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  O Trágico na Modernidade

  [ Moisés Lemos Martins ]

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1. A tolerância zero e o risco zero

A modernidade vive hoje assombrada pelo fantasma da assepsia social. Daí as campanhas da "tolerância zero" face ao álcool, à droga e ao banditismo, urbano e suburbano. Daí as operações locais para a supressão das barracas. E as nacionais para o banimento da pobreza. Daí as mobilizações globais para a erradicação do terrorismo. É o fantasma da assepsia social que nos embala na fantasia do "risco zero": segurança e bem-estar plenos, nas estradas, nos campos e nas cidades, na vida de todos os dias. "Se conduzir, não beba". "Não à droga, sim à vida". "Mais esquadras e mais polícias". "Sexo seguro". "Liberdade duradoura". Tudo operações de caça ao animal que vive no humano, exorcismos para enxotar as sombras (medos e angústias) que possuem o corpo individual e colectivo.

Tolerância zero e risco zero dão conta do "íntimo terror", para utilizarmos uma figura lyotardiana (Lyotard, 1993), de uma ordem pragmática e civilizada, uma ordem que sonha com o sucesso e fecha um condomínio para o fruir à vontade. Este fantasma é hoje metaforizado na perfeição pelo centro comercial. Cidade da ordem, cidade asséptica, cidade opulenta, cidade de iguais, cidade jovem e de sedução, reverberante de luz, sem excluídos, o centro comercial realiza a nossa modernidade como racionalidade tecnológica e como experiência estética – razão e emoção vão de mãos dadas, elas que são as duas grandes estilizações do moderno (Miranda, 1994; Martins, 2002).

Além do "íntimo terror" que percorre a nossa cidade e a ensombra, o nosso ideal democrático sofre hoje a provação de um aborrecimento letal. Poder-se-ia pensar que tendo nós deixado de morrer de fome, o nosso mundo rejubilaria em "liberdade livre", como canta o verso de Rimbaud. Puro engano, o facto de termos deixado de morrer de fome, resultou apenas em termos passado a morrer de tédio. A nossa condição moderna não tem o andar pesado das botas cardadas, nem respira a ar de chumbo de nenhuma "pax romana". Hoje não parece constituir ameaça para o Ocidente o rolo compressor de nenhuma razão armada de baionetas. Em lado nenhum ocorre a intimação à ordem, a não ser nas paragens sombrias do fundamentalismo islâmico. Não há intimação à ordem nas coisas do pensamento, nem nas coisas da acção política, nem mesmo nas coisas do sentimento e dos costumes, e isto apesar da Sida e de outros apertos bem contemporâneos e bem perturbadores. O positivismo da razão é proclamado fora de lei, ou então um erro. Por ele dobram os sinos incansavelmente, a ponto de podermos dizer que O Erro de Descartes de António Damásio (1994) e a Emotional Intelligence (1995) de Daniel Goleman são neste contexto apenas umas pequenas badaladas, talvez um pequeno Toque das Trindades, sobre o passamento da razão.

Fundado no contrato livremente consentido, o ideal democrático permitiu o sonho de uma sociedade governada em nome do bem, do justo e do verdadeiro. Simplesmente o sonho dessa ordem civilizada, feita de segurança e bem-estar, faz-se agora pagar pela certeza de morrermos de pasmo. A mesma cidade que exorciza os seus medos e angústias em aventuras previsíveis e sem risco, fustigando sombras diante da televisão e em centros comerciais, agoniza de aborrecimento num quotidiano higienizado e atola-se no indiferentismo e absentismo políticos.

