A companhia que me tinha entretido nas duas horas
e pouco que demora a viagem de comboio, de Viena a Linz, havia-se
despedido momentos antes. - Patente que fique a saber, a ligação
entre comboios e o Ars Electronica, por estranha que pareça, tem a sua efectividade no baptismo
de um dos comboios rápidos pendulares da ÖBB (os caminhos de ferro
austríacos) -. Consumados os adeus, dirigi-me para o posto de
informação ao turismo da estação, entusiasticamente com a minha
referência física ao Ars Electronica na mão. Afinal não teria sido necessário apresentar o postal
ilustrado referente à temática 'Takeover' do festival deste ano, que havia encontrado num stand de postais gratuitos à entrada do Café Central em Viena. Apesar de não ter encontrado viv'alma que soubesse
o que era, ou o que representa o Ars Electronica Center - "a media facility and interface of art, technology, business, science and
society" - a relativa pequena cidade de Linz, assinala
com clareza o posicionamento do museu no seu mapa turístico, no
lado oposto do Danúbio à estação ferroviária. Talvez isso seja devido
à exposição internacional que a cidade adquire todos os anos no
ínicio de Setembro, altura em que têm lugar conferências, debates
e prémios (o Ars Electronica Prix) nas instalações do centro de congressos municipal,
que se situa mesmo em frente do edifício do Ars. Ambos estes últimos, voltados ao rio, olham o centro histórico e comercial
da cidade na outra margem.
Nem uma chuva intensa com
carimbo de início de Agosto, me demoveu a visitar o Ars naquela mesma tarde de Sábado em que cheguei a Linz. As web-cams que havia consultado em casa,
no site do "museu do futuro",
não haviam deslindado nada e apenas redimensionei para mais pequena a estatura
do edifício de cinco andares, metalicamente cinzento e envidraçado no cimo, ao
descer na paragem do strasse-bahn (
'comboio de rua' em tradução literal do alemão). Alemão que não me fez tanta
falta noutros locais da Áustria como em Linz. A cidade parece não gozar das
hordas de turistas que invadem o país por alturas do Verão, apesar de
constituir uma paragem frequente na linha de caminho de ferro que cruza a Áustria,
de Viena em direcção ao Tirol, a oeste. O sobreaviso já me havia sido indiciado
pela preponderância do site do Ars,
em utilizar o alemão como default e,
muitas das vezes, não contendo a mesma quantidade de informação traduzida. O
site salienta o carácter "experimental"
ou "playful
fashion" do museu, o que leva a que muitos dos entusiastas
visitantes me tenham surpreendido pela jovialidade e que, haja monitores de
indumentárias laranjas sempre prontos a dar uma ajuda no que a implementação
técnica esconde dos sentidos.
O 'login gateway' ( piso 0)
A entrada no piso
denominado "login gateway" faz-se por intermédio de uma bracelete, que
ostenta uma espécie de código de barras original. Esta, após o scan no torniquete, permite-nos
prosseguir para ver as primeiras (e únicas) duas obras expostas neste piso
térreo. Tratam-se de duas aplicações robóticas,
com ênfase na interacção comunitária que as faz trabalhar. Na realidade estas
duas obras poderão ser manipuladas tanto por visitantes locais, como por
membros da ciber-comunidade, para a
qual também foram destinadas. Os sites estão dotados de web-cams que imitem o aspecto das duas construções telemáticas em web-cast.
A primeira (e talvez mais
interessante) é o TeleGarden
( http://telegarden.aec.at ) que
consiste num braço robotizado,
preparado para manter viva uma cultura vegetal situada num canteiro circular. A
característica que salta à vista é a de que, como que é exigido um compromisso
com a obra por parte de quem decide interagir. Desde a plantação, à rega, ao
enriquecimento do solo, tudo isto é transladado para o campo mecânico e virtual
do espaço, mapeado segundo sectores e que memoriza e capta o estado de cada
unidade vegetal. Para a máquina, trata-se de incutir uma responsabilidade de
paternidade biológica ao humano, ao mesmo tempo que na sua austera esterilidade
de condição de entidade não-viva, procede à maternidade de algo biológico.
Funciona também como que possibilitando a libertação do 'fardo' físico de uma consciência
ambiental, como que deixando por justificar a desculpa de que 'cuidar do
ambiente cansa'. O prospecto afirma que a obra recebe "a atenção de milhares de pessoas por todo o mundo" e a
realidade é de que, o solo arável escaceia. O facto é que nos interrogamos
sobre o que irá acontecer à nossa criação quando nos afastar-mos e como tal, a
obra vinga no pequeno 'implante' que nos deixa.
