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  Exposição de Lothar Baumgarten

  [ Margarida Carvalho ]

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«Pela água trazido recolhido partido enterrado»

Apontamentos sobre uma visita à exposição «Pela água trazido recolhido partido enterrado» de Lothar Baumgarten, presente na Fundação de Serralves até início de Julho de 2001.

«But the painted face evokes itself again, with insolence, clearer at every turn. It gazes from too close. What can it mean? Are you provoking it? Met anywhere else: what an intolerable experience! Like the appearance of an overly insistent friend, like a too-faithful regret, like a mute wanting to ask a question.

But we don’t inhabit the true world. We can reject what offends or troubles us, effaced more easily than a regret, with a quick flick of the hand.

So close up your fingers: at once, the face is gone …» Victor Segalen (1)

«Sobremesa sem açúcar»

Talvez um encontro feliz com a exposição de Baumgarten possa passar pelo desenho de um mapa. Será, no entanto, um mapa impressionista, ao sabor de interpelações pessoais, cujas paragens sobrepõem obras e paisagens do espírito, iluminando alguns caminhos, no mesmo gesto em que outros são deixados na obscuridade, lugares esquecidos e sem nome. No meu mapa vou começar por escrever a lápis um belo título «Pela água trazido recolhido partido enterrado», e redesenho agora as letras novamente ao sabor da repetição que o título me sugere. Essa vaga que acolhe e enterra parece-me invocar claramente a lógica dialéctica dos escritos do artista no seu projecto específico para o Museu de Serralves, intitulado «Sobremesa sem açúcar», 2001. Com efeito, na primeira sala da exposição, a que temos acesso, assalta-nos imediatamente a largueza do espaço e a brancura das paredes que são modeladas por frases, tais como: «Quem boceja não ouve. Na sua surdez, o poder é igual ao prazer. A forma está ligada ao tempo, a estrutura proporcional não. A opinião é o conteúdo, a pretensão a forma. A paisagem do crítico é a viagem já sabida». Simultaneamente, sob o nosso olhar, uma escultura de mesas que se sobrepõem, erguendo-se numa sóbria e alta coluna, e duas cadeiras suspensas num pequeno varandim no nível superior da sala, já bem próximo do tecto. Neste projecto específico, de cuidadosa exploração dos corpos no espaço arquitectónico, evidencia-se, parafraseando o artista, no texto introdutório à exposição, o trabalho sobre uma gramática capaz de reflectir as relações espaciais elementares e que acentua uma dialéctica em que um discurso crítico com a cultura contemporânea se desdobra dentro de um espaço arquitectónico. Com efeito, quer o projecto «Sobremesa sem açúcar», quer o conjunto exposto, na capela de Serralves, de pequenas fotografias sobre reflexões recentes, «Work in Progress», 1985-2000, quatro delas publicadas na rúbrica Arte-Pública, do jornal Público, de 28 de Abril do presente ano, tendem a evidenciar a preocupação crescente de Baumgarten com uma gramática espacial, que utiliza a medida e a proporção como instrumentos do pensamento, e que parece intensificar uma vertente mais depurada e concentrada na disposição e interacção dos corpos, fazendo simultaneamente intervir o eixo diacrónico, temporal, no seu trabalho de espacialização.

«Gosto mais de estar lá do que em Vestefália, El Dorado»