Walter Benjamin (1992: 28), nos anos trinta, falava já da "crise da experiência" que contaminava a nossa modernidade. Via-a então como uma consequência catastrófica da Guerra Mundial. Mais perto de nós, Giorgio Agamben fala da impossibilidade em que nos encontramos hoje de nos apropriarmos da nossa condição propriamente histórica. É essa impossibilidade que "torna insuportável o nosso quotidiano" (Agamben, 2000: 20). Apesar de reconfortada por uma calda de emoções, de produção mediática e tecnológica, que dá pelo nome de transparência comunicacional, mas que administra "terror sem horror, comoção sem emoção, compaixão sem paixão", como escreve Teresa Cruz (s.d.: 111-112), a cidade vive hoje anestesiada, sem "nenhuma espécie de compromisso com a época e com as ideias que a motivam" (Benjamin, 1993: 590), chafurdando num quotidiano transformado pelos média na presa fácil de uma transcrição ruidosa e incessante, que o nega enquanto quotidiano em que arriscamos a pele.

Por vezes, um pouco à maneira de Rosa Luxemburgo, ainda se ouve falar da filosofia alemã, do sonho americano, do pensamento francês e do ponto de vista inglês. E também se ouve dizer que o "espírito" de tal povo foi por um tempo depositário e testemunho da Ideia fundadora. Lyotard (1993) lembrando a invocação feita em Atenas, Filadélfia e Paris da ideia de liberdade, do mesmo modo que em Roma e Londres se invocou a ideia de paz imperial, e em Berlim e Tóquio a ideia de raça salvadora, concluiu que estas figuras tinham uma vocação de combate, remetiam para conflitos de ideias, mobilizando e organizando as forças disponíveis numa determinada área geográfica e demográfica. E logo acrescentou que nestas figuras se tecia e testava já o sistema mais apto para o crescimento, o sistema que melhor se prestava a uma mobilização geral das forças disponíveis. Também Ernest Junger ao explicar, em 1920, o sucesso dos Aliados na Guerra contra o Império alemão, reconheceu que uma comunidade de cidadãos que se julgavam livres se prestava melhor para a "mobilização total" do que o corpo dos súbditos de Guilherme II. E de facto, olhadas as coisas agora, cinquenta anos volvidos sobre a II Guerra Mundial e doze sobre a Guerra Fria, o diagnóstico de Junger não poderia afigurar-se mais verdadeiro. Passando por cima de vários milénios a tentar e a experimentar toda a espécie de organização da comunidade, a democracia neoliberal triunfa em todas as frentes. O que quer dizer que "a história humana foi apenas a selecção natural pela competição, precisamente pela competição, da forma mais eficaz de todas as formas de organização da comunidade", diz ainda Lyotard.

E assim chegamos ao mundo raso da troca total, que é o mundo no seu estado presente. É pelo facto de ser eficaz que a democracia neoliberal tem prestígio e faz autoridade. O consenso procede desta evidência. É a este mundo, neste estado, mundo democrático neoliberal, que nós consentimos. O sociólogo francês Michel Maffesoli, numa recente passagem pela Universidade do Minho, ilustrou bem este estado de espírito, com uma frase de efeito: "Le monde c’est du caca, il faut vivre avec ça".

2. A deserção do espírito

No mundo raso da troca total, nada se furta ao consenso, que é um outro nome do mercado, nada se furta, pois, à competição e ao ganho. Ou seja, nada se furta ao sucesso, sendo todo o sucesso ganhar. Nem mesmo o livre agir, seja criação, acto de amor ou convicção. É que da mesma forma que a moeda é fetichizada como equivalente geral de toda a mercadoria (bens, corpos e almas), é agora fetichizada a opinião como equivalente geral do livre agir (criação, acto de amor e convicção). Vergado o livre agir à opinião, que o invertebraliza, é vê-lo passar pela corrida infernal à transparência comunicacional. Também a criação, o acto de amor e a convicção têm que ser de sucesso, ou seja, têm que ter audiência, têm que se abismar no mundo raso da troca total.