Já a mesma facilidade de interacção não se verifica na workstation
que serve de interface à construção de uma 'arquitectura
virtual' da obra TeleZone ( http://telezone.aec.at
). Este projecto visa estabelecer um tipo de "comunidade
urbana" ao estilo Legoland em que, mais uma vez
se actua via robot, controlado local ou remotamente. O desenho
e a construção são deixados ao cuidado de quem se quiser entreter
a empilhar pequenos blocos do tamanho de uma peça de Lego. Aqui
parece ser do interesse dos realizadores do projecto, incentivar
a uma sociedade arquitectónica democrática, que espelhe as diferenças
que caracterizam um centro urbano contemporâneo. Talvez isso seja
visível da melhor forma vendo a co-habitação de uma construção pré-colombiana
americana, ao lado de um edifício de porte semelhante à antiguidade
clássica. Segue-se um 'gueto' de blocos experimentalistas de visitantes,
que provavelmente se aborreceram com a dificuldade do interface
- como alguns presentes por sinal -.
A 'Cibercity'
(piso 1)
O elevador é ele próprio um
esforço de imersão (e inovação ?) em tecnologia. Com o chão que alberga um
écran plano, debita animações no escuro conforme o movimento de ascensão ou
não. Um comando permite vaguear pelas animações disponíveis: um foguete
espacial que parte do Ars em
direcção ao espaço ( se subirmos ) ou um 'corte' que permite ver as áreas de um
cérebro em actividade.
Este piso caracteriza-se
pela preocupação com a informação que
as obras denotam. Esmagadoramente esta informação como objecto interactivo,
manifesta-se sob a forma de aglutinação da unidade linguística - a palavra -
ou, ainda mais basicamente, no elementarismo do caracter. Tal se deve à
exposição Print On Screen que integra instalações que relacionam a "tipography,
typefaces and text as a medium of interaction".
Assim as artes visuais e o
texto fundem-se para, como o prospecto diz "investigate interaction as an artistic
strategy" e sumariza com a seguinte caracterização: "digital
wordplay in the truest sense of the word".
Como mote para as obras em
exposição neste piso, encontramos a frase de Peter Cho, inscrita num dos separadores, "A primeira vez que
brinquei com palavras voadoras foi quando fiz o meu primeiro avião de papel.
Desde então nunca mais parei". Com efeito, as “palavras voadoras”
que este licenciado em Aesthetics and
Computation Group pelo Media Lab, manifestam-se
de uma ou outra maneira na visualização computorizada dos símbolos
alfanuméricos do texto como ponto de partida para a composição artística em Print
On Screen.
Encontramos neste contexto uma das obras mais apelativas do piso
Life Spacies II de Christa
Sommerer e Laurent Mignonneau. Esta compõe-se de uma
tela de dimensões consideráveis onde um ambiente virtual marinho,
serve de plataforma ao nascimento, vida, alimentação e morte, de
seres traduzidos por intermédio de um algoritmo, cujo input
se compõe de agregações de letras. Estas são digitadas num teclado
à disposição do visitante em frente do dito écran. Cada agregação
diferente dará, em princípio, origem a um ser diferente que interagirá
com os demais ainda em vida, até que pereça.
Outro projecto interessantíssimo, desta vez onde todo o
corpo do participante pode interagir, é Text
Rain, de Camille Utterback e
Romy
Achituv (USA) e situa-se numa sala improvisada
para o efeito. Ao entrar nesta sala, o participante vê uma ‘chuva de letras’
cair numa tela de projecção na parede do fundo da sala. Estas letras não
aparentam instigar a qualquer tipo de comunicação percepcionável – é na
realidade um poema que espera pela interactividade do visitante para se revelar
-. Quando o visitante entra na sala, escura e com o projector nas costas do
mesmo, permite que a silhueta deste demarque na tela onde caem as letras a sua
sombra. Cabe ao visitante ‘aparar’ as letras com o seu corpo, de modo a que as
mesmas fiquem retidas - imediatamente acima da sombra da silhueta - o tempo
suficiente para que as palavras se formem. Quando a nossa sombra deixa de estar
presente, as letras, como flocos de neve, seguem o seu percurso descendente e
desintegram-se ao chegar ao solo. Há assim como que uma ‘impressão não-digital’
mas fisicamente semelhante, única na instalação por parte de cada visitante –
cada um ostenta uma aparência e outline característicos
-. Há ainda uma liberdade total de envolvimento na obra, que ultrapassa
facilmente o âmbito de descodificar a mensagem (do poema) extravasando a
experiência num equilíbrio (ou não) de caracteres puramente lúdico. A
instalação convida-nos a reencontrarmo-nos com nós próprios – saberíamos
antever na nossa sombra e lembrar-nos-iamos dela? - e a aceitamo-nos (ou à
nossa silhueta) com um propósito eminentemente prático.
