A Literatura é Terror
1. O poema, como operação
(aparelho, máquina) produz o seu outro, o autor
, seja ele um duplo ou um fantasma. A Literatura apresenta-se
assim como uma máquina de produzir fantasmas. Daí
o poder dizer-se que, no que tem de mais essencial, a literatura
(o seu corpo sideral: espectral) é sempre fantástica.
2. Do texto, quem quer que por
ele passe, sai sempre estranho, alterado. Inquietante
estranheza do semelhante. Partícula un do heimeliche
(Freud). Como corpo aural (ou espectral),o texto (o poema)
produz sempre o seu fantasma.
3. Qualquer encontro com o texto
é assim um encontro com o seu fantasma (Anne
Rice)
O próprio autor surge como fantasma
do seu texto, sua projecção espectral ou fantasmática.
Por um lado, o duplo resultante da sua construção
(diz-se o fantasma do texto como o da casa), por outro a reevocação
imaginária na leitura de um outro (é-se sempre
o fantasma de um outro - ou o outro do fantasma,
hipótese do filme Os Outros de Alejandro Amenábar).
O leitor surge no texto como a antecipação
do encontro, no futuro, com o nosso fantasma.
4. "Dégager le fantôme
de l’objet" (Théophile Gautier). Isto é,sobre
o <real> produzir o espectro, a verdade do fantasma.
O que implica o risco do Sujeito, no processo, se tornar ele
próprio um fantasma.
É esse o momento verdadeiro da
alucinação em que no espelho não vem
o rosto mas a hipótese,o fantasma (real) da
carne sobre a qual,como uma película protectora, se
lançou a cortina (explicação) antropomórfica
do rosto. O in-humano da carne, no espelho, é essa
hipótese imensa do estranho, do alienígena (em
nós), do monstro (A criatura no espelho em The
Prince of Darkness de John Carpen-ter).
5. Na sua abstração
essencializante - que a estranha, a faz caminhar no sentido
do estranho, da proximidade estranhante que resulta da descoberta
desse totalmente outro em nós, alienígena- a
poesia é Fantástica. Apresenta o "fantástico"
como o domínio por excelência da Literatura.
Uma "ausenta-ção" que produz real
- esse real totalmente outro, estranho, mutante, que constitui
a matéria primeira dos sonhos (Poe) e da sua teoria,
como literatura.
6. Anterioridade do Fantasma.
Casa do Ser de que somos os invasores (Amenábar), os
locatários (R. Polanski) ou, na melhor das hipóteses,
as sempre incómodas (dispensáveis) visitas.
É ela que nos delega o Ser, nos comunica essência
ou conteúdo. Entrar no Ser, então, é
nela tomar lugar, ocupar uma parte do seu espaço, reconciliarmo-nos
com o nosso estatuto de hóspedes ou de portadores do
ser do Fantasma. É essa a sua realidade fundadora:
história familiar,do mito ou do Ics (N. Abraham), de
que somos a "avant-scène", o simulacro, a
simulação local figural e discursiva. Sim, um
efeito do fantasma.
7. A Literatura é Fantástica
porque trabalha directamente sobre a espessura corpórea
- e escultóri-ca - do Imaginário, a que ela
comunica realidade (materialidade) objectivando e corporizando
o Fan-tasma (tornando-o -à e pela letra - visível).
A realidade do Fantasma do que lemos como literatura res-titui-nos
nesse espaço outro, interior ou lateral, de detrás
da morte, do Ics ou da cabeça, que profunda-mente nos
(re)desenha e estrutura. O efeito de estranheza (de "unheimliche")
da Literatura vem assim de, através dela - do seu universo
real de simulação -, nos reconhecermos em
nós próprios os visitan-tes de uma casa
que nos é desconhecida (revelação do
Horla de Guy de Maupassant).
8. Dos finais do século
XVIII ao XIX dentro, a Literatura dir-se-ia prenhe, grávida
de uma possi- bilidade que ainda não consegue totalmente
conceber, algo que só será revelado com a invenção
do cinema.
O gótico da literatura de terror, negra,
do final do século ou as várias modalidades
excêntricas do primeiro romantismo (o cinetismo transpanorâmico
da literatura de viagens de V. Hugo e A.Dumas) constituem
movimentos, esgares, convulsões interiores que rasgam
a forma no sentido dessa (im)pos-sibilidade que, do ponto
de vista técnico: das condições de representação,
ainda não pode ter curso.
