Seis meses após os acontecimentos
de 11 de Setembro e a destruição brutal das Torres
do World Trade Center de Nova Yorque assistimos, há
alguns dias atrás, à concretização do
projecto «Towers
of Light», inaugurado no mês de Março com honras
de Estado. Estampadas a luz no céu novaiorquino, as novas
«torres» são o simulacro de uma presença impossível
que não esconde contudo a sua fragilidade fantasmática,
ao dar-se apenas através dessa substância quase inefável
que é a da luz. Reconstrução eficaz, ainda
assim, na medida em que esta imagem de luz consegue colmatar, de
facto, essa falha quase narcísica do skyline de Manhattan.
O projecto das «Torres de Luz» surgiu
como uma proposta criativa de um grupo independente de indivíduos
1
mas teve, desde o início, o apoio de diversas instituições
culturais da cidade 2.
Sendo certamente o mais oficial, este está longe de ser um
caso único de invocação da arte para sarar
as feridas do 11 de Setembro. Na cultura popular americana, por
exemplo, a iniciativa «Why:
Art about the attack on the World Trade Center & Pentagon»,
em especial, mas também na paisagem das instiuições
culturais e até da crítica cultural especializada,
como a do grupo Rhizome, a
ideia de que a arte tem um papel a cumprir neste processo tornou-se
um quase lugar-comum do discurso quotidiano, voltado para uma rápida
superação, pelo menos simbólica, da crise.
Associações culturais e grupos mais ou menos organizados
de cidadãos, comunidades virtuais e os media têm apelado
à reunião e divulgação de propostas
artísticas que impliquem uma reacção criativa
aos acontecimentos de 11 de Setembro: em instituições
culturais, em galerias de arte, em revistas da especialidade, em
sites na internet e ainda no espaço público.
Na maior parte dos casos, a livre
expressão criativa do cidadão anónimo fica
aprisionada na inocência kitsch do estereótipo e na
euforia "photoshop" da montagem
de imagens, nomeadamente daquelas que foram massissamente difundidas
pelos media. Nunca a bandeira
americana foi, também aqui, tão amplamente celebrada,
em fundos e composições. Provocando certamente, a
muitos, um olhar de escarnecedora condescendência, tais exemplos
não deixam de colocar uma questão de relevância
maior. O que pode a arte num mundo refém das imagens? O que
faria, neste caso, o próprio Andy Warhol, esse grande iconólogo
da vida e do imagnário americano, que eternizou como verdadeiros
clássicos as já por si imortalizadas imagens da Coca-cola,
de Marilyn Monroe ou de Jacqueline Kennedy. O que foi ainda possível
à Pop Art como um quase último «escândalo»,
não é talvez já possível agora. Ou encontra-se,
dir-se-ía, finalmente popularizado. Hoje, cada um possui
virtualmente em sua casa uma «Factory» ou um centro de produção
e até de distribuição de imagens, e um modo
fácil e imedaito de aceder à quase totalidade do arquivo
universal das imagens historicamente produzidas. As imagens estão
de facto votadas à reprodução e apropriação
generalizadas. E cada um pode, neste jogo, reclamar-se, pelo menos,
um artista pop. Tal como qualquer um pode hoje mais facilmente acreditar
na distribuição social do capital da criatividade,
de que falava, por sua vez, Joseph Beuys. A técnica encarregou-se
de tornar qualquer destas ideias aparentemente credível sem
a mediação heróica do artista (consagrado)
que ambos (Warhol e Beuys) foram. A dispersão da aura, como
suspeitara há muito Benjamin, acompanha a implementação
dos dispositivos tecnológicos da imagem. Se é difícil
sustentar que cada um destes súbitos autores seja realmente
um artista, mesmo que por apenas 15 minutos, é também
cada vez mais difícil fundar a ideia de que alguns outros
sejam mais artistas do que eles.
Indiferente a estas especulações
(possíveis), a sociedade americana e muitas das suas instituições
culturais encorajaram a arte e o artista em cada um a participar
na tarefa comum de (re)animação cultural e simbólica.
