trans.gif (43 bytes) trans.gif (43 bytes)

  Manhattan em Lisboa. Episódios da guerra das imagens

  [ Maria Teresa Cruz ]

trans.gif (43 bytes)
trans.gif (43 bytes)

 

 

 

Seis meses após os acontecimentos de 11 de Setembro e a destruição brutal das Torres do World Trade Center de Nova Yorque assistimos, há alguns dias atrás, à concretização do projecto «Towers of Light», inaugurado no mês de Março com honras de Estado. Estampadas a luz no céu novaiorquino, as novas «torres» são o simulacro de uma presença impossível que não esconde contudo a sua fragilidade fantasmática, ao dar-se apenas através dessa substância quase inefável que é a da luz. Reconstrução eficaz, ainda assim, na medida em que esta imagem de luz consegue colmatar, de facto, essa falha quase narcísica do skyline de Manhattan.

O projecto das «Torres de Luz» surgiu como uma proposta criativa de um grupo independente de indivíduos 1 mas teve, desde o início, o apoio de diversas instituições culturais da cidade 2. Sendo certamente o mais oficial, este está longe de ser um caso único de invocação da arte para sarar as feridas do 11 de Setembro. Na cultura popular americana, por exemplo, a iniciativa «Why: Art about the attack on the World Trade Center & Pentagon», em especial, mas também na paisagem das instiuições culturais e até da crítica cultural especializada, como a do grupo Rhizome, a ideia de que a arte tem um papel a cumprir neste processo tornou-se um quase lugar-comum do discurso quotidiano, voltado para uma rápida superação, pelo menos simbólica, da crise. Associações culturais e grupos mais ou menos organizados de cidadãos, comunidades virtuais e os media têm apelado à reunião e divulgação de propostas artísticas que impliquem uma reacção criativa aos acontecimentos de 11 de Setembro: em instituições culturais, em galerias de arte, em revistas da especialidade, em sites na internet e ainda no espaço público.

Na maior parte dos casos, a livre expressão criativa do cidadão anónimo fica aprisionada na inocência kitsch do estereótipo e na euforia "photoshop" da montagem de imagens, nomeadamente daquelas que foram massissamente difundidas pelos media. Nunca a bandeira americana foi, também aqui, tão amplamente celebrada, em fundos e composições. Provocando certamente, a muitos, um olhar de escarnecedora condescendência, tais exemplos não deixam de colocar uma questão de relevância maior. O que pode a arte num mundo refém das imagens? O que faria, neste caso, o próprio Andy Warhol, esse grande iconólogo da vida e do imagnário americano, que eternizou como verdadeiros clássicos as já por si imortalizadas imagens da Coca-cola, de Marilyn Monroe ou de Jacqueline Kennedy. O que foi ainda possível à Pop Art como um quase último «escândalo», não é talvez já possível agora. Ou encontra-se, dir-se-ía, finalmente popularizado. Hoje, cada um possui virtualmente em sua casa uma «Factory» ou um centro de produção e até de distribuição de imagens, e um modo fácil e imedaito de aceder à quase totalidade do arquivo universal das imagens historicamente produzidas. As imagens estão de facto votadas à reprodução e apropriação generalizadas. E cada um pode, neste jogo, reclamar-se, pelo menos, um artista pop. Tal como qualquer um pode hoje mais facilmente acreditar na distribuição social do capital da criatividade, de que falava, por sua vez, Joseph Beuys. A técnica encarregou-se de tornar qualquer destas ideias aparentemente credível sem a mediação heróica do artista (consagrado) que ambos (Warhol e Beuys) foram. A dispersão da aura, como suspeitara há muito Benjamin, acompanha a implementação dos dispositivos tecnológicos da imagem. Se é difícil sustentar que cada um destes súbitos autores seja realmente um artista, mesmo que por apenas 15 minutos, é também cada vez mais difícil fundar a ideia de que alguns outros sejam mais artistas do que eles.