Daí o carácter perturbante,
convulso, dessa literatura. O seu lado "monstruoso"
de que a fábula da coisa de Fankenstein - núcleo
duro da metaficção anómica e colectiva
do grupo de Genebra (Mary e Percy Shelley, Byron e Polidori)
-é talvez o mais elaborado registo.
Constituído o cinema como dispositivo
de representação e de presentificação
(monstração /Gri-vel/) de sensações
em condições reais de simulação,
toda a modernidade se viu alterada pelo que lhe aparecia como
uma relação encarnada com as imagens
: ou seja,o mito da transsubstanciação por fim
realizado.
Resta saber que paradigma se encontra hoje
em formação: passagem do estado Cronenberg
da(s) arte(s) - da literatura como dispositivo imaginante
de sensações, cinema - a algo que,prescindindo
tal-vez de qualquer vínculo narrativo, encontra no
poder de fixação (histericização)
de uma imagem heteróclita e solta o seu princípio
de congregação . Como um rizoma em acto, performante.
9. Assim, como arquitectura/estrutura,
o Gótico constitui o depósito mais profundo,
arcaico e nu - corpo ainda sem carnes, sem o revestimento
de uma possível ficção antropomórfica
e humana- do nosso imaginário Tanto o labirinto e a
geografia soterradas do nosso pensamento como o esqueleto
mineral e inorgânico,a estrutura óssea (arcaica
ou cósmica) do ics de que uma das mais credíveis
figurações pode ser o DNA metalizado da criatura
dos dois primeiros Aliens (de Riddley Scott e James
Cameron).
Compreende-se, portanto, por que na sua dimensão
metabólica (e arqueológica - já que há
uma história: ficção das origens que
só se deslinda no/como futuro), o "monstro"
se apresenta sempre como uma figura experimental, aberta e
rizomática, entre campos - modos de ser e natureza
-, dada sempre em transformação, devir. Deste
modo, nos corpos mutilados ou degenerados de tantos filmes
gore (dos Freaks de Todd Browning ao Massacre
do Texas de Tobe Hooper) rompe-se com uma concepçáo
an-tropomórfica e aristotélica do belo como
categoria do "humano" - assim como com o projecto
finalista e mimético que lhe é subjacente: o
de uma mimese para o belo em função do
modelo equilibrado e orgânico do corpo do homem (Poética,
VII) -, propondo-se antes corpos abertos e incompletos, verdadeiros
mobiles experimentais de osso, nervos e carne, arrranjos
inumanos que em si enunciam o pro-jecto possível e
viável, já em campo, de uma outra natureza.
mpiro (romântico). Mais do que um retorno ao passado
historicista ou nostálgico, as referências medievalizantes
do início do século XIX procuram, sobre uma
percepção do fim (da História,
do Sujeito, da Lieratura), recolocar (fantasmaticamente: no
plano do Fantasma) a questão da origem e, com ela,
a hipótese (ficção: utopia) de um novo
princípio .
Romantismo e fantástico seriam assim
um produto do "mal" do Sujeito e da sociedade (da
litera-tura) que tomam por objecto - nesse estado terminal
(limite) de tensão - o in-forme ou o sem
forma do já-não ou do ainda-não do
representável - esse estado da matéria em que
se confundem os estados de vigília e de sonho, o orgânico
e o inorgânico, a morte e a vida.
Escreve C. Nodier a propósito de Byron
(l822): " Ce merveilleux inconnu de tous les siècles
litté-raires, fut emprunté aux idées
vagues et à peine indiquées que les classiques
paraissent s’être formées de l’état qui
précède et qui suit l’existence animée
de l’être matériel. On le chercha dans ce mélange
confus d’éléments sans formes, sans rapports,
sans nécéssité, sans objet, que l’imagination
est obligé de se représenter quand elle veut
supposer l’absence de la création vivante;on le chercha
dans les images ténébreuses de l’Érèbe
et de la Nuit, dans ces émanations informes et muettes
des tombeaux, auxquelles la terreur attribue une figure analogue
à celle des morts dont elles apportent sur la terre
les sinistres messages; dans cette abstraction indéfinissable
et terrible dont parle Tertullien: Je ne sais quoi qui
succède au cadavre, et qui n’a de nom dans aucune langue".
