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  Do Terrorismo

  [ Eduardo Lourenço ]

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Nomear, seja o que for, não o anula, mas circunscreve-o. O que seja "terror" define-se pelo seu efeito. Em si é uma violência, física, ética, vivida como a mais extrema que um ser humano - e por homlogia paradoxal, qualquer ser vivo pode conceber e suportar. O seu carácter de ameaça ou passagem a acto extremos confina o "terror" como figura do imagnário. E, mais radicalmente, do sobrenatural. O terror fabrica pela sua manifestação a primeira figura do "sobrenatural". Isto é tão exacto para a sua fabricação hitchcockiana, como para a mais vulgar de uma série como Poltergeist. A perfeição do terror pressupõe espera, ameaça sem contornos ou sua encarnação ab-humana ou infra-humana como nos Pássaros de Hitchcock. Mas um suspense meramente imaginário como o da Madalena de Frei Luís de Sousa é também da ordem do "terror". Que é da invasão da ordem humana ou como tal vivida por uma ameaça e efeitos que não só a põem em causa como a destroem. Destruindo o homem, seu único suporte.

No mundo antigo – que é o imemorial e o sempre presente – o terror é um atributo dos deuses. E a representação da sua ordem - a que nós vivemos como fatal ou inexorável – é a tragédia, ritual destinado precisamente a exorcizar o "terror" que um destino nas mãos dos deuses significa. É menos a libertação da fatalidade que a compreensão dela como essência da vida. Na verdade os deuses não são os sujeitos do Terror, nem entre si nem na sua relação com os homens. O que os distingue dos humanos é só o saber mais do que eles que não são livres. O que é para nós "terror" não os terroriza a eles. Não estão aquém do terror, estão além. Mas a sua divindade é uma fraqueza. Em sentido próprio não podem sofrer, como não podem morrer. Só conhecem a metamorfose, a diversidade do mesmo, não a fragilidade do único.

"Um deus que morre" é uma ideia destinada a modificar a nossa relação com o terror. Ou antes, a dar-lhe um sujeito, um responsável. O terror antigo, a atrocidade antiga, a de Sargão, de Assurbanipal, a mais humana e próxima de Nero e de Calígula, se foram tão extremos como se diz, é um "terror" de ninguém. Quem aterroriza aí é o sistema, a Lei, seria anacrónico pensar que já é o "terror de .Estado", fórmula moderna e mesmo modernista como poucas. Esse terror, embora "histórico" não tem uma essência diversa da que atribuimos aos terrores naturais, terramotos, cheias, incêndios, pestes. Que só se "humanizam" supondo-os sinais de Deus, pragas como as do Egipto, descritas ou já escritas em nome de um "Deus que ia morrer" para que dele nascesse um homem para quem o terror fosse não uma violência anónima, indiscriminada, não uma peripécia do nosso próprio destino e pudesse ser apreendido ou lido como indissociável da aventura humana como liberdade. Para que, de algum modo, nós nos apercebessemos que, sob múltiplas figuras, o Terror não é a excepção mas a regra.

Chamou-se – chama-se Terror – à peripécia mais tremenda do não menos tremendo acontecimento da História Humana (acontecimento fundador dela por excelência ....) conhecido como "Revolução Francesa". Esse episódio merece a aura sinistra que o rodeia, mas melhor seria pensá-lo como sendo da ordem metafísica, pois trans-histórica. Em si, a violência exercida pela Convenção, apoiada pelo club dos Jacobinos, não é o episódio mais sangrento da Revolução. Os massacres de Setembro inspirados por Marat não o foram menos. Mas a diferença é abismal entre ambos. O Terror revolucionário é legal - para não dizer sacral, que também o é – é o exercício do Poder tradicional de vida e de morte do Monarca, assumido pelo povo, despido de toda a "transcendência" no sentido novo e assumindo uma outra, mais legítima por ser, como se exerce, em nome da vontade popular. O Terror foi um episódio relativamente breve, mas o seu traço nunca mais desapareceu do horizonte político do Ocidente. É a sua forma que interessa, não o seu conteúdo. A primeira figura moderna da violência unicamente humana, foi a do Terror. Claro que Saint-Just e Robespierre e, na sua sequência, outros adeptos do "Terror" como arma revoluconária, dirão que essa "perversão" é uma "restauração": a violência assumida contra a violência original, a de um homem que se intitulou rei e reduziu os outros à condição (em termos de Poder) de indigentes. Seria essa indigência ontológica que o Terror rasuraria e de uma vez para sempre. Esse terror redentor economizaria à humanidade uma cultura do terrorismo, da restauração cada vez mais radical de gestos, como o gesto terrorífico do Estado Moderno exercido em nome dos direitos do homem. "Ninguém reina impunemente", escreveu Saint-Just

Não deixa de ser insólito que a luta universal contra o chamado terrorismo, como se tivera nascido agora, inaugurado após o 11 de Setembro, se leve a cabo em nome dos "direitos do homem". Dos Estados Unidos como César ou Deus sobre a Terra. Os Estados Unidos podem ser tudo, salvo o exemplo do Estado fundado sobre e em aplicação da célebre declaração universal dos direitos humanos tal como a Revolução Francesa a redigiu e concebeu. Os insurgentes americanos sacudiram o jugo político dos ingleses em nome de princípios políticos que não incluíam, nem podiam incluir, a generalidade do género humano, pois a sua realidade social e humana era a de senhores de escravos, antes de se tornarem, já entidade política adulta, em erradicadores no seu próprio solo dos índios que aí viviam há milhões de anos. Esse é o pecado "não original" mas voluntário da grande nação americana, que não está sozinha no mundo, mas que era bom que se lembrasse dele para conduzir na legalidade e na justiça um combate declarado universal contra um terrorismo bem real, mas não naqueles termos.