Reagir à crise instalada e sarar as suas feridas seria ssim
a tarefa cultural e artísitica prioritária de todos
e de cada um. Em Lisboa, um único caso apela, com a mesma
intensidade, a uma reacção pela arte (ao 11 de Setembro),
chamando antes de mais à responsabilidade (e a uma responsabilidade
quase socio-profissional) intelectuais e artistas. O caso da galeria
Quadrum, que decidiu interromper o curso da sua programação,
a partir do dia 10 de Novembro, e inaugurar um ciclo denominado
«Manhattan Arte contra o Terrorismo», o qual durará
até ao fim de Julho de 2002. Este projecto é anunciado
pelo seu organizador (António Cerveira Pinto) como «um projecto
de arte e solidariedade com Nova Iorque» e a instauração
de uma espécie de «"centro de crise" vocacionado para a reflexão,
a produção e a exibição de obras de
arte relacionadas com o ataque terrorista que destruiu o World Trade
Center». Aponta-se a necessidade de uma «solidariedade activa
com as vanguardas artísticas norte-americanas» e lembra-se
«o que a arte norte-americana representou e representa para a Europa
desde meados da década de 50, o acolhimento que Nova Iorque
sempre soube oferecer aos artistas de todo o mundo, que por um motivo
ou outro tiveram que escapar a guerras, ditaduras e revoluções»
e, nessa medida, «a dívida intelectual e humana» que os artistas
europeus teriam neste momento para com os artistas e intelectuais
norte-americanos.
Nos EUA, as propostas individuais
e anónimas que têm adquirido maior notoriedade são
naturalmente aquelas que, apesar da sua exterioridade ao «mundo
da arte», se abrigam na categoria esteticamente aceite de «arte
pública», ou não fossem as feridas e as panaceias
simbólicas desde sempre solidárias de uma arte que
reclama para si, monumentalmente ou minimalmente, ornamentalmente
ou interventivamente e, até, irreverentemente, o privilégio
(sempre espectacular) de ocupar o espaço público.
Dois exemplos, entre os muitos que foram alimentando o surto de
criatividade da crise, são: as «Towers
of Remembrance», uma iniciativa lançada pelo Maine
College of Art que se apresenta como uma «open-ended collaborative
artwork» e «Hope»,
obra concebida por um estudante de Belas Artes de Boston (Morgan
Schwartz), um mês após o ataque terrorista, de
onde resultou uma imagem que correu a América. A primeira,
propôs-se projectar, em duas colunas de janelas de um grande
edifício uma colagem de imagens alusivas ao 11 de Setembro,
que iria mudando em função das propostas enviadas
por qualquer cidadão de qualquer ponto do mundo. Estas «torres»
de imagens resgatariam, como símbolo, as torres abatidas,
também elas como símbolos. A segunda, concretizada
por um «skywriter», consistiu na escrita da palavra «Hope» nos ceús
de Boston, numa caligrafia de fumo branco, visível de vários
pontos da região. O carácter público (mais
ou menos inclusivo ou colaborativo) deste tipo de iniciativas acentua
quer a sua natureza simbólica quer o seu fito quase terapêutico.
Muitas delas sublinham a necessidade de «encorajar» uma comunidade
abalada nas sua estrutura social e, sobreutdo, abalada na sua «psyche»:
«The world's psyche has been irrevocably altered», diz Exit Art,
um grupo de discussão artístico que deu início
a um programa a que chamou «Reactions».
De facto, todo o símbolo é,
de algum modo, curativo: vem cersir o que foi rompido, cindido ou
posto em crise, relembrar e rehabilitar a reunião, a completude
e o todo como um possível. Sabemos que a arte tem sido, em
muitos momentos, um dos rostos mais visíveis deste trabalho
do símbolo e da celebração da unicidade, da
reconciliação e da plenitude. Por isso ela se fez
monumento. Mas sabemos também que as aventuras modernas da
arte foram, muito especificamente, as do esgaçamento do símbolo.
Por isso a arte se fez fragmento, apropriação, montagem,
circunstância e acaso, crise do sentido. Aprofundamento das
cisões e das feridas, ela foi a crise e não a cura.
Porta-bandeira da demolição cultural, não guardiã
dos seus monumentos. Negatividade e destruição, não
espírito construtivo de reconciliação 3.
Neste contexto, todo o gesto paleativo e simbólico aparece
como monumental, oficial e celebrativo, por mais anónimo
e individual que seja. Depois dos sonhos arrasadores de uma vanguarda
de inspiração agonística, soa estranha a invocação
de uma arte curativa. De facto, essa vanguarda não manifestou
hesitação ou pudor relativamente às ideias
de destruição e até de violência que
lhe pareceram, em alguns momentos, defender bem valores essenciais,
como o da liberdade, sem o qual a arte, tal como a vida, só
poderia sucumbir.