Indiferente a estas especulações (possíveis), a sociedade americana e muitas das suas instituições culturais encorajaram a arte e o artista em cada um a participar na tarefa comum de (re)animação cultural e simbólica. Reagir à crise instalada e sarar as suas feridas seria ssim a tarefa cultural e artísitica prioritária de todos e de cada um. Em Lisboa, um único caso apela, com a mesma intensidade, a uma reacção pela arte (ao 11 de Setembro), chamando antes de mais à responsabilidade (e a uma responsabilidade quase socio-profissional) intelectuais e artistas. O caso da galeria Quadrum, que decidiu interromper o curso da sua programação, a partir do dia 10 de Novembro, e inaugurar um ciclo denominado «Manhattan – Arte contra o Terrorismo», o qual durará até ao fim de Julho de 2002. Este projecto é anunciado pelo seu organizador (António Cerveira Pinto) como «um projecto de arte e solidariedade com Nova Iorque» e a instauração de uma espécie de «"centro de crise" vocacionado para a reflexão, a produção e a exibição de obras de arte relacionadas com o ataque terrorista que destruiu o World Trade Center». Aponta-se a necessidade de uma «solidariedade activa com as vanguardas artísticas norte-americanas» e lembra-se «o que a arte norte-americana representou e representa para a Europa desde meados da década de 50, o acolhimento que Nova Iorque sempre soube oferecer aos artistas de todo o mundo, que por um motivo ou outro tiveram que escapar a guerras, ditaduras e revoluções» e, nessa medida, «a dívida intelectual e humana» que os artistas europeus teriam neste momento para com os artistas e intelectuais norte-americanos.

Nos EUA, as propostas individuais e anónimas que têm adquirido maior notoriedade são naturalmente aquelas que, apesar da sua exterioridade ao «mundo da arte», se abrigam na categoria esteticamente aceite de «arte pública», ou não fossem as feridas e as panaceias simbólicas desde sempre solidárias de uma arte que reclama para si, monumentalmente ou minimalmente, ornamentalmente ou interventivamente e, até, irreverentemente, o privilégio (sempre espectacular) de ocupar o espaço público. Dois exemplos, entre os muitos que foram alimentando o surto de criatividade da crise, são: as «Towers of Remembrance», uma iniciativa lançada pelo Maine College of Art que se apresenta como uma «open-ended collaborative artwork» e «Hope», obra concebida por um estudante de Belas Artes de Boston (Morgan Schwartz), um mês após o ataque terrorista, de onde resultou uma imagem que correu a América. A primeira, propôs-se projectar, em duas colunas de janelas de um grande edifício uma colagem de imagens alusivas ao 11 de Setembro, que iria mudando em função das propostas enviadas por qualquer cidadão de qualquer ponto do mundo. Estas «torres» de imagens resgatariam, como símbolo, as torres abatidas, também elas como símbolos. A segunda, concretizada por um «skywriter», consistiu na escrita da palavra «Hope» nos ceús de Boston, numa caligrafia de fumo branco, visível de vários pontos da região. O carácter público (mais ou menos inclusivo ou colaborativo) deste tipo de iniciativas acentua quer a sua natureza simbólica quer o seu fito quase terapêutico. Muitas delas sublinham a necessidade de «encorajar» uma comunidade abalada nas sua estrutura social e, sobreutdo, abalada na sua «psyche»: «The world's psyche has been irrevocably altered», diz Exit Art, um grupo de discussão artístico que deu início a um programa a que chamou «Reactions».

De facto, todo o símbolo é, de algum modo, curativo: vem cersir o que foi rompido, cindido ou posto em crise, relembrar e rehabilitar a reunião, a completude e o todo como um possível. Sabemos que a arte tem sido, em muitos momentos, um dos rostos mais visíveis deste trabalho do símbolo e da celebração da unicidade, da reconciliação e da plenitude. Por isso ela se fez monumento. Mas sabemos também que as aventuras modernas da arte foram, muito especificamente, as do esgaçamento do símbolo. Por isso a arte se fez fragmento, apropriação, montagem, circunstância e acaso, crise do sentido. Aprofundamento das cisões e das feridas, ela foi a crise e não a cura. Porta-bandeira da demolição cultural, não guardiã dos seus monumentos. Negatividade e destruição, não espírito construtivo de reconciliação 3. Neste contexto, todo o gesto paleativo e simbólico aparece como monumental, oficial e celebrativo, por mais anónimo e individual que seja. Depois dos sonhos arrasadores de uma vanguarda de inspiração agonística, soa estranha a invocação de uma arte curativa. De facto, essa vanguarda não manifestou hesitação ou pudor relativamente às ideias de destruição e até de violência que lhe pareceram, em alguns momentos, defender bem valores essenciais, como o da liberdade, sem o qual a arte, tal como a vida, só poderia sucumbir.