Neste abastardamento do ideal democrático vê Michel de Certeau (1980: 22-23) a deserção do Espírito. É paradoxal mas bem sugestiva a analogia que estabelece entre a nossa condição moderna e a antiga condição dos judeus no tempo em que Jerusalém foi vencida pelos Babilónios. A cidade vivia o drama da deportação, mas aqueles que haviam sido poupados viam-se como uma elite, por permanecerem junto aos muros sagrados. O profeta Ezequiel, que é "um hábil construtor de uma língua da imaginação", dá-nos dessa deserção do espírito uma "visão", que tem hoje um sentido diferente, mas que é de igual modo terrível. O profeta vê o carro quatro vezes querubínico da "glória" de Jahvé elevar-se acima do Templo e abandonar a cidade (Ezequiel, cap. 10-11). O espírito desertava. A arquitectura das instituições esvaziava-se de sentido, e aqueles que as ocupavam apenas mantinham pedras, um solo e apetrechos– uma bem falaciosa maneira de possuir o espírito. Para Ezequiel, a invisível razão de ser do seu povo havia deixado esta terra e tomado o caminho do exílio.

Alguma coisa de análogo acontece connosco, diz Michel de Certeau. Produz-se um exílio no nosso ideal democrático. As nossas instituições parecem abandonadas precisamente por aqueles que julgam garantir a verdade e a justiça só pelo facto de as ocuparem. Emigra também a adesão dos cidadãos. Muitas vezes com espavento e com protesto. Mas de um modo geral sem barulho, tal uma água que se esgueira por entre os dedos da mão. O próprio espírito que animava a representação do nosso ideal democrático abandona-nos. Não desapareceu, emigrou, foi para longe das estruturas democráticas, convertidas pela partida do espírito em desoladores espectáculos ou em liturgias da ausência. São assim hoje, por exemplo, os debates parlamentares e as campanhas eleitorais. Se porventura os importantes líderes de partidos e de sindicatos vêm protestar, mãos levantadas ao céu, contra um tempo desprovido de virtudes, o problema não está, segundo a imagem do profeta, em não existir um "espírito". Está simplesmente em já não habitar neles. Não é que o espírito falte; falta-lhes é a eles.

A dissociação entre o ideal democrático e aqueles que deixaram de o habitar rasga lentamente o tecido da nossa cultura. Uma espécie de irracionalidade colectiva multiplica nas instituições os homens exilados do espírito - exilados afinal da única coisa que tornaria credíveis os seus poderes. Emigra o espírito, emigra a adesão dos cidadãos. Vence o indiferentismo e o absentismo.

3. A política como estratégia de gestão

Como desforra perversa do "íntimo terror" de uma cidade rendida ao fantasma da assepsia social e também como desforra perversa do aborrecimento letal em que a mesma cidade agoniza, instala-se nela uma insurreição latente, o terrorismo, guerras tribais de toda a espécie, crenças arcaicas, integrismos e fanatismos das mais variadas origens e obediências. Um não-sei-quê de bárbaro, primitivo, sanguinário, enfim, de não-racional, empesta-nos o ar. E a sua presença incita-nos a reflectir sobre o facto de uma coisa poder ser verdadeira, sem que todavia seja boa, bela ou justa. Esta questão ocupou Max Weber, no momento em que era implantada a ordem racional moderna. Mas sobre ela já havia meditado Nietzsche, e antes dele Baudelaire, nas suas Fleurs du Mal. Às "flores do mal" do nosso tempo, que são legião e que realizam esse "verdadeiro" que não é bom, nem belo nem justo, chama Michel Maffesoli (2000: 166) o "regresso do trágico". Incluindo "sombras e luzes, generosidades e torpezas", o trágico, que toma a vida na sua inteireza, constituiria, na longa duração, o fundamento da cultura popular.