Noutro compartimento, um
projecto que visa ludibriar e exigir exploração por parte do público, consiste
em usar um teclado tipicamente instrumental, como via de acesso à interactividade no écran onde outro texto é
visualizado. A gramática verbal, simbolicamente transmitida, que foneticamente
se interpreta no nosso cérebro ao ler o écran, sofre assim durante o circuito
de interacção com a obra, uma distorção linguística, ou se quisermos,
representativa pelas várias formas mais fortes de comunicação. Assim, é-nos
instigado a cerebralmente, readquirir-mos um novo dicionário, por onde cada
tecla do orgão electrónico - que se associaria a uma gramática musical, a um
tom -, corresponderá a uma modificação tanto cromática, como comportamental em
termos de velocidade ou de formal do texto que é exibido. Infelizmente, não
possuo os dados de identidade da obra.
Existem ainda no piso, uma
serie de workstations em que outros
projectos interactivos se fazem valer
da linguagem, na sua visualização alfabético animada, parecendo às vezes
parentes de screen-savers. É o caso
do Active Text Project por Jason E. Lewis e Alex Weyers que receberam uma menção honrosa no Prix
Ars Electronica 2000, onde o visitante pode manusear blocos de texto
por intermédio de uma applet JAVA programada
para o efeito. A prova de que na arte electrónica ou digital, a técnica não
suplanta necessariamente a criatividade.
O 'Knowledge-net ' (piso 2)
Descrito no prospecto como “...featuring
state-of-the-art-equipment offers users the opportunity to try out a wide
variety of different forms of group work, whereby playful learning plays na
essential role”. Infelizmente este piso
encontrava-se encerrado pelo que não me foi possível constatar a denominada
área de auto-conhecimento.
O 'Sky media Loft '
(piso 3)
No panorâmico piso que se
situa no topo do edifício, parecemos descer não à terra após todas as
experiências por vias maquinais que encontrámos, mas subir à descoberta dos
sentidos 'interface free'. Com
efeito, tanto a visão como o paladar apreciarão uma vista superior sobre Linz,
as montanhas e o Danúbio com uma bebida na mão. Ah!, é claro, isto enquanto
esperamos que um dos Mac disponíveis
acedam à nossa página de web-mail.
A 'Cave ' (piso
-1)
Para último e porque havia uma sessão de realidade
virtual (VR) agendada para o final
da tarde, prossegui para a cave. Esta alberga como principal atractivo, um mainframe (datado da segunda parte da
década de 90), que impressiona não tanto pelo seu tamanho, quanto pelo que nos
apercebemos do quanto o nível de exigência para aplicações VR tem baixado. Seja como for, o equipamento ainda proporciona uma
imersão panorâmica e colectiva VR em
horário regular, o que não é usual encontrar em museus. Pena que a navegação
seja efectuada por um monitor do Ars para
a assistência ‘passiva’.
Existem duas ‘viagens’ propostas: um passeio por um
possível projecto arquitectónico de qualquer urbe, onde nos é dada a conhecer a
dimensão, a aparência e o interior do complexo, ainda antes de o mesmo poder
estar construído. A alternativa é uma viagem a um mundo misterioso, de uma
construção civilizacional incógnita de cariz aparentemente religioso,
abandonada e cavernosa. O palco é constituido por 3 paredes onde são
projectadas imagens tri-dimensionalmente desfocadas para serem entendidas pelos
óculos 3D.
No restante piso, encontram-se ainda acessíveis bases
de dados media, especialmente
desenhados para o Ars, com excertos
de algum do material animado ou, digital produzido cinematograficamente,
reconhecido com o Prix em edições
anteriores do Ars Electronica Festival.
Foi o caso, a título de exemplo, de Fight
Club ou Matrix.
Outras obras esgotam-se em mais alguns projectos demasiado aparentados
com máquinas de feiras populares, que ilustram uma faceta puramente
lúdica e simples de actuar. Sejam exemplos disso um jogo da corda
virtual e um écran interactivo ao toque, onde aparecem e desaparecem
personagens.
Se bem que o nome Ars Electronica exista
já há perto de 20 anos, o Ars Electronica Center
existe nas instalações actuais desde 2 de Setembro
de 1996. O projecto, inicialmente pensado por um membro da ORF
(televisão estatal austríaca) surge como uma simbiose
entre o município de Linz e o patrocínio empresarial
na área tecnológica. Assim, não é de
estranhar que nomes como a Microsoft, Hewlett Packard, Oracle, Sillicon
Graphics, Siemens e outras, surjam como grandes apoiantes do projecto.
Vultos ligados às instituições políticas
da cidade fazem questão de na página oficial do Ars,
fazer referência às infra-estruturas excepcionais para
"digital media" que a cidade se orgulha de ter
e ao seu reflexo, no clima inovativo negocial na área tecnológica.
A preocupação de o Center constituir um pólo
apelativo nesta área, como que um íman, é alias
uma constante naquilo que se sente ser o papel do museu do futuro
visto pelas instituições oficiais locais. Torna-se
assim fulgurante, a ideia de chamar a Linz, não só
turisticamente leigos do movimento artístico, curiosos e
tecnólogos como, uma facção desta vez interventiva
na 1ª pessoa e se possível estacionária, de criativos,
investigadores e artistas.
|