, no quadro de uma teoria da realidade (e não só do "efeito de real") dos simulacros (Lucrécio), produz o novo real (psicótico?, alucinado?) que em vida, como grupo de controle, testaríamos para a nova espécie a vir (ou a nossa realidade outra como espécie) futura.

A concepção da História: Literatura (etc) como uma teoria de fantasmas deve ser assim desenvol- vida de acordo com o princípio metapoiético de uma meta-morphosis alienígena.

A escrita de "Siringe"(Quatro Caprichos) de António Franco Alexandre, da última Maria Gabriela Llansol (Onde vais, Drama-Poesia?, Parasceve), as obras-mundo de Ana Teresa Pereira e de Adília Lopes, o projecto antropológico de poesia e de crítica de Manuel Gusmão (a sua leitura de Rimbaud, por exemplo),assim como os dois últimos manifestos poiéticos de Carpenter (Vampires, Ghosts of Mars), vão resolutamente nesse sentido.

É essa capacidade de convocar, fazer vir, realizar o fantasma que têm as imagens e a literatura. E desse ponto de vista, enquanto "constituintes do real" (Schefer), elas produzem-no e transmutam-no. .

13. Se a linguagem na poesia é monstruosa - como bem o compreendeu V. Hugo para quem "le mot (…) est un être vivant" e que se refere a "mots monstres" ("Suite" à "Réponse à un acte d’accusation",Les Contemplations) -, é porque ela é aí captada no momento aberto (de caos genésico) da sua criação : no ponto em que, porque ainda não se encontram divididos ou estabelecidos como figura ou sentido, linguagem e real se misturam, produzindo novas formas de combinações e híbridos com que, num gesto de criação único ( mas ateológico /Bataille/), refazem o mundo.

Para Hugo, os nomes estão já inscritos (atómica e elementarmente) no real - é assim que ele motiva a presença de radicais orais, mais abertos, nas vertentes-Sul (mais expostas ao Sol) das montanhas (e de estruturas mais veladas, consonânticas, a norte /Le Rhin /); com efeito, como partes do real, eles fazem parte do magma elementar, participando no trabalho (material e simbólico) de constante labo-ração da terra pelo qual se questiona redefine o rosto (metamórfico) do mundo.

Trata-se de regredir (involuir?) ao informe da carne e da matéria - o infinto corpo do mundo, palpitante, res extensa - e depois deixar o mundo (o real) pesar sobre a palavra de modo a que ela se encarne enquanto efeito de deformação: transmutação da sua presença.

É esse também o Horror manifesto do seu poder: produzir mais real. A sua poiética e metamórfica violência.

Fernando Guerreiro

(fevereiro/ 2002)

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  • Fragmento de uma reflexão em curso de que já foram publicados vários fragmentos (Vértice, Caderno Vermelho, Cyberkiosk ) e uma primeira versão de conjunto - Literatura Fantástica - Teoria do Fantasma - em AAVV, Escríticas- Tópicos sobre poesia , Ed. Diferença, 1999.