Uma tal afinidade com a violência
e a destruição, ou mesmo um confesso fascínio
pelo crime e pelo terror, tem as suas raízes, não
apenas nesse agonismo das vanguardas, mas também, como se
sabe, num certo gosto romântico pelo horrível, pelo
excessivo e desmesurado, pelo sublime ou inapresentável.
Quererá isto dizer que, na boa tradição moderna
(nomeadamente aquela que tem rehabilitado a ideia de sublime), a
arte e as instituições culturais não poderiam
neste momento assinalar a tragédia, condenar o acto, chorar
os mortos? De modo algum. Aliás, é notório
o quanto as declarações de Stockhausen, a respeito
das afinidades entre o atentado terrorista às torres e uma
verdadeira obra de arte foram mal recebidoas pelo meio cultural
e artístico, quer nos EUA quer na Europa. Mas não
deixa também de ser curioso que, ao movimento de uma «salvação
pela arte», não se tenha verdadeiramente associado uma parte
significativa das vozes dos artistas e intelectuais, aparentemente
bem mais divididos acerca do sentido desse abalo sofrido pela «psyche
mundial» ou pelo «espírito americano». Numa alusão
às terapias e solidarieddes simbólicas (mediáticas
e culturais) que preenchem o espaço público americano,
Susan Sontag,
por exemplo, alerta: «Politics, the politics of a democracy which
entails disagreement, which promotes candor has been replaced by
psychotherapy. Let's by all means grieve together. But let's not
be stupid together». Este alerta implica certamente uma leitura
própria do 11 de Setembro e um conjunto de convicções
políticas e ideológicos mais amplas, que não
estão aqui em causa, mas ele permite também questionar
as missões de unificação e salvação
simbólica pela cultura e pela arte. Na verdade, elas serão
tão pouco efectivas quanto o foram talvez as revolucionárias
e as agonistas. A arte não mata nem salva, apenas vai engordando
a história da arte e das instituições.
É indiscutível, porém,
que de vida e de morte se tratou nestes acontecimentos de 11 de
Setembro de 2001 e que há portanto que meditar e que agir,
como diante de qualquer manifestação de violência
extrema. E é indiscutível, também, que tais
acontecimentos e tal violência se etretecem intimamente de
imagens e, mais ainda, de uma relação-problema entre
a imagem e a vida. E se a imagem está implicada neste cenário
de violência, então também a cultura o está.
As «Torres de Luz» que agora se erguem na noite de Nova Iorque são,
aliás, mais um episódio numa certa guerra das imagens.
Elas são uma imagem em guerra contra as imagens desse outro
espectáculo o de 11 de Setembro as imagens
dos aviões embatendo contra as torres e as do seu colapso,
horas depois, num certo dia do iníico do século XXI.
Uma tal guerra é mais antiga do que a arte, ou do que a sua
invenção moderna, mas é verdade que a arte
é ela própria um episódio numa guerra (muito
antiga) em torno das imagens. Truncando brutalmente a longuíssima
genealogia dessa guerra recorde-se que, apenas alguns meses meses
antes (em Março de 2001), imagens vindas do longínquo
Afeganistão tinham já feito retornar o debate em torno
da cultura, da arte e das imagens. Esse debate chegava com as imagens
da destruição inflingida pelos Talibãs a antiquissimas
estátuas de budas de cerca de 30 m de altura e mais de
15 séculos de existência, toque majestático
final da destruição já então realizada
de cerca de 80% da estatuária religiosa budista de toda aquela
região, à custa de operações de dinamitação
levadas a cabo por tropas do regime, como uma missão militar
e cultural, ou seja, uma misão da vanguarda intelectual do
regime talibã. Foram muitos, por sua vez, os que fizeram
notar o parentesco entre os acontecimentos de 11 de Setembro de
2001 e as imagens de violênica e destruição
de vários exemplos do cinema americano. A cultura que imaginou
(ou pôs em imagem), muitas vezes, as mas variadas conspirações
contra a sua forma de vida, a sua segurança, os seus monumentos
e até as próprias torres novaiorquinas vê estes
mesmos presságios passarem a actos pela mão daqueles
que, ao contrário, jamais os poriam em imagem, mas que montaram,
com tais factos, um espectáculo avassalador, de visibilidade
mundial, através de imagens massissamente divulgadas. Outros
episódios nesta guerra em que a imagem está indiscutuvelmente
envolvida são: o controlo que as autoridades americanas exerceram
sobre as imagens a divulgar ou não pelos media (sabendo-se
que foi fortemente desencorajada a passagem de imagens dos mortos
de 11 de Setembro e ainda dos ataques de retaliação
ao Afeganistão) e, ainda, os videos de Bin Laden e do regime
talibã, meio escolhido por protagonistas que vêm precisamente
na imagem, em geral, e nos seus dispositivos modernos, em particular,
uma das maiores ameaças aos princípios do islamismo.
