Para
a Teresa, pois aqui fala-se de Rainhas. 1
Erst in dem
Doppelbereich
werden die Stimmen
Ewig und Mild.
Rilke
Desde há muito que
as imagens de Jorge Molder me fascinam, e me deixam de fora delas,
incapaz de as interrogar mais. Bastou-me sempre olhá-las
demoradamente, defender-me assim do sortilégio que lançavam.
Ultimamente ao ver as fotografias que constituem a série
La Reine Vous Salue... pressenti uma afinidade que me deu
vontade de escrever sobre elas. Claro que a escrita é sempre
uma barreira que distancia, e acima de tudo, que modera as forças
e intensidades que estão na sua origem. Simples ilusão,
pois que por trás as forças rumorejam, empurram a
barreira que, finalmente, um dia acabarão por derrubar.
Algo rumoreja do lado de lá,
que mal podemos reconhecer. Não necessariamente fonte de
«terror», mas este está presente.

Esta sensação que as imagens
de Molder sempre me despertaram intensificou-se diante das 16 fotografias
de La reine Vous Salue... Do lado de cá, onde estamos
todos, a beleza pura desses objectos que têm por nome «fotografias».
Mas não dizia Rilke que «o Belo não é senão
o começo do terror»? Beleza e Terror e, entre ambos,
as imagens barrando o contacto directo dos dois. Um terror, portanto,
que está paredes meias com a beleza. O que está por
detrás dessa «parede» é descrito, por Molder 2,
como uma «respiração», ao mesmo tempo leve e entrecortada.
Também ela dividida. Se pertence àquele que respira
é por um respirar estranho: «Não sou eu quem respiro
esta respiração», diz Molder. Só existe
terror fora da imagem, e as imagens suspendem indefinidamente o
terror. Por trás delas, uma respiração. Poderia
ser de um tigre pronto a saltar. Tiger, Tiger, Tiger.. sempre enleado
na sua «fearfull simmetry» que imobiliza o seu salto, deixando-o
do lado de lá, mas sempre em estado de chegar. Mas também
pode ser algo monstruoso, um outro ser, um «vampiro», por exemplo,
que aguarda no escuro. Mas se soubéssemos que era um «tigre»
ou um «vampiro», as coisas seriam simples...
Eis a gravidade de algumas imagens
que estão em luta contra o seu decaimento em meras «imagens»,
infinitamente recicláveis e apropriáveis, que perderam
o charme. É isso que caracteriza a abstracção
molderiana, que elimina, reduz e minimiza sem hesitação.
Necessidade reconhecida por Francis Ponge, «n’intervenant, dirai-t-on,
qu’à peine, pour supprimer seulement ce que les photographies
, par exemple, ou les "peintures idiotes", gardent fastidieusement
de trop» 3.
A fotografia, enquanto impressão originária de uma
imagem essencial, implica uma Lichtung, um aligeiramento
e desbastamento, que liberta o espaço primordial onde os
humanos habitam. É através delas, ou de algo como
elas, que se entra e sai, é dele que elas entram e saem,
um pouco misteriosamente? Mas a quem interessa o «mistério»?
Molder diz-nos que estão em movimento, talvez seja por elas
que existe movimento, sendo disso um traço «indelével».
Neste aspecto, enquanto objecto do mundo, toda a fotografia é
um traço mnemotécnico, sempre além da memória
individual, que nestes assuntos pesa pouco. Trata-se de uma «memória»
em todo o seu tamanho, que não cabe no «espaço interior»,
portanto. É um espaço ainda por medir, que contém
o que está aqui - as imagens e o mundo delas -, mas também
aquilo que nunca aconteceu, que aconteceu por não ter acontecido,
ou que tendo acontecido se perdeu nos escaninhos do mundo, de tal
modo esquecido que mal nos lembramos de procurar. Ou então
que se retirou, deixando-nos à espera. Mas não se
trata de uma «pura» espera, pois na desmesura do tamanho desse espaço
já está tudo, não sendo necessários
os «criadores». Molder está longe dessa nostalgia do futuro
de que todos estamos um pouco doentes, fascinados por outras «possibilidades»,
que são sempre variações daquilo que já
possuímos. Molder fala de uma «gélida nostalgia»,
cujo reverso só poderá ser o júbilo, a alegria.