Na mesma sala do projecto «Sobremesa sem açúcar», ao fundo, num canto, uma pequena pirâmide de pigmento azul, intitulada «Tetraedo», de 1968. E, espraiando-se pelo chão, um enorme mapa, semi-oculto sob uma rede de camuflagem, «Voo Nocturno», 1968-1969. E assim começamos a penetrar o universo das viagens, incursões etnográficas e ambientes exóticos, com um especial fascínio pelo Novo Mundo, que marca a obra de Baumgarten dos anos 60 e 70. Com efeito, uma das suas obras fundamentais deste período é precisamente a projecção de diapositivos intitulada «Gosto mais de estar lá do que em Vestefália, El Dorado», de 1968-76, na qual durante cerca de 37 minutos vemos imagens de uma imensa beleza plástica e ouvimos toda a riqueza sonora das selvas ameríndias. Relâmpagos, lodos, folhas, troncos, insectos, cogumelos, árvores desmesuradas, sapos, caracóis, penas que ondulam na água, uma revoada de borboletas, o voo da cegonha, os cantos dos pássaros e os murmúrios constantes de uma selva sôfrega, mística, mítica. Mas também, artefactos, mapas, pigmentos, inscrições nas árvores, uma faca e um tacho sob a vegetação, um papel na água, a sombra de uma rede caçadora e o voo do avião. Com efeito, se o olhar de Baumgarten é um olhar de fascinação há uma evidente preocupação da sua parte em deixar indícios desse olhar, uma reflexividade capaz de romper a potencial reificação de tais imagens (2). E tal como Hal Foster afirma, no capítulo «The Artist as Ethnographer», do livro The Return of the Real, «esta reflexividade é essencial, na medida em que, tal como Bourdieu advertiu, o mapeamento etnográfico predispõe-se a uma oposição Cartesiana que leva o observador a abstrair a cultura estudada. Este mapeamento pode portanto confirmar, ao invés de contestar, a autoridade do cartógrafo sobre o lugar, de um modo tal que reduz a troca desejada do trabalho de campo dialógico» (3). Com efeito, Baumgarten preocupa-se em sublinhar a dimensão manipulada das suas imagens, jogando na dicotomia central Natureza-Cultura, para fazer operar um permanente desdobramento, suspendendo um olhar naturalizante. Como tal a projecção «Gosto mais de estar lá do que em Vestefália, El Dorado», assim como a sequência de fotografias a cores de 1968-70 da série «Kultur-Natur», também presente no Museu de Serralves, devem ser pensadas em torno do conceito de «realidade manipulada» que o artista define da seguinte forma: «O carácter efémero das minhas esculturas reside na sua materialização e fundamenta-se no seu princípio de crítica cultural, que a forma de materialização torna específico. (...) Frequentemente a sua origem é uma realidade previamente existente ou suposta para a manipulação posterior, tanto formal como de conteúdo. Uma realidade manipulada desta forma torna-se ela própria escultura, é determinada pela sua materialidade e situação específica, pelas circunstâncias de clima e luz. O seu valor de uso é – para um tempo limitado, até ao seu desmoronamento iminente, calculado e total – altamente dialéctico. O seu específico carácter de modelo serve de esboço de uma gramática para a interacção de forma e linguagem» (4).

«El Dorado Gran Sabana»

Realmente com o seu gosto pelos mapeamentos, pelo trabalho de campo, pelas culturas-outras e pela crítica cultural, Baumgarten parece enquadrar-se de forma exemplar na viragem etnográfica que caracteriza, segundo Hal Foster, uma das tendências mais importantes da arte contemporânea (5). Com efeito, nomeadamente o seu trabalho de recolha de mitos, fotografias, gravações sonoras, filmagens e desenhos realizado junto dos Yanomámi, povo nómada que vive na Venezuela e no Brasil e com o qual Baumgarten permaneceu durante 18 meses sem interrupção, evidencia claramente esta tendência no trabalho do artista. Trata-se, para Baumgarten, de problematizar o dispositivo orientalista, inerente a muitas das estratégias de representação etnográfica, que tende a acentuar uma visão exótica e generalista da alteridade cultural. Tal como Craig Owens assinala em «Improper Names»: «Baumgarten insiste em afirmar que as suas fotografias dos Yanomámi diferem dos retratos etnográficos na medida em que, naquelas, a sua posição enquanto observador-participante é assumida abertamente: "Podem ver como eu vivi junto deles"» (6). É a questão da reflexidade na arte contemporânea que retoma, sublinhado-se uma distância crítica, pela inserção daquele que olha naquilo que é olhado. Neste sentido, a preocupação de Baumgarten em imprimir vestígios da sua presença nas fotografias dos Yanomámi é semelhante àquela que o leva a incluir num mapeamento de nomes de povos indígenas do Amazonas, feito na fotografia manipulada Amazonas-Kosmos (7), 1971, o nome Tupamaro, o qual se refere a um grupo político radical dos anos 60, cujo nome é inspirado em Túpac Amaru, um peruano radical. Porém, se esta reflexividade parece ser central na problematização das estratégias de representação da alteridade cultural, possibilitando o enquadramento daquele que representa e potenciando portanto a ruptura com um modelo de representação naturalizante e abstracta, corre-se, no entanto, o risco de nos quedarmos parcialmente no campo dos ironismos privados e do brilhantismo das referências, sendo que a obra de Baumgarten tem sido por vezes criticada nesse sentido.

