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  Jorge Molder ou A Rainha está de volta

  [ José Bragança de Miranda ]

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Para a Teresa, pois aqui fala-se de Rainhas. 1

Erst in dem Doppelbereich
werden die Stimmen
Ewig und Mild.
Rilke

 

 

 

Desde há muito que as imagens de Jorge Molder me fascinam, e me deixam de fora delas, incapaz de as interrogar mais. Bastou-me sempre olhá-las demoradamente, defender-me assim do sortilégio que lançavam. Ultimamente ao ver as fotografias que constituem a série La Reine Vous Salue... pressenti uma afinidade que me deu vontade de escrever sobre elas. Claro que a escrita é sempre uma barreira que distancia, e acima de tudo, que modera as forças e intensidades que estão na sua origem. Simples ilusão, pois que por trás as forças rumorejam, empurram a barreira que, finalmente, um dia acabarão por derrubar.

Algo rumoreja do lado de lá, que mal podemos reconhecer. Não necessariamente fonte de «terror», mas este está presente.

Esta sensação que as imagens de Molder sempre me despertaram intensificou-se diante das 16 fotografias de La reine Vous Salue... Do lado de cá, onde estamos todos, a beleza pura desses objectos que têm por nome «fotografias». Mas não dizia Rilke que «o Belo não é senão o começo do terror»? Beleza e Terror e, entre ambos, as imagens barrando o contacto directo dos dois. Um terror, portanto, que está paredes meias com a beleza. O que está por detrás dessa «parede» é descrito, por Molder 2, como uma «respiração», ao mesmo tempo leve e entrecortada. Também ela dividida. Se pertence àquele que respira é por um respirar estranho: «Não sou eu quem respiro esta respiração», diz Molder. Só existe terror fora da imagem, e as imagens suspendem indefinidamente o terror. Por trás delas, uma respiração. Poderia ser de um tigre pronto a saltar. Tiger, Tiger, Tiger.. sempre enleado na sua «fearfull simmetry» que imobiliza o seu salto, deixando-o do lado de lá, mas sempre em estado de chegar. Mas também pode ser algo monstruoso, um outro ser, um «vampiro», por exemplo, que aguarda no escuro. Mas se soubéssemos que era um «tigre» ou um «vampiro», as coisas seriam simples...

Eis a gravidade de algumas imagens que estão em luta contra o seu decaimento em meras «imagens», infinitamente recicláveis e apropriáveis, que perderam o charme. É isso que caracteriza a abstracção molderiana, que elimina, reduz e minimiza sem hesitação. Necessidade reconhecida por Francis Ponge, «n’intervenant, dirai-t-on, qu’à peine, pour supprimer seulement ce que les photographies , par exemple, ou les "peintures idiotes", gardent fastidieusement de trop» 3. A fotografia, enquanto impressão originária de uma imagem essencial, implica uma Lichtung, um aligeiramento e desbastamento, que liberta o espaço primordial onde os humanos habitam. É através delas, ou de algo como elas, que se entra e sai, é dele que elas entram e saem, um pouco misteriosamente? Mas a quem interessa o «mistério»? Molder diz-nos que estão em movimento, talvez seja por elas que existe movimento, sendo disso um traço «indelével». Neste aspecto, enquanto objecto do mundo, toda a fotografia é um traço mnemotécnico, sempre além da memória individual, que nestes assuntos pesa pouco. Trata-se de uma «memória» em todo o seu tamanho, que não cabe no «espaço interior», portanto. É um espaço ainda por medir, que contém o que está aqui - as imagens e o mundo delas -, mas também aquilo que nunca aconteceu, que aconteceu por não ter acontecido, ou que tendo acontecido se perdeu nos escaninhos do mundo, de tal modo esquecido que mal nos lembramos de procurar. Ou então que se retirou, deixando-nos à espera. Mas não se trata de uma «pura» espera, pois na desmesura do tamanho desse espaço já está tudo, não sendo necessários os «criadores». Molder está longe dessa nostalgia do futuro de que todos estamos um pouco doentes, fascinados por outras «possibilidades», que são sempre variações daquilo que já possuímos. Molder fala de uma «gélida nostalgia», cujo reverso só poderá ser o júbilo, a alegria.