As imagens, tal como os aviões, parecem ter sido assim, nestes
acontecimentos, outras tantas armas voltadas contra os seus próprios
promotores.
O regime da imagem e da visibilidade,
por excelência, o do ocidente, introduzido pelo cristianismo
há 2000 anos e reforçado, em todos os momentos, por
uma economia solidária da representação e do
simulacro, vê-se subitamente assombrado pelas imagens da sua
própria destruição, no incessante «videoclip»
do atentado contra o o World Trade Center. É a necessidade
de combater estas imagens que faz a sociedade americana desmultiplicar-se
em simbolismos, esteticismos e expressividade e aplicar-se, ao mesmo
tempo, a dosear algumas outras imagens deste conflito (nomeadamente
as do quase «crístico» Bin Laden ) inflingidas pela outra
parte. Seria difícil reconhecer verdadeiramente nestas estratégias
complexas do uso da imagem (por ambas as partes) uma reedição
dos conflitos entre idolatria e iconoclastia. É um facto
que as motivações religiosas e culturais são
invocadas com fervor por ambos: fala-se em nome de Deus, em nome
do Bem contra o Mal absoluto, em nome de formas de vida ameaçadas,
o que alimentou as leituras do «choque de culturas» ou de uma guerra
civilizacional na qual o ocidente, por inteiro, não poderia
deixar de se empenhar. A questão do terrorismo deslizou muitas
vezes para uma contextualização deste tipo, que não
pode senão conduzir a uma incompreensão e intolerância
culturais realmente perigosas e indesejáveis. Ora, na verdade,
é de um dado estado mundial da economia política que
se trata, de uma dada geopolítica daí resultante e
da legitimidade ou ilegitimidade do uso do terror e da violência.
É pois de política que se trata.
O uso das imagens, de parte a parte,
não faz senão acentuar os abismos culturais, os seus
respectivos simbolismos e as suas bandeiras, mas é quase
uma mesma relação com a imagem que se manifesta, mesmo
se mais crente para uns e mais cínica, talvez, para outros.
Aliás, é num mesmo ecrã (mundial) que tudo
se passa (como aliás tem acontecido com outros momentos de
eclosão do terrorismo). O ódio visual exprime-se também
ele no audiovisual, as imagens da cultura iconoclasta são
difundidas pelas grandes cadeias de televisão e pela internet.
O videoconfronto em curso desmascara assim, de algum modo, um certo
estado mundializado da uma mesma oikonomia.
Isto mesmo se poderia deduzir dos
dois videos instalados em extremos opostos da galeria Quadrum, na
última iniciativa de «Manhattan arte contra o terrorismo»,
com a assinatura colectiva de AK47. Instaurando uma espécie
de videocampo de batalha, cada um desses videos invocava o fundo
religioso de uma guerra bem antiga que a relação com
as imagens fundou e alimentou durante muito tempo. Na linha da frente
de ambos os campos perfilava-se contudo, neste caso, um mesmo dispositivo:
um monitor video, passando um conjunto de imagens em loop.
Num deles, ao som ritmado de um metrónomo, um corpo vestido
com uma batina de padre executa ritualmente o gesto da cruz. No
outro, umas mãos armadas de um chisado recortam a mancha
escrita das páginas de um Corão.
Passado de trás para a frente este último resulta
numa espécie de imagem de suturação, como se
a arma do corte servisse para restabelecer a unidade dessas páginas.
Num sintomático face a face videográfico, esta encenação
sublinha com maior eficácia, talvez, do que muitos discursos
recentes, a necessidade de pensar a relação quase
obrigatória que a experiência mantém hoje com
a imagem e os seus dispositivos modernos, relação
na qual se acolhem tanto as idolatrias como as iconoclastias. Aliás,
tais dispositivos estão mais aptos do que qualquer outra
arma para decompor, desconstruir e dessacralizar o longo arquivo
ocidental das imagens. O ciclo «Manhattan»,
em Lisboa, é certamente uma boa oportunidade para continuarmos
a seguir os episódios de uma certa guerra das imagens.
|