Nomear, seja o que for, não
o anula, mas circunscreve-o. O que seja "terror"
define-se pelo seu efeito. Em si é uma violência,
física, ética, vivida como a mais extrema que
um ser humano - e por homlogia paradoxal, qualquer ser vivo
pode conceber e suportar. O seu carácter de ameaça
ou passagem a acto extremos confina o "terror" como
figura do imagnário. E, mais radicalmente, do sobrenatural.
O terror fabrica pela sua manifestação a primeira
figura do "sobrenatural". Isto é tão
exacto para a sua fabricação hitchcockiana,
como para a mais vulgar de uma série como Poltergeist.
A perfeição do terror pressupõe espera,
ameaça sem contornos ou sua encarnação
ab-humana ou infra-humana como nos Pássaros
de Hitchcock. Mas um suspense meramente imaginário
como o da Madalena de Frei Luís de Sousa é
também da ordem do "terror". Que é
da invasão da ordem humana ou como tal vivida por uma
ameaça e efeitos que não só a põem
em causa como a destroem. Destruindo o homem, seu único
suporte.
No mundo antigo – que é
o imemorial e o sempre presente – o terror é um atributo
dos deuses. E a representação da sua ordem -
a que nós vivemos como fatal ou inexorável –
é a tragédia, ritual destinado precisamente
a exorcizar o "terror" que um destino nas mãos
dos deuses significa. É menos a libertação
da fatalidade que a compreensão dela como essência
da vida. Na verdade os deuses não são os sujeitos
do Terror, nem entre si nem na sua relação com
os homens. O que os distingue dos humanos é só
o saber mais do que eles que não são livres.
O que é para nós "terror" não
os terroriza a eles. Não estão aquém
do terror, estão além. Mas a sua divindade é
uma fraqueza. Em sentido próprio não podem sofrer,
como não podem morrer. Só conhecem a metamorfose,
a diversidade do mesmo, não a fragilidade do único.
"Um deus que morre"
é uma ideia destinada a modificar a nossa relação
com o terror. Ou antes, a dar-lhe um sujeito, um responsável.
O terror antigo, a atrocidade antiga, a de Sargão,
de Assurbanipal, a mais humana e próxima de Nero e
de Calígula, se foram tão extremos como se diz,
é um "terror" de ninguém. Quem aterroriza
aí é o sistema, a Lei, seria anacrónico
pensar que já é o "terror de .Estado",
fórmula moderna e mesmo modernista como poucas. Esse
terror, embora "histórico" não tem
uma essência diversa da que atribuimos aos terrores
naturais, terramotos, cheias, incêndios, pestes. Que
só se "humanizam" supondo-os sinais de Deus,
pragas como as do Egipto, descritas ou já escritas
em nome de um "Deus que ia morrer" para que dele
nascesse um homem para quem o terror fosse não uma
violência anónima, indiscriminada, não
uma peripécia do nosso próprio destino e pudesse
ser apreendido ou lido como indissociável da aventura
humana como liberdade. Para que, de algum modo, nós
nos apercebessemos que, sob múltiplas figuras, o Terror
não é a excepção mas a regra.
Chamou-se – chama-se Terror
– à peripécia mais tremenda do não menos
tremendo acontecimento da História Humana (acontecimento
fundador dela por excelência ....) conhecido como "Revolução
Francesa". Esse episódio merece a aura sinistra
que o rodeia, mas melhor seria pensá-lo como sendo
da ordem metafísica, pois trans-histórica.
Em si, a violência exercida pela Convenção,
apoiada pelo club dos Jacobinos, não é
o episódio mais sangrento da Revolução.
Os massacres de Setembro inspirados por Marat não o
foram menos. Mas a diferença é abismal entre
ambos. O Terror revolucionário é legal - para
não dizer sacral, que também o é – é
o exercício do Poder tradicional de vida e de morte
do Monarca, assumido pelo povo, despido de toda a "transcendência"
no sentido novo e assumindo uma outra, mais legítima
por ser, como se exerce, em nome da vontade popular. O Terror
foi um episódio relativamente breve, mas o seu traço
nunca mais desapareceu do horizonte político do Ocidente.
É a sua forma que interessa, não o seu conteúdo.
A primeira figura moderna da violência unicamente humana,
foi a do Terror. Claro que Saint-Just e Robespierre e, na
sua sequência, outros adeptos do "Terror"
como arma revoluconária, dirão que essa "perversão"
é uma "restauração": a violência
assumida contra a violência original, a de um homem
que se intitulou rei e reduziu os outros à condição
(em termos de Poder) de indigentes. Seria essa indigência
ontológica que o Terror rasuraria e de uma vez para
sempre. Esse terror redentor economizaria à humanidade
uma cultura do terrorismo, da restauração
cada vez mais radical de gestos, como o gesto terrorífico
do Estado Moderno exercido em nome dos direitos do homem.
"Ninguém reina impunemente", escreveu Saint-Just
Não deixa de ser
insólito que a luta universal contra o chamado terrorismo,
como se tivera nascido agora, inaugurado após o 11
de Setembro, se leve a cabo em nome dos "direitos do
homem". Dos Estados Unidos como César ou Deus
sobre a Terra. Os Estados Unidos podem ser tudo, salvo o exemplo
do Estado fundado sobre e em aplicação da célebre
declaração universal dos direitos humanos
tal como a Revolução Francesa a redigiu e concebeu.