Por trás das imagens respira algo que está em movimento. É esse movimento que une Terror e Beleza. A preocupação de Molder pelo movimento é evidente, não se limitando ao vídeo intitulado A Linha do Tempo ou ao trabalho que fez para a INTERACT. Está em causa uma dupla aproximação: por um lado, uma reafectação do «cinemático» e à maneira como este oculta as junturas e articulações da «vida», a falsa animação da «vida»; por outro, um movimento feito de mecânicas desencontradas e impossíveis, em cuja apresentação se reconhece a verdadeira arte. Trata-se de movimentos em repetição, de movimentos erráticos e quase brownianos, de movimentos de oscilação ou pendulares, que nas imagens os seus pontos de apoio, os seus «eixos». Esse movimento estranho de Molder dá-nos a ver a articulação do espaço de lá, o outro espaço, como aquele em que nos encontramos e em que as suas fotografias se encontram, e tudo o mais. Através desse movimento intervém-se tão próximo quanto possível de Phanés, esse deus originário dos órficos, imagem que dá conta do movimento de aparecer e desaparecer. Trata-se, assim, de abalar todos os enquadramentos e cristalizações das «imagens», impedindo que se tornem em simples «cópias» ou em «objectos» transaccionáveis ou mobilizáveis. Mas não para lhes opor outras imagens, melhores, ou mais belas, mas porque por elas entra e sai algo de essencial.

As 16 fotografias de La Reine Vous Salue... têm o formato de um quadrado, com as dimensões 120cm x 120cm, como se fossem as faces de um dado gigantesco. O interesse de Molder pela metafísica de Mallarmé é bem conhecido. Dado desmesurado, aparentemente, mas cuja dimensão nada é comparada com o «jogo» que está em causa, um jogo metafísico onde é a forma do mundo que está em causa. É esta que exige que todos os lances sejam determinados por um único lance, o único por que vale a pena jogar, que leve à vitória sobre o terror e ponha fim às misérias da contingência. Que acabe com «a confusão natural do corpo, dos seus fluidos e das suas expressões», diz Molder. Um olhar mais atento dá-se conta de que Molder radicaliza a busca de Mallarmé. As 16 fotografias de La Reine Vous Salue... não são as faces do lance que em cada momento vence, e oculta outras possibilidades. Nem são o mostrar dos vários lances que venceram, pois a inanidade de um seria a inanidade de todos eles. Do ponto de vista mallermeano, se um lance de dados não pode abolir o acaso, se cada figura em que o dado-mundo cai é uma figura entre outras - tudo dependendo das figuras fortes, como a do «livro» -, é porque o nihilismo não permite parar em nenhuma face do mundo, a todas anulando. Se o dado fosse «transparente» todas seriam visíveis, e a face que ganha, vista de cima, deixaria ver através do dado toda a experiência à qual se sobreporia o «simulacro» da figura ganhadora. Algo desta estratégia está presente em Molder, mas as coisas parecem ser bem mais radicais. Nem anulação permanente do resultado – algures ele afirma que «nada se pode abolir» e não apenas o acaso 4-, nem a liberdade de poder continuar a lançar, por importantes que seja. O que determina tudo é a hesitação do movimento, é o movimento estranho do dado quando este salta sobre as suas arestas e vértices, antes de cair sobre uma face, a que se vira para nós, na qual que já não vemos senão uma «mera» imagem ou um «aprisionamento» do real.