Por trás das imagens respira
algo que está em movimento. É esse movimento que une
Terror e Beleza. A preocupação de Molder pelo movimento
é evidente, não se limitando ao vídeo intitulado
A Linha do Tempo ou ao trabalho que fez para a INTERACT.
Está em causa uma dupla aproximação: por um
lado, uma reafectação do «cinemático» e à
maneira como este oculta as junturas e articulações
da «vida», a falsa animação da «vida»; por outro,
um movimento feito de mecânicas desencontradas e impossíveis,
em cuja apresentação se reconhece a verdadeira arte.
Trata-se de movimentos em repetição, de movimentos
erráticos e quase brownianos, de movimentos de oscilação
ou pendulares, que nas imagens os seus pontos de apoio, os seus
«eixos». Esse movimento estranho de Molder dá-nos a ver a
articulação do espaço de lá, o outro
espaço, como aquele em que nos encontramos e em que as suas
fotografias se encontram, e tudo o mais. Através desse movimento
intervém-se tão próximo quanto possível
de Phanés, esse deus originário dos órficos,
imagem que dá conta do movimento de aparecer e desaparecer.
Trata-se, assim, de abalar todos os enquadramentos e cristalizações
das «imagens», impedindo que se tornem em simples «cópias»
ou em «objectos» transaccionáveis ou mobilizáveis.
Mas não para lhes opor outras imagens, melhores, ou mais
belas, mas porque por elas entra e sai algo de essencial.
As 16 fotografias de La Reine
Vous Salue... têm o formato de um quadrado, com as dimensões
120cm x 120cm, como se fossem as faces de um dado gigantesco. O
interesse de Molder pela metafísica de Mallarmé é
bem conhecido. Dado desmesurado, aparentemente, mas cuja dimensão
nada é comparada com o «jogo» que está em causa, um
jogo metafísico onde é a forma do mundo que está
em causa. É esta que exige que todos os lances sejam determinados
por um único lance, o único por que vale a pena jogar,
que leve à vitória sobre o terror e ponha fim às
misérias da contingência. Que acabe com «a confusão
natural do corpo, dos seus fluidos e das suas expressões»,
diz Molder. Um olhar mais atento dá-se conta de que Molder
radicaliza a busca de Mallarmé. As 16 fotografias de La
Reine Vous Salue... não são as faces do lance
que em cada momento vence, e oculta outras possibilidades. Nem são
o mostrar dos vários lances que venceram, pois a inanidade
de um seria a inanidade de todos eles. Do ponto de vista mallermeano,
se um lance de dados não pode abolir o acaso, se cada figura
em que o dado-mundo cai é uma figura entre outras - tudo
dependendo das figuras fortes, como a do «livro» -, é porque
o nihilismo não permite parar em nenhuma face do mundo, a
todas anulando. Se o dado fosse «transparente» todas seriam visíveis,
e a face que ganha, vista de cima, deixaria ver através do
dado toda a experiência à qual se sobreporia o «simulacro»
da figura ganhadora. Algo desta estratégia está presente
em Molder, mas as coisas parecem ser bem mais radicais. Nem anulação
permanente do resultado – algures ele afirma que «nada se pode
abolir» e não apenas o acaso 4-,
nem a liberdade de poder continuar a lançar, por importantes
que seja. O que determina tudo é a hesitação
do movimento, é o movimento estranho do dado quando este
salta sobre as suas arestas e vértices, antes de cair sobre
uma face, a que se vira para nós, na qual que já não
vemos senão uma «mera» imagem ou um «aprisionamento» do real.