Os Estados Unidos, chegados em meio século - e não sem méritos - ao estatuto de primeira potência mundial na ordem económica, financeira, industrial, tcecnlógica e sobretudo mediática conhecem neste momento a suprema tentação de todas as tiranias e imperialismos, embora os Estados Unidos não sejam (ainda ?) nem um império nem uma tirania. O monstruoso ataque do 11 de Setembro – em si um acontecimento político - policial de estrita ordem privada - foi sem detenção transposto para o mais alto nível simbólico de ataque (terrorista) do Mal contra o Bem. E o mundo, naturalmente chocado e solidário (nesse capítulo) com os interesses históricos dos Estados Unidos, convidado a cruzar-se contra o fantasma de todos os fantasmas, o de um Terror arquétipo que desde a noite dos tempos, escondido nas dobras dos nossos próprios actos, quer a derrota da Humanidade. Que neste momento é "cultural" e "epicamente" americana. É o cenário que Hollywood cultiva noite e dia desde a queda do Muro de Berlim, substituindo os russos por extra-tererestres e convertendo Bin Laden num extra-terrestre de nova espécioe, entre Fantomas e Dr. Mabuse.

Escreveu-se e continua a escrever-se que o 11 de Setembro mudou o mundo. O futuro o dirá. O que é certo é que mudou os Estados Unidos e num sentido mais do que inquietante. Uma nação com problemas de identidade como nenhuma outra (ela é todo o mundo e ninguém) tem-nos resolvido fugindo para a frente. Epicamente. A Lua é só o bus-stop mais próximo. A Terra é pequena para o homem como americano. Quer dizer, para nós todos. Mas essa fuga de novo Ulisses é para o homem americano também o ponto do seu impasse acerca da Terra, da humanidade a quem julga capaz de salvar e ditar o bom caminho. Há razões para crer que a interpelação posta pelo Terrorismo – pelo real tanto como pelo fantasmático - é bem menos importante para o destino da Humanidade que a interpelação dos Estados Unidos por si mesmos. E que esta grande nação – com todos nós envolvidos - esteja à beira de enlouquecer , tão cheia de Deus se sonha e se concebe.

Podia parecer que o imenso – e doloroso – traumatismo de 11 de Setembro conduziria os Estados Unidos a um exame de consciência profundo de si mesmos. Com raras excepções, Chomsky, Gore Vidal, Paul Roth) as reacções de uma parte da intelligentsia americana deixam a desejar. A ideia de que enquanto americanos não sejam não apenas os melhores mas os mais justos e bem intencionados é-lhes uma segunda natureza. A América não é o único continente, nem a única cultura autista. Todos e todas o são. Mas só ele e ela são ricos e vitoriosos. O que Deus abençoa, como pode ser questionado? Tudo seria talvez diferente se a intelligentsia americana – ou ao menos uma parte dela entre a mais brilhante, inventiva, idealista no melhor sentido do termo – não sentisse o destino americano como que afectiva e idelogicamente solidário com o destino histórico de Israel. De um Israel realmente ameaçado na sua existência de nova nação cercada pela nebulosa islâmica, mas longe de fazer o que está ao seu alcance para economizar uma luta ao mesmo tempo absurda e sem outro fim que o de uma paz assegurada pelo conjunto do Ocidente (pelo menos) e não apenas pelo apoio incondicional dos Estados Unidos. Com habilidade (e finura) Ariel Sharon assimilou Arafat a um outro Bin Laden. Com a aprovação da administração Bush que sabe pertinentemente que a assimilação é falsa historicamente e mortífera (para Israel) politicamente. Da colusão entre os Estados Unidos e Israel, o terrorismo, fenómeno delimitado e preciso na ordem do tempo e da geografia, transformou-se num monstro, em todos os sentidos do termo. Alibi para uns, exorcismo inesperado para ourtros, o terrorismo convertido em mito tem pouco que ver com o que foi o "terror" bárbaro dos Átilas, o terror político da Revolução, o terror niilista da época czarista, o terrror anarquista de Vaillant e Buica, o terror neo-ideológico mas já de massa do estalinismo ou o terror programado e selectivo do nazismo, ou de Pol Pot, de matriz não-ocidental, como no seu género o foi o de Tutsis e Hutus. Seria já uma consolação que o novo terrorismo pudesse ser racionalizado em termos conhecidos como os religiosos ou assim chamados, mas não seria exacto. O novo terrorismo deve ser posto em relação com a caoticidade intrínseca da nova economia-mundo – por outro lado ultra-complexa e controlada – de que é a excrecência anómala ou ainda não normalizada. Por isso o novo terrorismo está em toda a parte e em lado nenhum. Pelo simples facto de que não vem, senão na aparência, de fora do Sistema mas do seu interior. O que se caça através de Bin Laden é a própria imagem no espelho. Como se estivessemos num filme policial de Clint Eastwood à escala planetária. A luta universal contra o Terrorismo, decretada por um homem de cultura maniqueísta, está mimetizada pelo inimigo que combate e vem armado das suas próprias mãos. Teremos de conviver com esse Terrorismo sabendo que é, em todos os sentidos, também o nosso.