O salto e ressalto do «dado» - estamos a falar do «dado-mundo» -, esse cristal de matemática que serve de simulacro à arte de Molder, mantém-se longe de qualquer hierofania, seja ela a do Livro, está tão próximo quanto possível do movimento «fânico», do aparecer e desaparecer, e acima de tudo, movimento de entrar e de sair. Nalguns dos seus saltos entrevê-se, repentinamente, como num sonho, o espaço onde está a Rainha. Tudo passa pelo movimento. Não já o cinemático que tudo alisa - que quanto muito se pode também entrecortar como se fosse um «respirar», e que está tão claramente presente em A Linha do Tempo - que deixa traços «indeléveis» que desconjuntam as fotografias, nos interstícios das quais pode emergir, finalmente, aquilo por que sempre se esperou. E que estava-aí. A luta contra as imagens, o boxing de Molder, é uma luta contra os «tipos», o império tipológico das imagens desencantadas. Ele está atento a outro tipo de «impressões», que de facto é sempre a mesma: a pressão do Phanés quando ainda salta e ressalta, e que, com Molder, poderíamos definir como uma «impressão confusa mas rejubilante». Mas a face em que o dado cai é sempre conhecida, demasiado conhecida, fatal por isso mesmo, e inabolível, portanto.

Molder afecta o movimento cinemático pelo ressaltar do «dado», e este por um movimento de oscilação que corresponde a um movimento estranho e também ele entrecortado, e leve. Noutras ocasiões Molder fala de «breve». Trata-se de um «movimento que incita, ao mesmo tempo, à aproximação e ao afastamento», diz ainda. Oscila-se em torno de cada imagem, de cada série, porque estes são os «eixos» em que o nosso mundo oscila e balança; estamos perante a entrada e a saída de um espaço para outro espaço, sendo os dois o que constitui «tamanho» desmesurado da memória. Absorvendo tudo no seu interior, o que se passou, o que está em curso, e o que virá, o primeiro desbaste do nosso mundo é o descontrolar-lhe o tempo, o do relógio, o das exposições ou o da cronografia. É por isso que o tempo dessa oscilação fundamental é aquele que «é sempre agora», um «tempo presente», o fim do tempo da miséria, e o começo de um outro tempo, bem mais enigmático.

Eis que emerge o «terror». Perda de si, fim da propriedade, incerteza do resultado. De certo modo tudo se baralha, a respiração que se ouve não é a de quem respira, os olhos que vêm não são de quem vê. Lição que vem das próprias imagens, uma e outra vez. «Olhar mais uma vez as imagens» que se tornam, assim, em sombras fugidias, olhá-las uma vez e ainda outra, continuar a olhar e de repente tudo muda. Fonte de «surpresa», misto de terror e de alegria, onde tudo se decide. Em última instância não é possível ficar pelos vértices do dado, nem pelas suas arestas – insegurança radical -, como não basta a satisfação de cair numa das faces, que mudaria à nossa vontade, nas quais ficaríamos em casa. Em cada uma das hipóteses tudo bem dividido - como o amargo-doce de Safo ou o triste-alegre de Giordano Bruno -, tudo tende a deslassar-se. Terror absoluto ou a sua desmultiplicação em medos infinitos e tristes; Beleza absoluta ou a sua desmultiplicação em pequenas fruições. É preciso decidir, e decide-se sempre demasiado cedo. De facto, o movimento errático do dado «dado» é conduzido por um contra-movimento, uma oscilação, que nos leva dentro e fora de um espaço, onde tudo se mantém, na sua divisão essencial. Terror-Beleza. Esse é o espaço do comum. Subitamente emerge «uma espécie de propriedade comum», que nos dá o segredo daquilo que buscamos. Oscila-se entre o terror e a beleza, mas o «pêndulo» que oscila transporta de um lado para o outro, em quantidades mínimas, mas necessárias, como se trouxesse atrás de si um pouco do que acabou de visitar. Terror na beleza, beleza no terror, comunicando no espaço do «comum».

Deste ponto de vista, nenhum artista parece mais afastado de Molder do que Christian Boltanski, onde a anonimidade daqueles que sofrem uma «equalização no esquecimento» é a melhor imagem do «comum» 5, [boltanzki] que a arte deveria salvar. Das imagens de Boltanski, por exemplo em Mesnchlich apresentado em Aix-la-Chapelle em 1994, e que reunia 1500 retratos heteroclitamente juntos, «a única coisa que se pode dizer é que foram humanos, isto é, diferentes e únicos». Essa unicidade perde-se no próprio momento em que é apresentada. A imagem é o sinal dessa perda. As imagens de Molder parecem ser a antítese disso, talvez porque nada se possa perder, mas para isso a «arte» não baste. A oscilação referida leva-nos a encontrá-los nesse outro espaço, nem que seja uma vez. E nesse espaço é aquele em que La Reine Vous Salue.... Vemos assim, em acto, uma estranha criptofania, feita de pura oscilação, onde o que oculta e o que revela são transportados no mesmo movimento. É essa oscilação que conduz, invisivelmente, o movimento entrecortado do «dado», ao mesmo tempo que este, no seu impossível equilíbrio como que se «ouriça», cada face devindo aresta ou vértice, como se nunca pudesse poisar sobre terra, continuando a rolar numa ilusão de parar. Mas tem de continuar a rolar, em direcção... à Rainha.

Molder conta que estava «à espera da Rainha, sem saber se ela vinha ou se viria mesmo». Evidentemente, a imagem da Rainha não está em nenhuma das fotografias, mas em todas elas, e em todas aquelas que o continuar da operação possam vir a criar. Mas estamos sempre do lado de cá da operação, seja ela a fotográfica. A inapropriação radical é descrita por Molder como fazendo de cada imagem «sombras imprecisas». mas eis que oferece o seu rosto para deixar vaguear essas sombras, que nele se imprimem, pressionando. Na variação dessas sombras, na cartografia do rosto da imagem, na sua oscilação aparentemente sem sentido, tem de sobreviver uma impressão originária da Rainha, que já nunca está aí.

Se é o terror que ameaça de lá das «imagens» e a Rainha não está aí, é ela uma imagem desse «terror»? Enquanto imagem a Rainha é o fim do terror e o começo da Beleza. O começo apenas, pois no meio estará a alegria. Ao lado da Rainha impera a alegria. Mas será que em tal «imagem» da rainha temos uma «nova» face que se acrescenta ao «dado»? Diria que por uma passagem ao infinito o dado, movendo-se em todas as direcções, no seu salto e ressalto infindável, se transforma numa esfera, a do «mundo», pousado na mão da Rainha 6. Perante essa esfera tudo é fragmentário, simples face, perante o seu movimento perfeito, tudo é lance. Mas a esfera que infinitiza o cubo equivale à presença do que se espera, que o movimento de oscilação visita, para logo abandonar. A arte enquanto exercício de movimentos impossíveis reafecta o «dado» a algo de mais essencial. Desse trabalho encontramos sinais na Melancolia de Dürer, onde as esquinas do dado são «aparadas» ou o «dado» se arruína, ou no estranho Cubo de Giacometti, em que as faces se multiplicam, são 12 ou treze 7, até se tornar num «crânio» ou «esfera» distorcida, que interroga o dado no mundo.

Arrastados pela oscilação que arrasta também a Molder. podemos entrar e sair, esperar e desesperar, mas é porque já está tudo aí, cripticamente embora. Não se veja em Molder vontade de segredo ou de mistério, fosse este o da «arte». Seria demasiado fácil adscrevê-lo a um certo romantismo negro, basicamente gótico. A sua insistência nos detectives, no poder, no crime, poderiam mesmo reforçar esta sensação. Mas La Reine Vous Salue... mostra que não é nada disso que está em causa. É certo que existe um lugar que se mantém «secreto», mas apenas porque fazemos escassas vezes a viagem pendular que nos leva ao lugar da rainha. Sendo certo que, perante esse lugar, todas as imagens devém sombras são imprecisas, não existe em Molder nada da vagueza romântica; pelo contrário, rigor absoluto da operação fotográfica. Se a Rainha só pode ser apresentada «imprecisamente» não é por falta de precisão da operação fotográfica, que é máxima, mas porque faz parte da sua natureza uma certa imprecisão. Ora, é a poesia lhe lança uma imprecisão necessária e, igualmente, a todas as imagens. A «imagem» ganha espessura apenas poeticamente. Só assim deixa de ser «mera» imagem. Mas é no «aqui e agora» que a imagem se densifica poeticamente, criando o espaço que amplifica absolutamente o existente. Tal como é preciso defender a «imagem» contra os seus adoradores, também é preciso defender a «poesia» dos amantes de poesia.

Daí que ela só se possa apresentar numa matéria que lhe está tão próxima quanto possível, ou seja, o vidro. A proximidade de Molder com Duchamp é aqui máxima. Não se trata de «sobreposição» de dois mundos, o do comum, habitado pela Rainha, e o nosso, propriedade de absurdos senhores. Mas de amplificação do nosso. Uma indicação sobre este assunto vêm-nos de La Reine Vous Salue... que é o título de um poema de Maurice Câreme, que se subintitulado «vitres de lune». Tudo se inicia por uma saudação da Rainha, vindo do lado de lá dos seus «vitrais de lua», aos quais está encostada. Essa saudação chega porque os «vitrais» não impedem totalmente a sua chegada, sem por isso a colocarem no espaço onde nos achamos. Uma certa luz, neste caso lunar, dá conta dessa distância ínfima. Temos, antes, uma cristalização sem obstáculo, que faz de cada face do dado um «vidro» que se prolonga com a vitrificação do «real», que se torna translúcido a esse movimento de vaivém. O espaço que se vê, por vezes, bem poucas, através desse vidro, intensamente metafísico, é o nosso espaço na sua forma de espaço do comum.

Pensando sobre a natureza deste espaço, ao mesmo tempo que olho detidamente para as fotografias de Jorge Molder, vem-me irresistivelmente à lembrança o mito do desaparecimento da Rainha. Que primeiramente era uma Deusa, a deusa da justiça e da paz, a que os gregos chamavam Astreia (ou Diké). Na mitologia clássica, em Virgílio, por exemplo, Astreia desceu à Terra na Idade do ouro, tendo fugido das cidades e depois dos campos cansada da iniquidade humana. Nas Metamorfoses de Ovídio a fuga de Astreia está ligada ao declínio da Idade de ouro e ao triunfo de César, da guerra. Conclusão antiga era a de que num mundo abandonado por Astreia a astúcia e o vício campeiam, e com isso a tristeza da injustiça 8. Na imagem da virgem Maria cristã ainda podemos ver um eco de Astreia, que assim se transforma em Rainha. A metamorfose de Astreia em Rainha capaz de trazer justiça e paz universal remonta a Dante, mas é no século XVI que se dissemina por toda a Europa, imperialmente, mas também poeticamente 9. E de certo modo, todas as imagens visam reencontrar Astreia.

Por uma afinidade subterrânea Molder redescobre a oscilação primordial que estava associada a Astreia. De facto, ela é representada como tendo numa mão a espada e na outra a balança. Ao abandonar a terra, o espaço comum dos humanos - que se privatizou e foi apropriado promovendo uma guerra infindável -, deixou atrás a imagem de uma balança que, oscila entre céu e terra, mas que é controlada pelos poderosos. A espada domina a balança, e não o contrário. A oscilação molderiana é ainda uma imagem desta «balança», que oscila em torno de um ponto, um vértice, difícil de descortinar, mas em que todo o mundo está num dos pratos da balança, e no outro o «château de givre» da Rainha. Desconfia-se da balança porque a espada a domina, em vez de estar ao seu serviço, mas o que os modernos descobriram é que a balança não pode abolir a oscilação, que se torna em «inclinação», parcialidade, monstruosidade de toda a medida. Mas a oscilação primordial de Astreia afecta, minimamente embora, todas as inclinações, os declínios, a imensa clínica dos poderosos. A fuga da Rainha deixou atrás a sua imagem que era facilmente apropriável, mas que continua a fazer a sua força, mesmo quando se torna em imagem poética ou fotográfica. Essas inclinações ou «quedas» alimentam a oscilação essencial, que a todas arrasta, e assim é que reencontramos Astreia, que a Rainha nos saúda, nos acena.