Uma tal afinidade com a violência e a destruição, ou mesmo um confesso fascínio pelo crime e pelo terror, tem as suas raízes, não apenas nesse agonismo das vanguardas, mas também, como se sabe, num certo gosto romântico pelo horrível, pelo excessivo e desmesurado, pelo sublime ou inapresentável. Quererá isto dizer que, na boa tradição moderna (nomeadamente aquela que tem rehabilitado a ideia de sublime), a arte e as instituições culturais não poderiam neste momento assinalar a tragédia, condenar o acto, chorar os mortos? De modo algum. Aliás, é notório o quanto as declarações de Stockhausen, a respeito das afinidades entre o atentado terrorista às torres e uma verdadeira obra de arte foram mal recebidoas pelo meio cultural e artístico, quer nos EUA quer na Europa. Mas não deixa também de ser curioso que, ao movimento de uma «salvação pela arte», não se tenha verdadeiramente associado uma parte significativa das vozes dos artistas e intelectuais, aparentemente bem mais divididos acerca do sentido desse abalo sofrido pela «psyche mundial» ou pelo «espírito americano». Numa alusão às terapias e solidarieddes simbólicas (mediáticas e culturais) que preenchem o espaço público americano, Susan Sontag, por exemplo, alerta: «Politics, the politics of a democracy which entails disagreement, which promotes candor has been replaced by psychotherapy. Let's by all means grieve together. But let's not be stupid together». Este alerta implica certamente uma leitura própria do 11 de Setembro e um conjunto de convicções políticas e ideológicos mais amplas, que não estão aqui em causa, mas ele permite também questionar as missões de unificação e salvação simbólica pela cultura e pela arte. Na verdade, elas serão tão pouco efectivas quanto o foram talvez as revolucionárias e as agonistas. A arte não mata nem salva, apenas vai engordando a história da arte e das instituições.

É indiscutível, porém, que de vida e de morte se tratou nestes acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e que há portanto que meditar e que agir, como diante de qualquer manifestação de violência extrema. E é indiscutível, também, que tais acontecimentos e tal violência se etretecem intimamente de imagens e, mais ainda, de uma relação-problema entre a imagem e a vida. E se a imagem está implicada neste cenário de violência, então também a cultura o está. As «Torres de Luz» que agora se erguem na noite de Nova Iorque são, aliás, mais um episódio numa certa guerra das imagens. Elas são uma imagem em guerra contra as imagens desse outro espectáculo – o de 11 de Setembro – as imagens dos aviões embatendo contra as torres e as do seu colapso, horas depois, num certo dia do iníico do século XXI. Uma tal guerra é mais antiga do que a arte, ou do que a sua invenção moderna, mas é verdade que a arte é ela própria um episódio numa guerra (muito antiga) em torno das imagens. Truncando brutalmente a longuíssima genealogia dessa guerra recorde-se que, apenas alguns meses meses antes (em Março de 2001), imagens vindas do longínquo Afeganistão tinham já feito retornar o debate em torno da cultura, da arte e das imagens. Esse debate chegava com as imagens da destruição inflingida pelos Talibãs a antiquissimas estátuas de budas de cerca de 30 m de altura e mais de 15 séculos de existência, toque majestático final da destruição já então realizada de cerca de 80% da estatuária religiosa budista de toda aquela região, à custa de operações de dinamitação levadas a cabo por tropas do regime, como uma missão militar e cultural, ou seja, uma misão da vanguarda intelectual do regime talibã. Foram muitos, por sua vez, os que fizeram notar o parentesco entre os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e as imagens de violênica e destruição de vários exemplos do cinema americano. A cultura que imaginou (ou pôs em imagem), muitas vezes, as mas variadas conspirações contra a sua forma de vida, a sua segurança, os seus monumentos e até as próprias torres novaiorquinas vê estes mesmos presságios passarem a actos pela mão daqueles que, ao contrário, jamais os poriam em imagem, mas que montaram, com tais factos, um espectáculo avassalador, de visibilidade mundial, através de imagens massissamente divulgadas. Outros episódios nesta guerra em que a imagem está indiscutuvelmente envolvida são: o controlo que as autoridades americanas exerceram sobre as imagens a divulgar ou não pelos media (sabendo-se que foi fortemente desencorajada a passagem de imagens dos mortos de 11 de Setembro e ainda dos ataques de retaliação ao Afeganistão) e, ainda, os videos de Bin Laden e do regime talibã, meio escolhido por protagonistas que vêm precisamente na imagem, em geral, e nos seus dispositivos modernos, em particular, uma das maiores ameaças aos princípios do islamismo. As imagens, tal como os aviões, parecem ter sido assim, nestes acontecimentos, outras tantas armas voltadas contra os seus próprios promotores.

