"O Mal possui também
um olhar inocente
que vê o Mal em tudo à sua volta."
Hegel
Quando penso em terror lembro-me da frase de
Edmund Burke - " Nada mais teme o homem que ser tocado
pelo desconhecido". A frase é do sec. VIII e,
nessa altura, a referência maior do desconhecido era,
sem duvida, a noite e todos os seres que a imaginação
conseguia produzir no escuro quando o olhar era desactivado.
Resolvido o problema da noite no século
XIX com a luz eléctrica o desconhecido infiltrou-se
noutras bandas. Toda a produção narrativa, fictícia
do séc. XX perseguiu sem piedade o desconhecido, tentando
controlá-lo detectando-o para além da morte,
no interior da carne, no inconsciente, nos outros planetas,
no maquínico, no diferente cultural ou no político.
A ciência construiu novas fronteiras ao desconhecido,
a ficção multiplicou-lhes as possibilidades
de terror e grupos sociais aproveitaram as suas possibilidades
políticas. Anular os diversos desconhecidos tornou-se
de tal forma tarefa fundamental dos tempos modernos que não
deixa de ser espantoso a forma como as fronteiras do desconhecido
não só não desapareceram como se conseguem
multiplicar a partir de banais e vulgares diferenças
que de repente se monstrualizam e se tornam imensas fontes
de terror.
Quando, após a tragédia de 11
de Setembro, a reflexão sobre o terror foi enquadrada
no clássico " Confronto de Civilizações"
a ideia era claramente recolocar este novo terror nas categorias
clássicas do desconhecido - O OUTRO PURO. Quem aterroriza
está noutro território, noutra cultura, noutra
religião, é portanto o desconhecido puro. Nada
mais enganoso que este confronto de civilizações.
A tragédia do onze de Setembro não pode ser
separada de outras duas que aconteceram no interior do EUA
(todas enquadradas, aliás, num mesmo e crescente fenómeno
de ampliação do choque) e indicia uma nova dimensão
na experiência do desconhecido e, portanto, do terror.
Refiro-me ao atentado de Oklahoma, em 1995, que vitimou cerca
de 168 pessoas, entre as quais várias crianças,
e à mortandade no liceu de Colombine (1999), quando
dois estudantes mataram 12 colegas, suicidando-se em seguida.
No caso do atentado de Oklahoma, as razões
alegadas pelo condenado Timoty McVeight têm a ver com
o facto de ele se ter auto-diferenciado do próprio
Estado norte-americano, transformando-o no Outro radical,
fonte de actividades conspirativas, administrando uma rede
oculta de interesses contra os cidadãos. Manipulador,
portanto, a partir de uma zona de desconhecido organizado
e artificial que coexiste no mesmo espaço dos cidadãos
vítimas.
A tragédia do liceu Colombine é
ainda mais inquietante. Dois jovens mataram e sacrificaram
a vida para ficarem diferentes, famosos. Trata-se de uma reinversão
total do paradigma hobbesiano no interior do Estado Ocidental
que se construiu a partir do modelo - "o medo e a insegurança
dos cidadãos leva-os à constituição
da sociedade". Os jovens de Colombine escolheram a morte,
destruído a sociedade em nome da imortalidade.
Estes dois acontecimentos têm semelhanças
dramáticas com o mediático colapso do WTC e
provam que o "desconhecido" se insídia para
além das diferenças civilizacionais. O desconhecido
que pode causar o terror parasita hoje o dispositivo da diferenciação
moderno, sobretudo quando pequenas e vulgares diferenças
se tornam barreiras incontornáveis criando micro e
macro-desconhecidos por todo o lado, à nossa volta.
Uma das características chave dos tempos modernos é
este estar obrigado à diferença. Passar com
bom e distinção na vida é, sem duvida,
uma das máximas da condição humana ocidental.
O paradigma da diferença que gera desconhecidos já
não está apenas onde o querem ver; na Religião,
na Nação, no Distante Cultural. Anda por em
volta, produz ignorâncias, ódios e desconhecidos
à medida que se massificam os atributos da diferença.
Direitistas, esquerdistas, skaters, punks, cavaquistas, soaristas,
homossexuais, heterossexuais, actores, ateus, fundamentalistas,
benfiquistas, católicos, esquizofrénicos....
Não me sai da memória o espanto do jovem talibã
que, aos 20 anos, não sabia o que era a Estátua
da Liberdade, nem o jovem irlandês católico que,
com orgulho, afirmava que nunca pisou o bairro vizinho protestante.
O dispositivo, a máquina, a "dínamos"
das diferenças anda por aí descontrolada expandindo
os desconhecidos e... "nada aterroriza mais o homem que
ser tocado pelo desconhecido."
Lisboa - 19-02-02
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