No entanto, em «El Dorado Gran Sabana», projecto composto por uma série de fotografias a preto e branco da região da Roraima, na Venezuela e Brasil, associadas a desenhos de parede, Baumgarten apresenta uma poderosa reflexão sobre a aliança entre o discurso prospector e a predominância visualista nas práticas artísticas e etnográficas, procedendo a uma efectiva desconstrução das estratégias dominantes de representação visual da paisagem e da alteridade cultural. Com efeito, as fotografias apresentam grandes panorâmicas paisagísticas da região de Gran Sabana, do mítico El Dorado, onde nos anos 80 ressurgiu a exploração mineral, sendo que nas paredes Baumgarten dispõe os nomes dos minerais encontrados nesta região e, sobre estes, os nomes (invertidos) das espécies ameaçadas pela extracção de tais minerais, relacionando assim a representação da paisagem com a exploração comercial e a consequente destruição dos seus recursos. Na verdade, a escolha das panorâmicas paisagísticas é central para a compreensão da dimensão problematizante desta obra de Baumgarten e deve ser reportada, por um lado, à predominância da descrição da paisagem na literatura colonialista sobre viagens, elaborada nos séculos XVIII e XIX - e que inspirou profundamente a antropologia emergente no século XIX - e, por outro lado, à relevância da paisagem no seio da hierarquia académica dos géneros de pintura, no século XIX. Com efeito, tal como Mary Louise Pratt afirma em «Scratches on the Face of the Country; or, What Mr. Barrow Saw in the Land of the Bushmen»: «As visões panorâmicas são um importante lugar comum na estética Europeia. (...) No contexto da exploração (...) tais paisagens adquirem e servem para familiarizar significados que podem não possuir na frente doméstica. Elas sugerem, por exemplo, a fantasia da dominação que é comummente construída através desta forma de pensamento: o olho "comanda" aquilo que está sob o seu olhar; as montanhas "mostram-se a si mesmas" ou "apresentam-se a si mesmas"; o país "abre-se" perante o recém-chegado Europeu, à semelhança do corpo indígena visualizado na sua nudez» (8) . Com efeito, tal como a autora sublinha, as descrições paisagísticas, tão comuns quer na literatura colonial, quer na pintura do século XIX, são prospectos, isto é, projectam nas paisagens despovoadas possibilidades futuras em termos de exploração e apropriação, construindo a fantasia da dominação de um modo visualista. Assim, em «El Dorado Gran Sabana», Baumgarten posiciona o espectador enquanto prospector, devolvendo-lhe através dos nomes invertidos (das espécies em extinção) um reflexo crítico desse olhar, que potencia a disrupção de tal modelo (ideológico) de representação.

«Unsettled Objects»

Com efeito, esta crítica da representação paisagística segundo um modelo prospector complementa-se na problematização da representação apropriativa da alteridade cultural, levada a cabo por Baumgarten, na projecção «Unsettled Objects», 1968-69, instalada na Capela da Fundação de Serralves. Assim, esta peça apresenta um vasto conjunto de diapositivos a cores de fotografias da colecção etnográfica do Museu Pitt Rivers (9) de Oxford, em Inglaterra, nas quais Baumgarten inscreveu um conjunto de palavras, tais como «exibidos», «classificados», «estudados», «narrados», «negligenciados», que constituem um vocabulário próprio da relação entre o museu e os objectos da sua colecção. Na verdade, tal como Michael Govan assinala, em «In the Name of the Other», o fascínio de tais imagens advém não tanto dos objectos etnográficos expostos quanto do carácter sistemático da sua disposição, dos seus enquadramentos e etiquetagens, sendo que, nas palavras do autor, as «marcas nas máscaras indígenas competem com os padrões, segundo os quais os curadores dispuseram os objectos, e o carácter deliberado da selecção dos objectos em mostra só é enfatizado pelo excesso de objectos que permanecem nas prateleiras, por cima de caixas e dentro das vitrines» (10).