O regime da imagem e da visibilidade, por excelência, o do ocidente, introduzido pelo cristianismo há 2000 anos e reforçado, em todos os momentos, por uma economia solidária da representação e do simulacro, vê-se subitamente assombrado pelas imagens da sua própria destruição, no incessante «videoclip» do atentado contra o o World Trade Center. É a necessidade de combater estas imagens que faz a sociedade americana desmultiplicar-se em simbolismos, esteticismos e expressividade e aplicar-se, ao mesmo tempo, a dosear algumas outras imagens deste conflito (nomeadamente as do quase «crístico» Bin Laden ) inflingidas pela outra parte. Seria difícil reconhecer verdadeiramente nestas estratégias complexas do uso da imagem (por ambas as partes) uma reedição dos conflitos entre idolatria e iconoclastia. É um facto que as motivações religiosas e culturais são invocadas com fervor por ambos: fala-se em nome de Deus, em nome do Bem contra o Mal absoluto, em nome de formas de vida ameaçadas, o que alimentou as leituras do «choque de culturas» ou de uma guerra civilizacional na qual o ocidente, por inteiro, não poderia deixar de se empenhar. A questão do terrorismo deslizou muitas vezes para uma contextualização deste tipo, que não pode senão conduzir a uma incompreensão e intolerância culturais realmente perigosas e indesejáveis. Ora, na verdade, é de um dado estado mundial da economia política que se trata, de uma dada geopolítica daí resultante e da legitimidade ou ilegitimidade do uso do terror e da violência. É pois de política que se trata.

O uso das imagens, de parte a parte, não faz senão acentuar os abismos culturais, os seus respectivos simbolismos e as suas bandeiras, mas é quase uma mesma relação com a imagem que se manifesta, mesmo se mais crente para uns e mais cínica, talvez, para outros. Aliás, é num mesmo ecrã (mundial) que tudo se passa (como aliás tem acontecido com outros momentos de eclosão do terrorismo). O ódio visual exprime-se também ele no audiovisual, as imagens da cultura iconoclasta são difundidas pelas grandes cadeias de televisão e pela internet. O videoconfronto em curso desmascara assim, de algum modo, um certo estado mundializado da uma mesma oikonomia.

Isto mesmo se poderia deduzir dos dois videos instalados em extremos opostos da galeria Quadrum, na última iniciativa de «Manhattan – arte contra o terrorismo», com a assinatura colectiva de AK47. Instaurando uma espécie de videocampo de batalha, cada um desses videos invocava o fundo religioso de uma guerra bem antiga que a relação com as imagens fundou e alimentou durante muito tempo. Na linha da frente de ambos os campos perfilava-se contudo, neste caso, um mesmo dispositivo: um monitor video, passando um conjunto de imagens em loop. Num deles, ao som ritmado de um metrónomo, um corpo vestido com uma batina de padre executa ritualmente o gesto da cruz. No outro, umas mãos armadas de um chisado recortam a mancha escrita das páginas de um Corão. Passado de trás para a frente este último resulta numa espécie de imagem de suturação, como se a arma do corte servisse para restabelecer a unidade dessas páginas. Num sintomático face a face videográfico, esta encenação sublinha com maior eficácia, talvez, do que muitos discursos recentes, a necessidade de pensar a relação quase obrigatória que a experiência mantém hoje com a imagem e os seus dispositivos modernos, relação na qual se acolhem tanto as idolatrias como as iconoclastias. Aliás, tais dispositivos estão mais aptos do que qualquer outra arma para decompor, desconstruir e dessacralizar o longo arquivo ocidental das imagens. O ciclo «Manhattan», em Lisboa, é certamente uma boa oportunidade para continuarmos a seguir os episódios de uma certa guerra das imagens.