O que espera Jorge Molder da vinda da Rainha? Que outra coisa senão o fim do Terror por onde Beleza começa, mas também, diz-nos Heiner Müller, «o Belo significa o fim provável dos Terrores» 10? A Beleza fica-se entre começo e fim do terror, mas a mais não alcança. La Reine Vous Salue... chega-nos através de Molder de um poema de Maurice Câreme 11. O gesto de saudar dirige-se, através dos vidros, àqueles que, precisamente, não a vêm, precisando de uma imagem ou de um verso para ver, e todos precisamos. Nós e vós. É preciso saber ver, porque, de facto, a Rainha está dissimulada na luz, mesmo ténue como a da lua. O luar, tal como o vidro, dá a ver cripticamente. É preciso um trabalho do negro para a dar ver. Molder é um mestre desta criptofania, onde o oculto está aí, perdido na sua excessiva visibilidade, simples imagem dispersa pela inanidade das imagens que circulam desencantadamente. Um pouco como na carta roubada de Poe, tão mais oculto quanto mais visível. A Rainha saúda através das imagens de Molder ou do poema de Câreme e, por esse facto, exige uma resposta. A saudação é sempre um gesto transitivo, que não pode ficar indefinidamente em suspenso sem se abolir. Num outro momento, numa outra hora, subitamente esse gesto terá que ser respondido. A Rainha está a convidar todos a entrar nas suas «d'étranges demeures», mas só os que respondem ao aceno podem entrar nesse espaço para que estão a ser levados «secretamente». Arrastado pela oscilação que tem por eixo algumas imagens raras, entramos e saímos desse espaço onde todos cabem. Diz Câreme que ele é sem portas, paredes ou torreões. Por uma reversão essencial descobre-se, com Molder, que o outro espaço, o espaço do comum, não é uma cripta, algo oculto numa espécie de castelo gótico, mas que é o nosso mundo é críptico, pois feito de paredes, divisões e leis que as sustentam. Não se trata de abrir a cripta, pois ela confunde-se com o mundo, mas de criar uma outra cripta, onde cabe toda a existência, que tem lugar no interior mesmo do «coração» da Rainha. Passagem ao infinito do dado que roda vertiginosamente. Nesse espaço Astreia impera eternamente, e com ela a paz e a justiça. Mas também tudo é vivo, de eterna juventude, onde nada se perdeu: «Et où les jeunes mortes// Viennent parler d'amour». O espaço onde habita a Rainha não é habitável por nós, apenas aí podemos aceder nos instantes em que vemos o aceno da Rainha e lhe respondemos, de longe. Oscilantemente entraremos e sairemos dele, poderemos vê-lo ou não, mas o que conduz esse movimento são as «falas de amor». Eis o que liga. A Beleza como eixo ou vértice ou aresta deste movimento que é maximamente urgente, pois se «La reine vous salue,// Hâtez-vous de la suivre». Os que forem capazes de fazê-lo, de responder a esta urgência, quando a oscilação os deixa do lado de cá reconhecerão, por sinais secretos, que são conspiradores de uma revolução em que urge o fim da violência, a diminuição da tristeza. Dissipação do terror...