Com efeito, nesta peça Baumgarten aborda criticamente o «modelo de salvação» subjacente às construções complementares da alteridade e da história na cultura euro-americana. Na verdade, e citando Virginia Dominguez, «embora, no seu sentido estrito, a palavra "salvação" possa soar antiquada, num sentido mais alargado creio que ela reside no cerne da maioria das formas e práticas de representação –visual, audio, literária, expositiva -, nas quais aquele que representa usa ou incorpora objectos materiais ou imateriais, que percepciona como sendo criação ou propriedade de outros» (11). Efectivamente a consagração científica e institucional da autoridade antropológica e museológica, no século XIX, vai basear-se numa representação da historicidade, profundamente enraizada nas tradições culturais e cognitivas do Ocidente, da qual Virginia Dominguez destaca três características fundamentais: o ênfase na linearidade, a sua orientação para o passado e a acepção de que o seu objecto poderá vir, e de facto vem, do mundo como um todo. Assim, a visão global do evolucionismo do século XIX irá determinar uma ordenação linear do progresso das sociedades (esquematicamente, das selvagens para as bárbaras, desembocando nas sociedades civilizadas), baseada numa concepção do tempo histórico enquanto irrepetível, pelo que é dada uma tarefa fundamental aos arquivos, museus e colecções: a de preservarem um «passado autêntico». É assim que o «modelo de salvação» se impõe, através da representação apropriativa das culturas dos diferentes povos que, pela lógica linear do progresso, tendem a perder a sua especificidade cultural face ao impacto da modernização.

Em «Unsettled Objects», a justaposição de objectos e palavras evidencia o conflito semiótico entre culturas e a voracidade do dispositivo apropriativo museológico e do nosso próprio olhar esteticizante. Neste sentido, a escolha da capela da Fundação para a projecção desta peça é bem feliz, na medida em que o próprio simbolismo do espaço sublinha, por contraste, a dimensão crítica do enquadramento semiótico das imagens. No frio cortante das paredes de pedra sucedem-se os amuletos, os instrumentos, as penas, os ornamentos, as estatuetas. E, sob um fundo intensamente púrpura, uma máscara, de contornos precisos, delicados e olhos semi-abertos, fixos, escuros como o tempo, como o nascimento do tempo, que não cessa de voltar e partir. «celebrados». «perdidos». Pela água trazidos, recolhidos, partidos, enterrados, os objectos desenraizados arrastam consigo uma inquietante estranheza que a obsessiva nomeação ocidental não conseguiu, no entanto, ancorar. Sob a luz já pálida do final do primeiro dia de Maio deste ano escrevo no meu mapa: uma máscara enterrada na selva guarda o sabor das árvores e o cheiro do voo dos pássaros. E imediatamente vem-me à memória a frase obsessiva, «Rien que ces faits», que Leiris escrevia a propósito da sua África fantasmática. Realmente a obra de Baumgarten é de uma inteligência rara e delicada: no seu trabalho de sobreposições espácio-temporais e desconstrucionismos semióticos, o seu universo aloja-se perturbantemente no impulso desejante de uma experiência directa e total da alteridade (explorando uma vertente de forças místico-xamanísticas, e neste sentido recorde-se que Baumgarten foi discípulo de Beuys, na Academia de Düsseldorf, durante os anos 70) e no permanente sublinhar da sua impossibilidade, do seu eterno diferimento. E é este jogo paradoxal, profundamente enraizado no nosso experienciar artístico-estético ocidental, que nos é devolvido pela litania de nomes inscritos nas paredes. Por isso acabo de desenhar o meu mapa com as próprias palavras que Baumgarten escreve junto dos seus desenhos de parede, «Cascata», 1977, e «Obra do Rio», 1977: