Qualquer abordagem histórica relativa à
arte vídeo terá de salientar, necessariamente, a sua
relação com as outras artes, com destaque para o cinema;
as confluências com a televisão, o objecto de eleição
dos primeiros videastas, entre os quais Nam June Paik e Vostell,
que a manipularam e desconstruiram física e simbolicamente;
e a posterior substituição deste aparelho por instalações,
com recurso à projecção.
Embora, na última década,
Tony Oursler se tenha dedicado à criação de
instalações, e se inscreva já numa segunda
geração de artistas que trabalham o vídeo,
não deixa de atravessar todas estas questões, como
o demonstra a exposição presente no Centro Cultural
de Belém. 1
Para além dos trabalhos em papel, de um primeiro
período mais associado à pintura, patente nas personagens
e cenários em miniatura criados para vídeos destinados
ao pequeno ecrã, encontramos aqui apenas The Loner &
Props (1980), filme que envolve uma narrativa fragmentária
dominada por um anti-herói, que parodia os dramas televisivos
e cinematográficos, sob o fascínio dos quais cresceu
a geração de Oursler. Poucos anos depois, desencantado
com a televisão como objecto, e procurando uma maior empatia
junto do espectador, Oursler abandona-a definitivamente e realiza
instalações com projecções em diferentes
suportes, entre os quais as cabeças dos famosos "dummies",
manequins erguidos em estruturas simples, investidos pela imagem
em movimento de um rosto, e pelo som de estranhas vozes humanas.
Preenchendo a quase totalidade da exposição,
estas instalações demonstram a complexificação
e a força visual de uma linguagem que assenta em quatro características
básicas: recurso à projecção múltipla
sobre "corpos" inanimados; encenação de
mundos onde esses elementos, que remetem muitas vezes para sujeitos
fragmentados, interagem, produzindo um espaço teatral no
seio do espaço existente; acumulação de elementos
visuais e acústicos até à exaustão;
exploração da visibilidade dos mecanismos técnicos,
em que a posição do espectador coincide frequentemente
com a do projector.
Vozes de diferentes proveniências contaminam
a exposição, prolongando no todo a acumulação
sonora inerente a cada instalação. Apelos e gritos
lancinantes de personagens maioritariamente femininas misturam-se
com cantilenas infantis, jogos de linguagem, e delírios fragmentários
de seres perturbados, num cut-up, cujas relações derivam
de ritmos de montagem herdados do domínio audiovisual contemporâneo.
Depressa nos deixamos envolver pela cacofonia dominante
e por uma estética da confusão, que contrasta com
o silêncio imposto pelos desenhos expostos e por uma minoria
de instalações, cuja ausência de som, aliada
a criaturas em situações aflitivas, no interior de
espaços de clausura, contribui fortemente para o desconforto
do espectador. É o caso de Crossed
(1996), em que uma face animada por projecção está
imersa num cubo com água, como que presa num aquário,
ou do corpo feminino de End
(1997) que, projectado sobre uma parede composta por flores artificiais,
a procura atravessar sem sucesso.
Oursler herda do cinema a sua vocação
de documentar o mundo. Conferindo visibilidade aos dispositivos
tecnológicos a que recorre, o artista inverte a história
da projecção, marcada por uma crescente invisibilidade
do dispositivo mecânico. A sua estratégia reside na
verificação da omnipresença da tecnologia,
responsável pela disseminação de ligações
atractivas, de que não se conhecem os procedimentos, e na
procura, como que brechtiana, de esclarecimento desses mecanismos,
que estão na origem dos obscuros poderes dos meios de comunicação.
A multiplicação de personalidades preside
aos seus temas de eleição. Oursler não hesita
em explorar esta disfunção como metáfora da
sensibilidade presente, pautada pelos efeitos dissociativos convocados
pelas estruturas mediáticas e pelas práticas individuais
a elas associadas, entre as quais o zapping, pois é na crítica
dos media, na sua relação com o comportamento humano,
que Oursler centra grande parte do conteúdo de toda a sua
produção artística, partindo sempre do concreto,
do facilmente apreensível, para a generalização.
As suas obras são assim povoadas por "fantasmas"
propensos à criação de duplos. Judy (1994)
baseia-se num estudo médico sobre uma paciente com o mesmo
nome que desenvolvia uma doença definida como síndroma
da personalidade múltipla, e constitui a instalação
mais complexa e interessante da exposição, pois ao
apresenta inúmeros elementos em diálogo: uma pequena
boneca de pano, cuja face é animada por uma imagem que, entre
uma expressão de horror e prazer, grita sucessivamente "No..."