O salto e ressalto do «dado» - estamos
a falar do «dado-mundo» -, esse cristal de matemática que
serve de simulacro à arte de Molder, mantém-se longe
de qualquer hierofania, seja ela a do Livro, está tão
próximo quanto possível do movimento «fânico»,
do aparecer e desaparecer, e acima de tudo, movimento de entrar
e de sair. Nalguns dos seus saltos entrevê-se, repentinamente,
como num sonho, o espaço onde está a Rainha. Tudo
passa pelo movimento. Não já o cinemático que
tudo alisa - que quanto muito se pode também entrecortar
como se fosse um «respirar», e que está tão claramente
presente em A Linha do Tempo - que deixa traços «indeléveis»
que desconjuntam as fotografias, nos interstícios das quais
pode emergir, finalmente, aquilo por que sempre se esperou. E que
estava-aí. A luta contra as imagens, o boxing de Molder,
é uma luta contra os «tipos», o império tipológico
das imagens desencantadas. Ele está atento a outro tipo de
«impressões», que de facto é sempre a mesma: a pressão
do Phanés quando ainda salta e ressalta, e que, com
Molder, poderíamos definir como uma «impressão
confusa mas rejubilante». Mas a face em que o dado cai é
sempre conhecida, demasiado conhecida, fatal por isso mesmo, e inabolível,
portanto.
Molder afecta o movimento cinemático
pelo ressaltar do «dado», e este por um movimento de oscilação
que corresponde a um movimento estranho e também ele entrecortado,
e leve. Noutras ocasiões Molder fala de «breve». Trata-se
de um «movimento que incita, ao mesmo tempo, à aproximação
e ao afastamento», diz ainda. Oscila-se em torno de cada imagem,
de cada série, porque estes são os «eixos» em que
o nosso mundo oscila e balança; estamos perante a entrada
e a saída de um espaço para outro espaço, sendo
os dois o que constitui «tamanho» desmesurado da memória.
Absorvendo tudo no seu interior, o que se passou, o que está
em curso, e o que virá, o primeiro desbaste do nosso mundo
é o descontrolar-lhe o tempo, o do relógio, o das
exposições ou o da cronografia. É por isso
que o tempo dessa oscilação fundamental é aquele
que «é sempre agora», um «tempo presente»,
o fim do tempo da miséria, e o começo de um outro
tempo, bem mais enigmático.
Eis que emerge o «terror». Perda
de si, fim da propriedade, incerteza do resultado. De certo modo
tudo se baralha, a respiração que se ouve não
é a de quem respira, os olhos que vêm não são
de quem vê. Lição que vem das próprias
imagens, uma e outra vez. «Olhar mais uma vez as imagens»
que se tornam, assim, em sombras fugidias, olhá-las uma vez
e ainda outra, continuar a olhar e de repente tudo muda. Fonte de
«surpresa», misto de terror e de alegria, onde tudo se decide. Em
última instância não é possível
ficar pelos vértices do dado, nem pelas suas arestas – insegurança
radical -, como não basta a satisfação de cair
numa das faces, que mudaria à nossa vontade, nas quais ficaríamos
em casa. Em cada uma das hipóteses tudo bem dividido - como
o amargo-doce de Safo ou o triste-alegre de Giordano Bruno -, tudo
tende a deslassar-se. Terror absoluto ou a sua desmultiplicação
em medos infinitos e tristes; Beleza absoluta ou a sua desmultiplicação
em pequenas fruições. É preciso decidir, e
decide-se sempre demasiado cedo. De facto, o movimento errático
do dado «dado» é conduzido por um contra-movimento, uma oscilação,
que nos leva dentro e fora de um espaço, onde tudo se mantém,
na sua divisão essencial. Terror-Beleza. Esse é o
espaço do comum. Subitamente emerge «uma espécie
de propriedade comum», que nos dá o segredo daquilo que buscamos.
Oscila-se entre o terror e a beleza, mas o «pêndulo» que oscila
transporta de um lado para o outro, em quantidades mínimas,
mas necessárias, como se trouxesse atrás de si um
pouco do que acabou de visitar. Terror na beleza, beleza no terror,
comunicando no espaço do «comum».
Deste ponto de vista, nenhum artista
parece mais afastado de Molder do que Christian Boltanski, onde
a anonimidade daqueles que sofrem uma «equalização
no esquecimento» é a melhor imagem do «comum»
5, [boltanzki]
que a arte deveria salvar. Das imagens de Boltanski, por exemplo
em Mesnchlich apresentado em Aix-la-Chapelle em 1994, e que
reunia 1500 retratos heteroclitamente juntos, «a única
coisa que se pode dizer é que foram humanos, isto é,
diferentes e únicos». Essa unicidade perde-se no próprio
momento em que é apresentada. A imagem é o sinal dessa
perda. As imagens de Molder parecem ser a antítese disso,
talvez porque nada se possa perder, mas para isso a «arte» não
baste. A oscilação referida leva-nos a encontrá-los
nesse outro espaço, nem que seja uma vez. E nesse espaço
é aquele em que La Reine Vous Salue.... Vemos assim,
em acto, uma estranha criptofania, feita de pura oscilação,
onde o que oculta e o que revela são transportados no mesmo
movimento. É essa oscilação que conduz, invisivelmente,
o movimento entrecortado do «dado», ao mesmo tempo que este, no
seu impossível equilíbrio como que se «ouriça»,
cada face devindo aresta ou vértice, como se nunca pudesse
poisar sobre terra, continuando a rolar numa ilusão de parar.
Mas tem de continuar a rolar, em direcção... à
Rainha.
Molder conta que estava «à
espera da Rainha, sem saber se ela vinha ou se viria mesmo».
Evidentemente, a imagem da Rainha não está em nenhuma
das fotografias, mas em todas elas, e em todas aquelas que o continuar
da operação possam vir a criar. Mas estamos sempre
do lado de cá da operação, seja ela a fotográfica.
A inapropriação radical é descrita por Molder
como fazendo de cada imagem «sombras imprecisas». mas eis que oferece
o seu rosto para deixar vaguear essas sombras, que nele se imprimem,
pressionando. Na variação dessas sombras, na cartografia
do rosto da imagem, na sua oscilação aparentemente
sem sentido, tem de sobreviver uma impressão originária
da Rainha, que já nunca está aí.

 
Se é o terror que ameaça
de lá das «imagens» e a Rainha não está aí,
é ela uma imagem desse «terror»? Enquanto imagem a Rainha
é o fim do terror e o começo da Beleza. O começo
apenas, pois no meio estará a alegria. Ao lado da Rainha
impera a alegria. Mas será que em tal «imagem» da rainha
temos uma «nova» face que se acrescenta ao «dado»? Diria que por
uma passagem ao infinito o dado, movendo-se em todas as direcções,
no seu salto e ressalto infindável, se transforma numa esfera,
a do «mundo», pousado na mão da Rainha 6.
Perante essa esfera tudo é fragmentário, simples face,
perante o seu movimento perfeito, tudo é lance. Mas a esfera
que infinitiza o cubo equivale à presença do que se
espera, que o movimento de oscilação visita, para
logo abandonar. A arte enquanto exercício de movimentos impossíveis
reafecta o «dado» a algo de mais essencial. Desse trabalho encontramos
sinais na Melancolia
de Dürer, onde as esquinas do dado são «aparadas» ou
o «dado» se arruína, ou no estranho Cubo
de Giacometti, em que as faces se multiplicam, são 12 ou
treze 7, até
se tornar num «crânio» ou «esfera» distorcida, que interroga
o dado no mundo.
Arrastados pela oscilação
que arrasta também a Molder. podemos entrar e sair, esperar
e desesperar, mas é porque já está tudo aí,
cripticamente embora. Não se veja em Molder vontade de segredo
ou de mistério, fosse este o da «arte». Seria demasiado fácil
adscrevê-lo a um certo romantismo negro, basicamente gótico.
A sua insistência nos detectives, no poder, no crime, poderiam
mesmo reforçar esta sensação. Mas La Reine
Vous Salue... mostra que não é nada disso que
está em causa. É certo que existe um lugar que se
mantém «secreto», mas apenas porque fazemos escassas vezes
a viagem pendular que nos leva ao lugar da rainha. Sendo certo que,
perante esse lugar, todas as imagens devém sombras são
imprecisas, não existe em Molder nada da vagueza romântica;
pelo contrário, rigor absoluto da operação
fotográfica. Se a Rainha só pode ser apresentada «imprecisamente»
não é por falta de precisão da operação
fotográfica, que é máxima, mas porque faz parte
da sua natureza uma certa imprecisão. Ora, é a poesia
lhe lança uma imprecisão necessária e, igualmente,
a todas as imagens. A «imagem» ganha espessura apenas poeticamente.