A conspiração daqueles que estão ligados pelas «falas de amor», que os arrastam secretamente para o espaço da Rainha, está para além da Beleza. Com o fim do terror irrompe a alegria. Questão de quantidades e de medidas: enquanto a alegria for menor que a tristeza, a Beleza é necessária e o terror tudo sitia. Quem não sentiu essa festa que arrasta toda a existência nas suas ondas de alegria? Uns dias de Abril para uns, 6 de Outubro para mim, eis que a festa que surge à luz do dia fazendo explodir, momentaneamente, a cripta do mundo. Nos negros de Molder não deixo de ver ouvir a voz de Rousseau chamando-nos para uma «festa» iluminada pelo «sol»: «n’adoptons point ces spectacles excluisifs qui renferment tristement un pedtit nombre de gens dans un antre obscur; qui les tient craintifs et immobiles dans le silence et l’inaction; qui n’offrent aux yeux que cloisons, que pointes de fer, que soldats, qu’affligeantes images de la servitude et de l’inégalité». Essas festas à porta fechada, em criptas a dinheiro ou iluminadas pela palidez da TV, só podem ser libertadas por essa conjura que visa a totalidade da existência e que é aberta a todos, pois «l’innocente joie aime à s’évaporer au grand jour; mais le vice est ami des ténèbres, et jamais l’innocence et le mystére n’habitèrent longtemps ensemble» 12.

Rousseau tem razão. Seja como for, ambos comunicam de algum modo por essa oscilação, que afinal é uma aceno que responde a outro aceno, que não tem a regularidade do pêndulo, mas não menos eficaz, e a que as fotografias de Molder me conduziram. O espaço comum vibra de alegria, tudo e todos são convidados por ela. Mesmo aqueles que não conseguem ver a saudação da rainha acabarão contagiados pelo seu aceno e entrarão nos seus «lugares estranhos», que se confundem com a Cidade em festa que, não vendo o aceno da rainha, sente os seus efeitos. Astreia que vai chegando por Molder por Câreme por Rimbaud, por...

Rimbaud fala também ele de uma Rainha num poema intitulado «Royauté».

Numa bela manhã, no meio de um povo bem gentil, um homem e uma mulher esplêndidos deixavam ecoar na praça: «Amigos, quero que ela seja rainha!», «E eu quero ser rainha!». Ela ria e tremia. Aos amigos ele falava em revelação, de uma provação que chegara ao fim. Os dois apertavam-se um contra o outro.

É verdade. Foram reis por toda uma manhã em que as colchas carmesins penderam das casas, e toda a tarde, em que caminharam para os lados dos jardins de palmeiras» 13.

Eis uma festa qualquer de um dia qualquer, com o povo na rua, que na sua generosidade ilusória, quase certo, põe as colchas nas janelas para os senhores do mundo. Mas os que amam, os amantes,  têm a impressão, só na aparência absurda, de essa festa é para eles, que as colchas nas janelas e as músicas se lhes destinam. Por momentos, toda uma manhã e uma tarde, a imagem da Rainha saúda, através deles, para toda a cidade. A tristeza que levou à fuga de Astreia devém fulgurações alegria, nos seus risos e estremecimentos. As palmas imperiais crescem pacificamente em jardins, sem serem cortadas para vitoriarem uma guerra, mas para darem sombra à rainha desconhecida, que faz do amado um Rei, e da cidade um Reino. Como é belo que tudo venha da ilusão do povo, gentil e anónimo, em cujas festas está à espera a verdadeira festa! Aquela que toda a Cidade humana espera. E que começa em cada um que respondeu ao aceno da Rainha. E a Rainha passeia-se então, no meio de nós, na soberania absoluta da alegria.

Uma e outra vez ela retorna nas «sombras imprecisas» com que Jorge Molder identifica as imagens da La Reine Vous Salue..., Mas através destas sombras, fundidas na existência através dessa matéria vítrea que a arte é, e que aproxima e afasta, é possível recuperar, como máxima precisão, a soberania que só cedemos aos senhores do Mundo, a não ser por inadvertência. Sade enlouquecido da soberania que não abandona a nenhum poder, Beuys que via soberanos por todos os lados, Molder que luta contra todas as figuras armadilhando-as no seu corpo, todos eles foram tocados pela Rainha. La reine Vous Salue... sim, a ti leitor