(Horrerotic
doll); vestuário e adereços dispersos
pela sala; um biombo florido onde é projectada uma outra
identidade de Judy associada a uma voz repreensiva (The
boss); uma
figura que profere insultos cuja cabeça é esmagada
por um cadeirão (Fuck
you); a projecção de
um corpo feminino, encolhido como um feto, que roda sobre si mesmo
em silêncio (Spin).
A montagem da peça propicia a disseminação
das múltiplas identidades de Judy no tempo e no espaço
da exposição, apelando a um percurso que envolve um
tempo cinemático, assente na expansão da duração
inerente à imagem projectada, e ao trajecto do visitante,
potenciada pelos elementos sonoros e visuais. O espectador é
ainda convidado a prolongar esta cadeia, numa extensão do
campo da representação artística ao espaço
vivido, mediante um dispositivo de vigilância associado a
um microfone, colocado a um canto da sala (Simulacra), que pressupõe
a interpelação, em tempo real, da voz sem rosto do
visitante a um transeunte, mas que é prejudicado pelo facto
de se encontrar instalado à entrada da exposição,
no interior de um museu, e não no exterior de uma galeria,
como foi pensado.
MMPI
Test Dummy (1993) é outra instalação
onde um manequim, à escala humana, reenvia para a questão
da identidade, ao formular um teste destinado a avaliar as perturbações
de personalidade, a que somos convidados a responder, afirmativa
ou negativamente. Entre cada pergunta, são deixados longos
intervalos propícios à meditação do
espectador. Este princípio da interrupção,
em ruptura com o modelo tradicional da narrativa, é especialmente
visível em Full
Moon (1994), em que o projector vídeo
se acende e apaga, cada vez que é proferida uma frase.
Estas são, assim, obras que privilegiam os
sentidos do espectador e a dilatação do tempo. Apelam
a uma participação multisensorial, à "carnalidade
da visão" (Linda Williams), procurando romper a fronteira
que, no cinema, separa imagem e público. Envolvem um visitante
cuja interacção, assente na possibilidade de circular,
actualizar brechas e traçar opções, ainda é
limitada, próximo do que Raymond Bellour classifica como
o intermitente ou fragmentado frequentador de instalações.
É este espectador nómada que determina a duração
da narrativa e actualiza a ficção, no momento em que
é assaltado pelas imagens, numa estratégia de sedução
de acordo com a tecnologia imposta, associada a uma realidade em
profunda desordem, física e psíquica, que não
poderá deixar de questionar.
São corpos em metamorfose permanente, onde
a integridade (sempre relativa) passa a dar lugar a orgãos
isolados, caso da série de Eyeballs, uma das mais marcantes
de Oursler, de que estão na exposição dois
exemplares - Who's e Trance (1996). Na retina destes olhos vivos
estão gravadas cenas de filmes clássicos, pornografia,
ou publicidade, metáfora do poder de penetração
da televisão no seio do nosso corpo, com a consequente impossibilidade
de desligação.
Em Oursler, a mutação estende-se às
próprias superfícies de projecção, aos
ecrãs. Moholy-Nagy, nos anos 20, sonhou com projecções
múltiplas no ar, na bruma, nas nuvens. Oursler concretiza-o:
falsas
nuvens, luzes, fumo e flores constituem os novos espaços
de inscrição da imagem, semiformas voláteis,
em permanente reconfiguração, que remetem para um
corpo e um mundo efémeros e, por isso mesmo, em transformação.
Uma obra que se enquadra menos na história
das artes plásticas, do que na história da tecnologia
e dos espectáculos fantasmagóricos, que permitiram
que as aparições partilhassem o nosso mundo. Mas se
a lógica da disseminação inerente à
lanterna mágica desapareceu com o advento do cinema, tal
como o conhecemos hoje, será recuperada, anos mais tarde,
não só por Moholy-Nagy, como por Abel Gance, e muitos
outros cineastas movidos pelo desejo de constituição
de uma polivisão. É neste cinema que as instalações
de Tony Oursler encontram afinidades.
Se no universo de Oursler predominam personagens
cindidas psicologicamente, elas sofrem uma dupla fragmentação.
Como afirma Raymond Bellour, num texto incluído no catálogo
da exposição, "a impotência terrível
destes corpos é estarem divididos entre um destino parado
de marionetas e uma vida inatingível da imagem que nos fixa",
o que nos conduz a pensar não apenas a representação,
mas o controlo do espaço mental e a possível extensão
do teatro de marionetas ao mundo.
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