Só assim deixa de ser «mera» imagem. Mas é no «aqui
e agora» que a imagem se densifica poeticamente, criando o espaço
que amplifica absolutamente o existente. Tal como é preciso
defender a «imagem» contra os seus adoradores, também é
preciso defender a «poesia» dos amantes de poesia.
Daí que ela só se possa
apresentar numa matéria que lhe está tão próxima
quanto possível, ou seja, o vidro. A proximidade de Molder
com Duchamp é aqui máxima. Não se trata de
«sobreposição» de dois mundos, o do comum, habitado
pela Rainha, e o nosso, propriedade de absurdos senhores. Mas de
amplificação do nosso. Uma indicação
sobre este assunto vêm-nos de La Reine Vous Salue...
que é o título de um poema de Maurice Câreme,
que se subintitulado «vitres de lune». Tudo se inicia por uma saudação
da Rainha, vindo do lado de lá dos seus «vitrais de lua»,
aos quais está encostada. Essa saudação chega
porque os «vitrais» não impedem totalmente a sua chegada,
sem por isso a colocarem no espaço onde nos achamos. Uma
certa luz, neste caso lunar, dá conta dessa distância
ínfima. Temos, antes, uma cristalização sem
obstáculo, que faz de cada face do dado um «vidro» que se
prolonga com a vitrificação do «real», que se torna
translúcido a esse movimento de vaivém. O espaço
que se vê, por vezes, bem poucas, através desse vidro,
intensamente metafísico, é o nosso espaço na
sua forma de espaço do comum.
Pensando sobre a natureza deste espaço,
ao mesmo tempo que olho detidamente para as fotografias de Jorge
Molder, vem-me irresistivelmente à lembrança o mito
do desaparecimento da Rainha. Que primeiramente era uma Deusa, a
deusa da justiça e da paz, a que os gregos chamavam Astreia
(ou Diké). Na mitologia clássica, em Virgílio,
por exemplo, Astreia desceu à Terra na Idade do ouro, tendo
fugido das cidades e depois dos campos cansada da iniquidade humana.
Nas Metamorfoses de Ovídio a fuga de Astreia está
ligada ao declínio da Idade de ouro e ao triunfo de César,
da guerra. Conclusão antiga era a de que num mundo abandonado
por Astreia a astúcia e o vício campeiam, e com isso
a tristeza da injustiça 8.
Na imagem da virgem Maria cristã ainda podemos ver um eco
de Astreia, que assim se transforma em Rainha. A metamorfose de
Astreia em Rainha capaz de trazer justiça e paz universal
remonta a Dante, mas é no século XVI que se dissemina
por toda a Europa, imperialmente, mas também poeticamente
9. E de certo modo,
todas as imagens visam reencontrar Astreia.
Por uma afinidade subterrânea
Molder redescobre a oscilação primordial que estava
associada a Astreia. De facto, ela é representada como tendo
numa mão a espada e na outra a balança. Ao abandonar
a terra, o espaço comum dos humanos - que se privatizou e
foi apropriado promovendo uma guerra infindável -, deixou
atrás a imagem de uma balança que, oscila entre céu
e terra, mas que é controlada pelos poderosos. A espada domina
a balança, e não o contrário. A oscilação
molderiana é ainda uma imagem desta «balança», que
oscila em torno de um ponto, um vértice, difícil de
descortinar, mas em que todo o mundo está num dos pratos
da balança, e no outro o «château de givre» da Rainha.