Os mais diversos imaginários, toda a espécie de crença, identidades religiosas, sentimentos de pertença comunitária e outros fenómenos emocionais, contaminam o conjunto do corpo social, furtando-se todavia à lógica mecânica e finalista de um social dominado pela razão instrumental. Ruanda, Zaire, Nigéria, ex-Jugoslávia, Kosovo, Timor Loro Sae, Palestina, Afeganistão – sempre os mesmos massacres, carnificinas, terrorismos suicidários. Diante da irrupção destas paixões identitárias e destas emoções tribais, o que é que pode, no entanto, a proposta de um ideal democrático? Diante dos mitos ancestrais que alimentam as comunidades locais e nacionais, é ainda eficaz a resposta dos valores universalistas produzidos pelos nossos sistemas filosóficos dos séculos XVIII e XIX?

Higienizada e morrendo de aborrecimento, a nossa modernidade vê, entretanto, as políticas esgotarem-se em estratégias de gestão e as guerras confinarem-se a operações policiais. Para o Ocidente, o Afeganistão não é, aliás, outra coisa: operação de higienização, ou seja, estratégia de gestão e operação policial. Veja-se, neste sentido, a esclarecedora polémica a respeito dos presos afegãos da ilha cubana de Guantanamo. A diplomacia americana chegou a colocar a questão de os presos afegãos não serem considerados prisioneiros de guerra, com estatuto, dignidade e direitos reconhecidos pela Convenção de Genebra. É que não há dúvidas sobre o que fazer com bandos armados, o mais que eles podem exigir é a intervenção da polícia.

Não resisto neste ponto a convocar um delicioso trecho de Bragança de Miranda, retirado do seu livro Política e Modernidade. Está ele a páginas tantas (Miranda, 1997: 13) a falar da ideia de política como "acção livre de muitos e desejavelmente de todos", quando tem necessidade de se demarcar da Realpolitik, uma política que vive a assombração permanente de uma razão pragmática. E lembra a propósito o Ricardo III de Shakespeare, onde, no estado de urgência (no caso era a guerra) toda a estática dos atributos e das qualidades era abolida, passando os combatentes a serem todos iguais. Os happy few de então eram os companheiros de luta. Os happy few de agora são os que governam o egoísmo dos atributos, dos médicos contra os odontologistas brasileiros, dos magistrados contra os professores universitários, dos nortenhos contra os sulistas, dos portistas contra os benfiquistas, dos portugueses contra os africanos e os imigrantes do Leste, dos católicos contra os IURD, dos regionalistas contra os anti-regionalistas. A guerra, que para Shakespeare era o melhor sinal do estado de urgência, passa a guerra da distribuição... do orçamento. A nova forma de guerra é, de facto, cada vez mais caso de polícia, uma vez que a nossa situação de urgência tende a esgotar-se em conflitos entre egoísmos de interesses; exactamente nisso, em egoísmos de interesses, ou seja, em distribuição do orçamento. Não admira, assim, que a política se confunda com a "arte" de governar, ou por outras palavras, como a arte de poucos suscitarem permanentemente o "mistério da obediência" de muitos, como fala La Boétie.

Nesta nova forma de guerra, que é apenas caso de polícia, uma vez que a situação de urgência não passa de conflitos entre egoísmos de interesses, não se procura desautorizar ninguém. Apenas se procura forçar o adversário a negociar a sua integração no sistema, segundo as regras. Tem sido sempre assim, por exemplo, com Arafat e os Palestinianos, com o IRA e os Irlandeses do Norte, com a ETA e os Bascos.

É verdade que neste jogo pode levantar-se a dúvida sobre o que é que os miseráveis têm que possa ser negociado. Estou a pensar nos Países do Terceiro Mundo. Pascal tinha todavia toda a razão ao ironizar que "ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si" (apud Benjamin, 1992: 45). Assim acontece, de facto, com os países pobres. Deixando atrás de si a sua dívida, podem sempre negociar o endividamento.

Fria, calculista, desapaixonada, não sentindo o calor, embora a todo o tempo uma euforia libidinal e retórica, uma calda de emoções de produção mediática e tecnológica, a sobreaqueça e a comande do exterior, a política esgota-se, pois, em estratégia de gestão e em operação policial. Entretanto, cavando a deserção do espírito, não se cansa de galgar terreno socialmente um mundo raso de imaterialidades, raso pelo alastramento da razão pragmática que nos invertebraliza.