No Vampiro, projecção e cristalização
do princípio do "sonho" (ou do cinema ) no
quotidiano, en-quanto figura e alegoria da situação
do poeta (romântico), podemos reconhecer a crisálida
mutante (o escritor no seu estado de vampiro) de uma espécie
e texto futuros.
Por fim, enquanto prática das formas,
quer historicamente quer hoje, o Gótico apresenta-se
como uma prática dos limites: melhor, um conjunto
muito diversificado de práticas (meios e registos)
que definem (em todos os sentidos, acabam) as formas no preciso
ponto em que elas estão prestes a romper-se - e se
rompem - mas ainda se fixam e objectivam retro e projectivamente,
produzindo essa crisálida congelada e em coma (paradoxal
e impossível) que constitui a larva (em latim,
segundo Lessing, o espectro/fantasma) da sua forma a vir futura.
É esse o carácter terminal
do Gótico. Aquilo a que também dou o nome de
teoria do Fantasma : procurar pela forma,a linguagem
- tudo seres vivos de uma nova criação paradoxal,
híbrida e impura - fazer vir, facilitar a vinda (como
second coming, segunda vinda) de uma nova raça
(criação) e realidade presentes futuras.
O Gótico consistiria assim num conjunto
de elementos, formas e figuras,a interpretar menos como
reelaborações secundárias, segundas -
metáforas ou alegorias, que também são
- do que como materiais primeiros : a matéria
prima, bruta, as formações mais directas e imediatas
,os significantes - obtidos por processos de raspagem, tracção
- da estrutura profunda em funcionamento do nosso Ser composto
de carne, emoção e pensamento. Uma linguagem
primeira e hieroglífica, ao mesmo tempo densa e original,
primitiva.
Pense-se num Gótico ressurreicional,
solar, metamórfico, do 4º dia.
10. Poesia é o nome que
dou a certas perturbações que em mim provocam
as palavras e de que eu sou o local de ocorrência ,
o hospedeiro e o portador .
Ao fim e ao cabo, procuro provocar pelas palavras
ou fazer que em mim aconteçam as transformações
que Carpenter e Cronenberg produzem nos seus filmes.
Para Burroughs, sabe-se, a linguagem era um
vírus. Também para mim o poema consiste numa
injecção no corpo, na introdução
no metabolismo de um princípio estranho, heterogéneo,
que nos tra-balha, transforma, nos torna maiores do que somos,
transportando-nos para um espaço outro, uma realidade
acrescentada e alterada onde a nossa parte inumana - esse
mais em nós - vem finalmente ao nosso encontro.
Imagine-se agora esse processo (viral, infeccioso)
a passar de dentro (de nós) para fora (os outros).
E vice-versa. É esse o seu poder de conversão
(contaminação) antropológico (metamórfico),
anuncia-dor de uma nova realidade e de uma outra natureza
. Pense-se numa deformação, variante, semelhante
a uma espécie disseminada, migradora, a percorrer os
séculos:os deuses primitivos, e a vir, de Lovecraft
e Poe ?
O carácter inaudito de uma concepção
antropológica de poesia. Algo infelizmente só
nomeável a título póstumo. Como se só
pela boca da morte se pudesse formular e dizer o impossível
(o horror) de uma grande esperança (metamórfica,refundadora)
dos vivos.
11. A. fala-me dos livros, em
termos orgânicos, como se fossem criações
biológicas suas.
Para mim,contudo, o que escrevo surge-me sempre
mais como o dejecto da fórmula, com um estaturo inorgânico.
Não algo de cosubstancial mas antes o produto estranho
resultante de uma injecção infecciosa , do desfuncionamento
do orgânico. Admitida a heterogeneidade da linguagem
- o seu carácter infeccioso, de vírus -, ela
revela, desperta, deixa cair em nós, do seu processo,
a hipótese alienante mas fundadora do inumano e do
inorgânico. Essa coisa-outra - natureza, entidade
alienígena - sobre a qual se constroi , como dispositivo
de ambientação/defesa , a ficção
(protectora) do "humano". A verdade da "poesia"
(se se quiser, da "literatura") não está
em produzir mais ( e melhor) do "mesmo", mas antes
em fazer vir e suportar o peso (dilacerante) dessa
estranheza. Melhor: criar, alimentar e dar à luz -
se possível, nelas transmutar-se - as criações
híbridas desse cruzamentos contra-natura (como a tenente
Ripley do programa de hibridação trans (in)orgânica
dos Aliens 3 e 4, de David Fincher e J-P. Jeunot).
