As discussões em torno da publicação
ou não de fotos de Bin Laden, ou de exibição
dos seus vídeos porque poderiam esconder novas ordens
de ataques encriptadas, acaba por não ser surpreendente
se tomarmos em conta a tradição do século
XX.
Alain Badiou identificou como característica
"chave" do século XX, uma "paixão
pelo real" em contraste com as utopias, os projectos
científicos, e os ideais acerca do futuro do Séc.
XIX. Uma "paixão" visível na predominante
obsessão jornalística de destilar as causas
traumáticas e "perversas" de uma ilusória
realidade que vitimiza as pessoas tornando-as inocentes e
vulneráveis perante as vontades conspiradoras de algo
ou de alguém. Esta obsessão em depurar o Real
( tido como causalidade negativa ameaçadora a partir
do oculto sob as ilusórias imagens da realidade ) aliada
a outra paixão fulminante - a do visível - terminou
quase sempre num desejo incontrolável de tudo resumir
paradoxalmente à pura aparência de uma imagem,
seja num nome, num símbolo ou de num rosto. Os "rostos
do mal" foram-se multiplicando pelo século XX;
de Hitler a Milosevic, de Estaline a Pol Pot, de Sadam Hussein
a Bin Laden resultando numa estranha e suspeita ambiguidade
em relação ao "Mal". Por um lado o
dar forma visível às transgressões mais
violentas, trazendo-as ao olhar, parece dar seguimento à
resposta grega ou seja - a catarse da tragédia pela
representação. Mas rapidamente esta catártica
visualização do "mal" dá origem
a uma obsessão abismada nas imagens. Certamente que
ninguém no século XX foi mais filmado, documentado,
reproduzido em fotografias, comentado analisado que Hitler,
o mesmo se passou com Sadam Hussein e agora com Bin Laden.
A mesma tendência se revela aliás em relação
aos assassinos em série; Timoty McVeight, Charles Manson,
Hannibal, Dracula, Jack the Ripper. Coloco de propósito
os "reais" junto com os "ficcionais" porque
reconheço, tal como Zizek, que " a chave para
este paradoxo reside na definitiva impossibilidade para definir
uma clara distinção entre a ilusória
realidade e alguns núcleos positivos do Real".
É difícil não ver neste
enorme investimento, legitimado pela purga do mal, um não
menos poderoso e mal confessado fascínio que prolonga
para além dos limites o culto em volta de tais personagens.
Hollywood usou e abusou dos vilões.
O jogo sempre foi ver em cada novo filme qual a sua nova capacidade
de destruição, que novas, imaginativas e destruidoras
formas de destruir a terra e toda a humanidade podem passar
pela cabeça de um super vilão. A série
Star Wars foi aliás paradigmática. Ao contrário
do que se previa não foi o limpo e branco Luke Skywalker
o herói adorado pelos fãs mas sim o obscuro
Darth Vader dando continuidade a um culto gótico pelo
Mal, característico dos anos 90, reconhecido aliás
pelo próprio George Lucas nas três prequelas
que preparou onde reconheceu Vader como o verdadeiro fenómeno
de culto da série.
E pronto, assim chegámos a este "estar
armadilhado" de temer e desejar os vilões, que
explica os antagónicas pulsões de repetição
e de repressão em volta das escassas imagens de Bin
Laden. Esta tradição moderna de materializar
em imagens ( rodeadas de informação em massa
) as possibilidades mais violentas da experiência para
as controlar culminou, sem duvida, num esquizofrénico
bloqueio político dada a incapacidade que hoje existe
para controlar os efeitos das imagens.
Esta despudorada produção de
imagens em torno dos acontecimentos de 11 de Setembro fez-me
recordar pelo seu absoluto contraste , os acontecimentos de
19 de Outubro de 1921 em Lisboa. Nesse dia um golpe de Estado
resultou no assassinato brutal do primeiro-ministro António
Granjo, de Machado do Santos e Carlos da Maia heróis
da revolução do cinco de Outubro. Mortos juntamente
com cinco outros funcionários do Estado. Apesar de
recente esta tragédia foi invulgarmente silenciada
e expurgada da memória pelo povo português. O
vilão da tragédia - Dente de Ouro - não
teve direito a posteriores estudos, documentações
ou exposições. A resposta portuguesa escolhida,
tanto na Noite Sangrenta como na Guerra Colonial foi o silêncio.
Sacrifica-se a memória contra os perversos efeitos
da paixão do visível. Mas nesta comparação
de casos não consigo decidir sobre a melhor resposta.
Por isso em relação à
imagem de Bin Laden eu apenas me interrogo:- Ele está
a olhar para quem?
Lisboa, 15-02-2002
|