Os insurgentes americanos sacudiram o jugo político
dos ingleses em nome de princípios políticos
que não incluíam, nem podiam incluir, a generalidade
do género humano, pois a sua realidade social e humana
era a de senhores de escravos, antes de se tornarem, já
entidade política adulta, em erradicadores no seu
próprio solo dos índios que aí viviam
há milhões de anos. Esse é o pecado "não
original" mas voluntário da grande nação
americana, que não está sozinha no mundo, mas
que era bom que se lembrasse dele para conduzir na legalidade
e na justiça um combate declarado universal
contra um terrorismo bem real, mas não naqueles termos.
Os Estados Unidos, chegados
em meio século - e não sem méritos -
ao estatuto de primeira potência mundial na ordem económica,
financeira, industrial, tcecnlógica e sobretudo mediática
conhecem neste momento a suprema tentação de
todas as tiranias e imperialismos, embora os Estados Unidos
não sejam (ainda ?) nem um império nem uma tirania.
O monstruoso ataque do 11 de Setembro – em si um acontecimento
político - policial de estrita ordem privada
- foi sem detenção transposto para o mais alto
nível simbólico de ataque (terrorista) do
Mal contra o Bem. E o mundo, naturalmente chocado e solidário
(nesse capítulo) com os interesses históricos
dos Estados Unidos, convidado a cruzar-se contra o
fantasma de todos os fantasmas, o de um Terror arquétipo
que desde a noite dos tempos, escondido nas dobras dos nossos
próprios actos, quer a derrota da Humanidade. Que neste
momento é "cultural" e "epicamente"
americana. É o cenário que Hollywood cultiva
noite e dia desde a queda do Muro de Berlim, substituindo
os russos por extra-tererestres e convertendo Bin Laden num
extra-terrestre de nova espécioe, entre Fantomas e
Dr. Mabuse.
Escreveu-se e continua
a escrever-se que o 11 de Setembro mudou o mundo. O futuro
o dirá. O que é certo é que mudou os
Estados Unidos e num sentido mais do que inquietante. Uma
nação com problemas de identidade como nenhuma
outra (ela é todo o mundo e ninguém)
tem-nos resolvido fugindo para a frente. Epicamente. A Lua
é só o bus-stop mais próximo.
A Terra é pequena para o homem como americano. Quer
dizer, para nós todos. Mas essa fuga de novo Ulisses
é para o homem americano também o ponto do seu
impasse acerca da Terra, da humanidade a quem julga capaz
de salvar e ditar o bom caminho. Há razões para
crer que a interpelação posta pelo Terrorismo
– pelo real tanto como pelo fantasmático - é
bem menos importante para o destino da Humanidade que a interpelação
dos Estados Unidos por si mesmos. E que esta grande nação
– com todos nós envolvidos - esteja à beira
de enlouquecer , tão cheia de Deus se sonha
e se concebe.
Podia parecer que o imenso
– e doloroso – traumatismo de 11 de Setembro conduziria os
Estados Unidos a um exame de consciência profundo de
si mesmos. Com raras excepções, Chomsky, Gore
Vidal, Paul Roth) as reacções de uma parte da
intelligentsia americana deixam a desejar. A ideia
de que enquanto americanos não sejam não apenas
os melhores mas os mais justos e bem intencionados é-lhes
uma segunda natureza. A América não é
o único continente, nem a única cultura autista.
Todos e todas o são. Mas só ele e ela são
ricos e vitoriosos. O que Deus abençoa, como pode ser
questionado? Tudo seria talvez diferente se a intelligentsia
americana – ou ao menos uma parte dela entre a mais brilhante,
inventiva, idealista no melhor sentido do termo – não
sentisse o destino americano como que afectiva e idelogicamente
solidário com o destino histórico de Israel.
De um Israel realmente ameaçado na sua existência
de nova nação cercada pela nebulosa islâmica,
mas longe de fazer o que está ao seu alcance para economizar
uma luta ao mesmo tempo absurda e sem outro fim que o de uma
paz assegurada pelo conjunto do Ocidente (pelo menos) e não
apenas pelo apoio incondicional dos Estados Unidos. Com habilidade
(e finura) Ariel Sharon assimilou Arafat a um outro Bin Laden.
Com a aprovação da administração
Bush que sabe pertinentemente que a assimilação
é falsa historicamente e mortífera (para Israel)
politicamente. Da colusão entre os Estados Unidos e
Israel, o terrorismo, fenómeno delimitado e
preciso na ordem do tempo e da geografia, transformou-se num
monstro, em todos os sentidos do termo. Alibi para
uns, exorcismo inesperado para ourtros, o terrorismo
convertido em mito tem pouco que ver com o que foi o "terror"
bárbaro dos Átilas, o terror político
da Revolução, o terror niilista da época
czarista, o terrror anarquista de Vaillant e Buica, o terror
neo-ideológico mas já de massa do estalinismo
ou o terror programado e selectivo do nazismo, ou de Pol Pot,
de matriz não-ocidental, como no seu género
o foi o de Tutsis e Hutus. Seria já uma consolação
que o novo terrorismo pudesse ser racionalizado em
termos conhecidos como os religiosos ou assim chamados,
mas não seria exacto. O novo terrorismo deve
ser posto em relação com a caoticidade intrínseca
da nova economia-mundo – por outro lado ultra-complexa e controlada
– de que é a excrecência anómala ou ainda
não normalizada. Por isso o novo terrorismo está
em toda a parte e em lado nenhum. Pelo simples facto de que
não vem, senão na aparência, de fora do
Sistema mas do seu interior. O que se caça através
de Bin Laden é a própria imagem no espelho.
Como se estivessemos num filme policial de Clint Eastwood
à escala planetária. A luta universal contra
o Terrorismo, decretada por um homem de cultura maniqueísta,
está mimetizada pelo inimigo que combate e vem armado
das suas próprias mãos. Teremos de conviver
com esse Terrorismo sabendo que é, em todos os sentidos,
também o nosso.
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