Desconfia-se da balança porque a espada a domina, em vez
de estar ao seu serviço, mas o que os modernos descobriram
é que a balança não pode abolir a oscilação,
que se torna em «inclinação», parcialidade, monstruosidade
de toda a medida. Mas a oscilação primordial de Astreia
afecta, minimamente embora, todas as inclinações,
os declínios, a imensa clínica dos poderosos. A fuga
da Rainha deixou atrás a sua imagem que era facilmente apropriável,
mas que continua a fazer a sua força, mesmo quando se torna
em imagem poética ou fotográfica. Essas inclinações
ou «quedas» alimentam a oscilação essencial, que a
todas arrasta, e assim é que reencontramos Astreia, que a
Rainha nos saúda, nos acena.
O que espera Jorge Molder da
vinda da Rainha? Que outra coisa senão o fim do Terror por
onde Beleza começa, mas também, diz-nos Heiner Müller,
«o Belo significa o fim provável dos Terrores» 10?
A Beleza fica-se entre começo e fim do terror, mas a mais
não alcança. La Reine Vous Salue... chega-nos
através de Molder de um poema de Maurice Câreme 11.
O gesto de saudar dirige-se, através dos vidros, àqueles
que, precisamente, não a vêm, precisando de uma imagem
ou de um verso para ver, e todos precisamos. Nós e vós.
É preciso saber ver, porque, de facto, a Rainha está
dissimulada na luz, mesmo ténue como a da lua. O luar, tal
como o vidro, dá a ver cripticamente. É preciso um
trabalho do negro para a dar ver. Molder é um mestre desta
criptofania, onde o oculto está aí, perdido
na sua excessiva visibilidade, simples imagem dispersa pela inanidade
das imagens que circulam desencantadamente. Um pouco como na carta
roubada de Poe, tão mais oculto quanto mais visível.
A Rainha saúda através das imagens de Molder ou do
poema de Câreme e, por esse facto, exige uma resposta. A saudação
é sempre um gesto transitivo, que não pode ficar indefinidamente
em suspenso sem se abolir. Num outro momento, numa outra hora, subitamente
esse gesto terá que ser respondido. A Rainha está
a convidar todos a entrar nas suas «d'étranges demeures»,
mas só os que respondem ao aceno podem entrar nesse espaço
para que estão a ser levados «secretamente». Arrastado pela
oscilação que tem por eixo algumas imagens raras,
entramos e saímos desse espaço onde todos cabem. Diz
Câreme que ele é sem portas, paredes ou torreões.
Por uma reversão essencial descobre-se, com Molder, que o
outro espaço, o espaço do comum, não
é uma cripta, algo oculto numa espécie de castelo
gótico, mas que é o nosso mundo é críptico,
pois feito de paredes, divisões e leis que as sustentam.
Não se trata de abrir a cripta, pois ela confunde-se com
o mundo, mas de criar uma outra cripta, onde cabe toda a existência,
que tem lugar no interior mesmo do «coração»
da Rainha. Passagem ao infinito do dado que roda vertiginosamente.
Nesse espaço Astreia impera eternamente, e com ela a paz
e a justiça. Mas também tudo é vivo, de eterna
juventude, onde nada se perdeu: «Et où les jeunes mortes//
Viennent parler d'amour». O espaço onde habita a Rainha
não é habitável por nós, apenas aí
podemos aceder nos instantes em que vemos o aceno da Rainha e lhe
respondemos, de longe. Oscilantemente entraremos e sairemos dele,
poderemos vê-lo ou não, mas o que conduz esse movimento
são as «falas de amor». Eis o que liga. A Beleza como eixo
ou vértice ou aresta deste movimento que é maximamente
urgente, pois se «La reine vous salue,// Hâtez-vous de
la suivre». Os que forem capazes de fazê-lo, de responder
a esta urgência, quando a oscilação os deixa
do lado de cá reconhecerão, por sinais secretos, que
são conspiradores de uma revolução em que urge
o fim da violência, a diminuição da tristeza.
Dissipação do terror...
A conspiração daqueles
que estão ligados pelas «falas de amor», que os arrastam
secretamente para o espaço da Rainha, está para além
da Beleza. Com o fim do terror irrompe a alegria. Questão
de quantidades e de medidas: enquanto a alegria for menor que a
tristeza, a Beleza é necessária e o terror tudo sitia.