12. Reencontro em Jean Louis Schefer
a hipótese de uma vida: história embrionária
das imagens (ficções) de que seríamos
a crisálida, o portador e a cobaia experimentais :
"la chose humaine dont nous sommes une forme provisoire"/"une
chose de passage qui par ses dispositifs peut capter des imaginations
de ressemblances, c’est à dire d’autres formes, d’autres
liens",escreve em Main Courante 3. Não
só a "figuration est métamorphose"
como a "segregação" (regurgitação)
das imagens - a hipótese virtual (e viral) que em nós
gera o corpo do fantasma (esse corpo-revestimento, invólucro
do nosso, ideal e descartável) -, no quadro de uma
teoria da realidade (e não só do "efeito
de real") dos simulacros (Lucrécio), produz
o novo real (psicótico?, alucinado?)
que em vida, como grupo de controle, testaríamos para
a nova espécie a vir (ou a nossa realidade outra como
espécie) futura.
A concepção da História:
Literatura (etc) como uma teoria de fantasmas deve ser assim
desenvol- vida de acordo com o princípio metapoiético
de uma meta-morphosis alienígena.
A escrita de "Siringe"(Quatro
Caprichos) de António Franco Alexandre, da última
Maria Gabriela Llansol (Onde vais, Drama-Poesia?, Parasceve),
as obras-mundo de Ana Teresa Pereira e de Adília Lopes,
o projecto antropológico de poesia e de crítica
de Manuel Gusmão (a sua leitura de Rimbaud, por exemplo),assim
como os dois últimos manifestos poiéticos de
Carpenter (Vampires, Ghosts of Mars), vão resolutamente
nesse sentido.
É essa capacidade de convocar,
fazer vir, realizar o fantasma que têm as imagens e
a literatura. E desse ponto de vista, enquanto "constituintes
do real" (Schefer), elas produzem-no e transmutam-no.
.
13. Se a linguagem na poesia
é monstruosa - como bem o compreendeu V. Hugo para
quem "le mot (…) est un être vivant" e que
se refere a "mots monstres" ("Suite" à
"Réponse à un acte d’accusation",Les
Contemplations) -, é porque ela é aí
captada no momento aberto (de caos genésico) da sua
criação : no ponto em que, porque ainda não
se encontram divididos ou estabelecidos como figura ou sentido,
linguagem e real se misturam, produzindo novas formas
de combinações e híbridos com que, num
gesto de criação único ( mas ateológico
/Bataille/), refazem o mundo.
Para Hugo, os nomes estão já
inscritos (atómica e elementarmente) no real - é
assim que ele motiva a presença de radicais orais,
mais abertos, nas vertentes-Sul (mais expostas ao Sol) das
montanhas (e de estruturas mais veladas, consonânticas,
a norte /Le Rhin /); com efeito, como partes do real,
eles fazem parte do magma elementar, participando no trabalho
(material e simbólico) de constante labo-ração
da terra pelo qual se questiona redefine o rosto (metamórfico)
do mundo.
Trata-se de regredir (involuir?) ao informe
da carne e da matéria - o infinto corpo do mundo, palpitante,
res extensa - e depois deixar o mundo (o real) pesar
sobre a palavra de modo a que ela se encarne enquanto efeito
de deformação: transmutação da
sua presença.
É esse também o Horror
manifesto do seu poder: produzir mais real. A sua poiética
e metamórfica violência.
Fernando Guerreiro
(fevereiro/ 2002)
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- Fragmento de uma reflexão em curso
de que já foram publicados vários fragmentos
(Vértice, Caderno Vermelho, Cyberkiosk ) e
uma primeira versão de conjunto - Literatura Fantástica
- Teoria do Fantasma - em AAVV, Escríticas-
Tópicos sobre poesia , Ed. Diferença,
1999.
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