|  "Les 
                    hommes ne sont pas mes semblables. Ils sont ceux qui me regardent 
                    et qui me jugent." André Malraux, "La Condition Humaine"
 Numa outra Terça-feira Gorda, há trinta e dois 
                    anos, na sede da PIDE, o inspector Paço decidiu interrogar-me 
                    sobre terrorismo. O inspector Tinoco, que conduzia o processo, 
                    já tinha insinuado várias vezes uma ligação 
                    a actos de terror em preparação. A minha negação 
                    terá parecido tão verdadeira quanto era: viria 
                    talvez daí a intervenção de outro inspector. 
                    Lembro-me que lançou sobre os meus amigos angolanos 
                    a acusação de pretenderem fazer explodir transportes 
                    públicos em Luanda. Mais uma vez, neguei com veemência: 
                    amigos meus nunca planeariam a morte de civis. Talvez os dele? 
                    O inspector argumentou com o atentado que, numa estação 
                    de caminho de ferro de Bolonha, acabara de provocar 84 mortes. 
                    Uma vez mais, afirmei a minha certeza que não era obra 
                    da esquerda. Uma provocação da extrema-direita, 
                    talvez? (Mais tarde veio a provar-se ter sido, de facto, obra 
                    da extrema-direita.)
 
 Meses depois, na cela que no Forte-prisão 
                    de Caxias compartilhava com a Fernanda Tomás e a Graciete 
                    Casanova, reli, num velho exemplar entrado sabe-se lá 
                    como e cuidadosamente guardado de vaga de prisões em 
                    vaga de prisões, "A Condição Humana", 
                    de André Malraux. E voltei a viver a solidão 
                    de Tchen no quarto do intermediário, preparando o gesto 
                    que o separará para sempre dos outros homens, nauseado 
                    por esse gesto que deve cumprir, esse gesto não de 
                    um combatente, mas de um assassino. "Assassinar não 
                    é só matar..." A dificuldade de tocá-lo 
                    mais que de matá-lo, porque tocando a sua carne o homem 
                    que dorme retoma a sua natureza humana, e já não 
                    é apenas um obstáculo a eliminar, nem mesmo 
                    um inimigo, mas alguém que faz parte do mesmo grupo 
                    a que o seu sacrificador pertence. Voltei a viver o momento 
                    em que, sob o medo do acordar do homem que dorme, Tchen logra 
                    fazer o movimento que o levara até aí, o golpe 
                    do punhal que busca o coração, e o momento seguinte, 
                    aquele em que fica irremediavelmente só, confrontado 
                    com o silêncio e essa espécie de vertigem em 
                    que mergulhou, para sempre separado do mundo dos vivos, esmagado 
                    simultaneamente pelo horror e o gosto do sangue. Senti com 
                    ele a vontade de tocar alguém vivo e a necessidade 
                    de olhar-se ao espelho, onde a sua face reflectida não 
                    mostrava o horror do acto acabado de cometer. ("A criança 
                    que se sabia possuída pelo Demónio ia ver no 
                    espelho se nada transparecia", escreveu Guillevic.) E 
                    compreendi como, para Tchen, que a morte do intermediário 
                    separara para sempre dos outros homens, o terrorismo se impôs 
                    como um sentido de vida, o único capaz de o fazer sentir-se 
                    na posse completa de si mesmo. 
 Ao leitor de "A Condição 
                    Humana" é, certamente, mais fácil identificar-se 
                    com Katow, com a noção de solidariedade que 
                    o leva a, por grande que seja o seu medo, dividir o cianeto 
                    que lhe resta entre os que têm mais medo ainda e avançar 
                    para a morte pelo fogo - mas isso não impede a necessidade 
                    de compreender Tchen, porque Tchen, como o sabem tantos homens 
                    traumatizados por actos cometidos na guerra, tantos assassinos 
                    que se não reconhecem no seu crime, mais do que Katow, 
                    vive afinal em cada um de nós.O livro de Malraux sobre a malograda revolta de Shanghai em 
                    1927, esse livro que torna tão certeira a observação 
                    de Brecht "do rio que tudo arrasa se diz que é 
                    violento; ninguém diz violentas as margens que o comprimem" 
                    tornou-se, para sempre, um instrumento de leitura da violência. 
                    Da violência das margens, que provoca uma revolta colectiva 
                    e solidária, mas também esse primeiro crime 
                    que, dividindo o seu autor do resto da Humanidade, torna insignificantes 
                    todos os que se seguem.
 
 Algo que conhecem bem os exércitos que 
                    raptam jovens para os integrar na sua luta e os forçam 
                    a um primeiro e terrível crime, na pessoa de um familiar, 
                    de um vizinho ou de um amigo, para que o horror desse acto 
                    seja o mais seguro laço a prender aquele que o cometeu.Voltei a reler "A Condição Humana" 
                    há cerca de dois anos, em vésperas de visitar 
                    Shanghai, de ali filmar. Jornalista, o terrorismo, o uso do 
                    terror, tornaram-se, entretanto, para mim, se não banais 
                    - porque banalizá-los seria, de algum modo, legitimá-los 
                    - pelo menos habituais e, em certos conflitos, em certas zonas 
                    do Mundo, quotidianos. Mas, ao reler Malraux, foi de novo 
                    a solidão de Tchen que se me impôs como visão 
                    mesma do Inferno. Porque, ao caminhar, só, para a fornalha, 
                    Katow tem a seu lado toda a Humanidade, enquanto que Tchen, 
                    mesmo cometendo o seu crime em nome dos mesmos por quem Katow 
                    morre, perdeu o direito a reclamar-se dela.
 
 É essa, afinal, também, a linha 
                    que separa o autor de um atentado do carrasco que o executa, 
                    em nome do Estado que o condena. Qualquer deles está 
                    só, mas um sente atrás de si o clamor dos outros. 
                    "Assassinar não é só matar..."
 É em nome de Tchen - ou em nome de Malraux 
                    e desse livro admirável sobre a solidão, o absurdo, 
                    o horror e a nobreza da condição humana - que 
                    cada acto de terrorismo me merece uma reflexão outra 
                    que a simples condenação. É fácil 
                    condenar, mas não me basta. Preciso de mais, preciso 
                    de compreender porque é que alguém escolhe cortar-se 
                    assim da Humanidade, porque é que em alguém 
                    a Humanidade se esvaíu a tal ponto que se torna capaz 
                    de negá-la. 
 Compreendo assim melhor que os outros os atentados 
                    suicidas: a solidão de Tchen, a terrível, dolorosa 
                    solidão de Tchen, ensinou-me que é mais fácil 
                    morrer com o seu crime que sobreviver com ele. E não 
                    só para o próprio, porque a violência 
                    que se desperta num ser humano pode tornar-se incontrolável 
                    mesmo para aquele que a despertou. E a náusea de Tchen, 
                    o seu horror, perante os sinais de vida que lhe chegam desse 
                    homem que deve matar, que sabe que matará, ensinou-me 
                    aquilo que todos os carrascos sabem: como são importantes 
                    as vendas e os capuzes colocados sobre aqueles que se devem 
                    abater, para que nunca um sorriso, um olhar, uma cumplicidade 
                    possa estabelecer-se entre o que vai ser morto e o que deve 
                    matá-lo. Como tão bem o mostra uma outra obra, 
                    "Jogo de Lágrimas" ("The crying game"), 
                    de Neil Jordan, em que, aos poucos, para aquele que deve matar, 
                    se torna insuportável abater alguém que viu 
                    comer, chorar, rir, ter medo, que lhe mostrou a fotografia 
                    da namorada, porque a Humanidade, em nós, é 
                    algo que custa matar, que, até onde o consigo compreender, 
                    só pode ser morto por qualquer coisa ainda mais forte: 
                    a recusa, pelo outro, dessa Humanidade em nós. 
 Há alguns anos, nas ruas de Bordéus, 
                    um homem que Aristides Sousa Mendes salvara dos campos de 
                    concentração explicou-me claramente esse processo: 
                    depois de uma passagem por Portugal, seguira com os pais e 
                    irmãos para os Estados Unidos e, aos 18 anos, fora 
                    integrado, como tradutor, no Exército norte-americano 
                    e enviado de novo para a Europa. "Era muito jovem", 
                    disse-me, "e quando via soldados mortos não conseguia 
                    deixar de chorar. Mas um dia percebi que só chorava 
                    quando os mortos eram das tropas aliadas: se fossem nazis, 
                    não chorava. Foi quando percebi que também eu 
                    podia ser um nazi." Sim, não é uma questão 
                    de ser ariano ou semita: apenas uma questão de negar 
                    no Outro aquilo que tem em comum connosco, a sua Humanidade. 
                    Os nazis tinham destruído a sua inocência, a 
                    sua fé no Homem; tinham-lhe implantado o ódio; 
                    e, por esse ódio, assemelhava-se a eles. 
 Foi por esse judeu belga, que hoje se diz apenas 
                    "novaiorquino", que percebi melhor a (condenável) 
                    actuação de Israel em relação 
                    aos palestinianos e também os (igualmente condenáveis) 
                    atentados em nome da Palestina. Foi por ele - a primeira pessoa a quem telefonei a 11 de Setembro 
                    de 2001 - como por Malraux e por essa personagem trágica 
                    que é Tchen, que os atentados suicidas contra as Torres 
                    Gémeas de Manhattan não me impuseram sómente 
                    a (natural, evidente) condenação, mas a necessidade 
                    de perceber. E não creio que haja nessa necessidade, 
                    na posição daqueles que, face aos atentados, 
                    tentam compreendê-los pela acumulação 
                    da violência silenciosa que é a humilhação, 
                    qualquer conivência com o terrorismo. Pelo contrário: 
                    só entendendo as suas causas é possível, 
                    se não erradicá-lo, ao menos diminui-lo significativamente.
 
 Há frases que, nos últimos e 
                    (aparentemente) apolíticos anos parecem ter desaparecido 
                    das nossas memórias. Frases que, há uns anos, 
                    todos citávamos, possívelmente sem mesmo nos 
                    apercebermos do seu real significado. Frases como "nada 
                    mais tendes a perder que as vossas grilhetas" ou "onde 
                    há opressão, há resistência". 
                    Num Ocidente onde o consumidor substituiu o cidadão, 
                    onde é a obesidade, mais do que a fome, a merecer alertas 
                    médicos (até porque os que sentem a fome não 
                    interessam porque não consomem), essas frases parecem 
                    hoje destituídas de sentido, próprias apenas 
                    a dinossáurios incapazes de entender que os tempos 
                    mudaram e só o sucesso individual interessa. E porque 
                    nos parecem destituídas de sentido aqui, julgamo-las 
                    aplicáveis a todo o Mundo. E porque nos parecem destituídas 
                    de sentido no nosso conforto, julgamo-las sem sentido para 
                    outros, que se sentem afastados do nosso Mundo por razões 
                    de miséria, normalmente, mas também de cor da 
                    pele, de costumes ou de religião.
 Isolados no nosso bem-estar, desatentos de 
                    todos os valores que não os do dinheiro, tornámo-nos 
                    incapazes de perceber os outros, e só estremecemos 
                    quando vemos que - tão perto de nós, nos Balcãs 
                    - a violência pode irromper por razões que se 
                    nos afiguram anacrónicas, como a religião ou 
                    a vingança da morte de antepassados ou membros do clã. 
                    Ou o orgulho ferido, como na Irlanda do Norte ou no País 
                    Basco.Porque já não reagimos às afrontas com 
                    o duelo, deixámos de compreender que o orgulho ferido 
                    gera a violência, e que só nessa violência, 
                    na vingança sangrenta, excessiva, sobre o Outro que 
                    o humilha, pode o humilhado reencontrar-se, readquirir a posse 
                    completa de si-mesmo.
 É isso, afinal, o terrorismo. O ódio feito acção, 
                    a humilhação vingada pelo sangue e a humilhação 
                    do Outro, por quem nos sentimos negados na nossa Humanidade.
 
 Temo que, não compreendendo isso, estejamos 
                    a criar o aumento do terrorismo, não a sua diminuição. 
                    Como os conflitos no Médio Oriente ou na Europa de 
                    Leste sobejamente o demonstram - para não falar de 
                    outros, menos mediáticos - o ódio e a violência 
                    que este gera não se extinguem numa geração 
                    ou em décadas de aparente paz. A opressão e 
                    a humilhação continuam a vingar-se com sangue, 
                    e não há bombardeamento norte-americano que 
                    garanta que, daqui por uns anos, uma criança afegã 
                    ou iraquiana não vingue num qualquer cidadão 
                    dos Estados Unidos a morte dos seus pais - como nenhuma violência 
                    israelita conseguiu pôr fim aos atentados suicidas de 
                    jovens palestinianos.  Como não há pena, por mais pesada 
                    que seja, que evite que, algures num país do Ocidente, 
                    alguém vingue num patrão a humilhação 
                    de ter sido despedido e privado de trabalho e de salário, 
                    ou nos carros dos burgueses a humilhação de 
                    viver num bairro periférico e andar de transportes 
                    públicos. 
 O terrorismo é a ponta visível, 
                    o grito do mal-estar absoluto - algo que nos é tanto 
                    mais dificil perceber quanto os tempos nos parecem de relativização. 
                    E provoca-nos, a nós que tentámos afastar de 
                    nós todo o desconforto, que remetemos a morte para 
                    os Hospitais, tomamos pílulas para suportar o absurdo 
                    do Mundo e postergamos a velhice, o horror absoluto. É 
                    essa a vantagem dos terroristas sobre nós: numa vida 
                    sem sentido, o suicídio em nome de uma causa pode ser 
                    a única coisa que os justifica; e nós, de tanto 
                    que nos afastámos deles, deixámos de ser seus 
                    semelhantes, para sermos apenas os que os olham e os julgam. 
                    Os que os descrevem como tendo todos os males e todas as taras. 
                    Já alguma vez repararam como usam ser estrangeiros 
                    os maus dos filmes de Hollywood? Já repararam como 
                    têm cor e origem os bandidos dos muitos programas de 
                    televisão sobre a acção policial? Já 
                    repararam como nós, os defensores do Estado de Direito 
                    e da Convenção de Genebra, achamos normal que 
                    se matem Bin Laden e os membros da El-Qaeda? Já repararam 
                    como, sem disso darmos conta, continuamos a dividir o Mundo 
                    entre os Homens e os Outros?
 
 O terrorismo é o mal absoluto? Talvez. 
                    Mas como perante Tchen, perante a náusea que o invade 
                    ao saber que vai matar, não consigo deixar de me perguntar: 
                    e qual é a minha, a nossa responsabilidade nesse mal? 12 de Fevereiro de 2002. Terça-feira 
                    de Carnaval.
 
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