4. Os média e a razão pragmática

É verdade que a razão pragmática em que consiste o mercado e o consenso não permite a paz. Mas garante a segurança e o crescimento, através da competicão, e é quanto lhe basta. A razão pragmática serve-se da competição como de um único meio, porque não tem outros. A natureza deste mundo, mundo raso de imaterialidades, mundo da troca total, prevê a revisão, mas não admite a subversão. Cada vez mais o radicalismo é aí um abencerragem, e também o é qualquer inconformismo. Em política, a alternância é uma regra, mas a alternativa está excluída. E veja-se a Cimeira do Ambiente de Quioto no Japão, que ocorreu há cerca de quatro anos: nada de subverter a lógica da segurança e do desenvolvimento do sistema, o que quer dizer, nada de subverter o sistema de produção industrial que envenena o planeta, nada de subverter a lógica da globalização imposta pelo capitalismo hegemónico. Revisão, moralidades, humanismo, vá que não vá. Alternativas, subversão da lógica do sistema, alteração do nosso estilo de vida, cuidado com isso. Daí que em Quioto a alegria tenha sido grande por termos diminuído de 6% a 8% a nossa ração de veneno.

Penso que este mundo, um mundo raso de imaterialidades, um mundo de troca total, não tem apenas o favor dos média, como é comum dizer-se. Pelo contrário, num mundo em que o importante é a vitória, o sucesso, ganhar sempre, os meios de comunicação social, e acima de todos eles a televisão, são o seu instrumento privilegiado, são o instrumento que o sistema de sucesso encontrou para se dar em exibição e se reproduzir.

Relembro a SIC dos anos do seu apogeu. Por certo o canal mais emblemático da nossa condição democrática, a SIC constituiu, anos a fio, um verdadeiro ícone do "capitalismo imperialista liberal", como poderia dizer um marxista, se porventura o marxismo não tivesse morrido, passe a ironia. Feita de mercado, competição, consenso, consulta popular, sondagens, feita de debate e de transparência comunicacional, foi este canal até data recente uma infatigável dobadoira da alternância e da revisão de sucesso. Nada lhe escapava da política à religião e ao direito, da vida pública à vida privada e aos sentimentos, do sofrimento à morte, em tempo real e em tempo virtual, em tempo ficcional e na ficção de todos os tempos.

A legitimidade deste mundo da troca total repousa no facto de se auto-construir, revendo-se continuamente em todos os domínios, integrando as estratégias de sucesso, e suscitando mesmo divergências, diferenças, disparidades (que todavia devem processar-se no respeito pelas regras do desacordo). Auto-construindo-se, este mundo raso de imaterialidades vai-se tornando cada vez mais complexo. E à força de tão grande complexidade, chega a poder controlar e explorar as energias que antes eram meramente dissipativas, puro desperdício, porque "naturais" ou "humanas". Alguém dizia que a saúde é o silêncio dos órgãos. A saúde do sistema abafa os barulhos, ou seja, a subversão e as alternativas. Daí que emoção e prazer só se for segundo as regras da transparência.

Volto a relembrar a SIC dos seus tempos áureos. O exemplo que apresento é o reality show "All you need is love". Até há pouco tempo, o amor e a paixão enquanto sentimentos naturais e humanos o mais que podiam fazer de um homem, se quisermos pensar num caso limite, era levá-lo a estoirar os miolos, numa fragorosa confirmação, aliás, do seu desperdício. Pensando em termos tradicionais, é um desperdício a energia que se consome em pura perda. "Louca da casa", como da imaginação disse Descartes, havia era que cingi-la com o abraço de urso da razão. Mas agora o caso muda de figura. O amor e a paixão passam a ter utilidade, deixam de ser energia desperdiçada, ao integrarem a estratégia de sucesso da guerra de audiências de uma estação televisiva. Ou seja, à semelhança do que acontece com a criação e a convicção, também o amor e a paixão passam, pela competição, a servir o mercado e o consenso, os quais, já o referi, funcionam pela lei do debate e da transparência.