Quem não sentiu essa festa que arrasta toda a existência
nas suas ondas de alegria? Uns dias de Abril para uns, 6 de Outubro
para mim, eis que a festa que surge à luz do dia fazendo
explodir, momentaneamente, a cripta do mundo. Nos negros de Molder
não deixo de ver ouvir a voz de Rousseau chamando-nos para
uma «festa» iluminada pelo «sol»: «n’adoptons point ces spectacles
excluisifs qui renferment tristement un pedtit nombre de gens dans
un antre obscur; qui les tient craintifs et immobiles dans le silence
et l’inaction; qui n’offrent aux yeux que cloisons, que pointes
de fer, que soldats, qu’affligeantes images de la servitude et de
l’inégalité». Essas festas à porta fechada,
em criptas a dinheiro ou iluminadas pela palidez da TV, só
podem ser libertadas por essa conjura que visa a totalidade da existência
e que é aberta a todos, pois «l’innocente joie aime à
s’évaporer au grand jour; mais le vice est ami des ténèbres,
et jamais l’innocence et le mystére n’habitèrent longtemps
ensemble» 12.
Rousseau tem razão. Seja
como for, ambos comunicam de algum modo por essa oscilação,
que afinal é uma aceno que responde a outro aceno, que não
tem a regularidade do pêndulo, mas não menos eficaz,
e a que as fotografias de Molder me conduziram. O espaço
comum vibra de alegria, tudo e todos são convidados por ela.
Mesmo aqueles que não conseguem ver a saudação
da rainha acabarão contagiados pelo seu aceno e entrarão
nos seus «lugares estranhos», que se confundem com a Cidade em festa
que, não vendo o aceno da rainha, sente os seus efeitos.
Astreia que vai chegando por Molder por Câreme por Rimbaud,
por...
Rimbaud fala também ele de
uma Rainha num poema intitulado «Royauté».
Numa bela manhã, no
meio de um povo bem gentil, um homem e uma mulher esplêndidos
deixavam ecoar na praça: «Amigos, quero que ela seja
rainha!», «E eu quero ser rainha!». Ela ria e tremia. Aos amigos
ele falava em revelação, de uma provação
que chegara ao fim. Os dois apertavam-se um contra o outro.
É verdade. Foram
reis por toda uma manhã em que as colchas carmesins penderam
das casas, e toda a tarde, em que caminharam para os lados dos
jardins de palmeiras» 13.
Eis uma festa qualquer de um dia
qualquer, com o povo na rua, que na sua generosidade ilusória,
quase certo, põe as colchas nas janelas para os senhores
do mundo. Mas os que amam, os amantes, têm a impressão,
só na aparência absurda, de essa festa é para
eles, que as colchas nas janelas e as músicas se lhes destinam.
Por momentos, toda uma manhã e uma tarde, a imagem da Rainha
saúda, através deles, para toda a cidade. A tristeza
que levou à fuga de Astreia devém fulgurações
alegria, nos seus risos e estremecimentos. As palmas imperiais crescem
pacificamente em jardins, sem serem cortadas para vitoriarem uma
guerra, mas para darem sombra à rainha desconhecida, que
faz do amado um Rei, e da cidade um Reino. Como é belo que
tudo venha da ilusão do povo, gentil e anónimo, em
cujas festas está à espera a verdadeira festa! Aquela
que toda a Cidade humana espera. E que começa em cada um
que respondeu ao aceno da Rainha. E a Rainha passeia-se então,
no meio de nós, na soberania absoluta da alegria.
Uma e outra vez ela retorna nas «sombras
imprecisas» com que Jorge Molder identifica as imagens da La
Reine Vous Salue..., Mas através destas sombras, fundidas
na existência através dessa matéria vítrea
que a arte é, e que aproxima e afasta, é possível
recuperar, como máxima precisão, a soberania que só
cedemos aos senhores do Mundo, a não ser por inadvertência.
Sade enlouquecido da soberania que não abandona a nenhum
poder, Beuys que via soberanos por todos os lados, Molder que luta
contra todas as figuras armadilhando-as no seu corpo, todos eles
foram tocados pela Rainha. La reine Vous Salue... sim, a
ti leitor
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