Vi nas últimas eleições autárquicas um cartaz absolutamente admirável deste ponto de vista. Em Amares, concelho do distrito de Braga, um dos concorrentes à Câmara local anunciou a sua candidatura deste modo surpreendente: "Amizade para todos". Ora, é verdade que nós somos amigos dos animais. Aqui, sim, é legítima a generalização hiperbólica, porque a amizade é apenas uma força de expressão, apenas um mimo ternurento. Mas a amizade relativa a pessoas, todos o sabemos, é um bem raro, remete para uma escolha pessoal: os amigos nós escolhemo-los, têm para nós um rosto, o que faz com que geralmente sejam poucos. E no entanto, os cartazes da campanha política de Amares falam já de uma outra realidade, uma realidade em que os sentimentos se tornam dóceis e úteis, servindo a razão pragmática.

5. Para uma erótica colectiva

As operações de caça ao animal que vive no humano e os exorcismos para enxotar as sombras que possuem o corpo individual e colectivo integram o regime de uma razão pragmática, uma razão esgazeada pelo abismo do sucesso e assombrada pelo fantasma da assepsia. As campanhas da tolerância zero e do risco zero, e a encenação da aventura humana, através de viagens tranquilas ao reino da evasão, do exotismo e do fantástico, viagens essas prodigadas pelas tecnologias, pelos média e pelos centros comerciais, cavam e aprofundam o movimento de empobrecimento da experiência humana, diagnosticado por Benjamin e Agamben. À comunidade falta-lhe hoje um corpo habitado por uma erótica gozosa. Faltam-lhe afectos, paixão, desejo, sentimento, efervescência, jubilação.

Quando insistimos em designar o ataque às Twin Towers e ao Pentágono como "os acontecimentos do 11 de Setembro e as suas consequências", estamos a integrar o terrorismo no tradicional esquema histórico-político da nossa racionalidade, ou irracionalidade, finalista. A meu ver, a abstenção cívica, a sedição quotidiana e a escalada terrorista participam de uma mesma erótica funesta, espécie de reacção alérgica de um corpo social empobrecido, desenraizado, votado ao abismo da troca total num mundo raso de imaterialidades. Embora em gradações diversas, que vão da violência morna à violência bárbara, primitiva e sanguinária, do que se trata sempre é de "eros" a deixar-se tentar e possuir por "thanatos".

Notas bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio, 2000 [1978], Enfance et Histoire, Paris, Payot & Rivages.

BENJAMIN, Walter, 1992 [1936], "O narrador. Reflexões sobre a obra de Nicolai Lesskov", in Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D’Água, pp. 27-57.

BENJAMIN, Walter, 1993, "Caratteristica della nova generazione", in Ombre Corte, Scritti 1928-1929, Turim, Einaudi.

CERTEAU, Michel de, 1980, La culture au pluriel, Paris, Christian Bourgois Éd.

CRUZ, Maria Teresa, s.d., "Da nova sensibilidade artificial", in Imagens e Reflexões. Actas da 2.ª Semana Internacional do Audiovisual e Multimédia, Lisboa, Ed. Universitárias Lusófonas, pp. 111-116.

LYOTARD, Jean-François, 1993, Moralités postmodernes, Paris, Galilée.

MAFFESOLI, Michel, 2000, L’instant éternel. Le retour du tragique dans les sociétés postmodernes, Paris, Denoël.

MARTINS, Moisés de Lemos, 2002, A linguagem, a verdade e o poder. Ensaio de semiótica social, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia (no prelo).

MIRANDA, José Bragança de, 1994, Analítica da actualidade, Lisboa, Vega.

MIRANDA, José Bragança de, 1997, Política e Modernidade. Linguagem e violência na cultura contemporânea, Lisboa, Colibri.