Introdução
No tempo rápido da Internet parece ter sido
há muito, mas foi apenas há cerca de meia dúzia de anos que
se julgou ser possível concretizar um ideal emancipador que
radicalizaria a aspiração, característica da modernidade,
a algo outro e diferente do real existente. É bem conhecido
como os ideais emancipadores surgiram frequentemente no rasto
do aparecimento de novas tecnologias, as quais possuiriam
como singular propriedade a capacidade de contribuírem para
a reformulação da experiência social num sentido ‘melhor’
e de ‘progresso’. Nas suas versões actuais, esse progresso
permitiria à modernidade transfigurar-se em pós-modernidade
e assim realizar o que para alguns parece ser o seu destino:
a eliminação de qualquer exterioridade a indivíduos definitivamente
autónomos e colocados como fonte absoluta de toda a realidade.
Estaríamos agora – ou em meados da década passada - a viver
o momento em que tecnologias com natureza e design
inovador contribuiriam decisivamente para desaparecimento
das últimas exterioridades que a modernidade ainda não teria
destruído. É de facto um novo movimento ideológico, resultando
da emergência e desenvolvimento das múltiplas redes de computadores
redes de computadores que se foram federando em terno da rede
de redes Internet, que surgiu como um dos traços marcantes
da década de noventa.
Apesar de hoje persistir, o apogeu do movimento
terá atingido o seu apogeu em meados da década de noventa.
Nada de completamente acidental nessa data, visto que a corrente
de pensamento genericamente designada por cibercultura ter
sido não apenas uma consequência mas sobretudo uma resposta
viva à arquitectura específica que a Internet possuía
nessa altura. Recorde-se: a federação das redes de computadores
fez-se com base em standards abertos e públicos (caso
do TCP/IP, por exemplo) que não constrangem nem diferenciam
as inúmeras aplicações que para eles foram sendo concebidas.
Paralelamente, as diversas redes de computadores foram-se
desenvolvendo de forma imprevisível e com (quase) completa
ausência de regulação exterior. Após a criação de redes utilizadas
sobretudo por cientistas, começaram a surgir os mais variadas
tipos de novas redes, com variados graus de descentralização.
Nos finais dos anos setenta e anos oitenta multiplicam-se
as BB´s e redes como a Usenet, e depois a Web (cf. Machuco
Rosa, 1998). Desenvolvendo-se de forma espontânea, a rede
de redes Internet começa então a orientar-se para a comunicação.
Surgem inúmeras ‘comunidades de comunicação’, e o livro que H. Rheingold publicou em
1993 permanece uma das suas descrições mais vivas da sua evolução.
Esse livro será aqui um dos nossos pontos de referência.
>A ideologia das Comunidades de Comunicação
A emergência espontânea de redes muitas vezes
com arquitecturas bastante descentralizadas proporcionou portanto
o surgimento da comunicação mediada por computador (CMC).
Resultou daí o multifacetado movimento da cibercultura
juntamente com um tipo de ideologia que lhe é específico.
Essa ideologia conjugou ‘organização espontânea’, ‘comunicação’
e ‘desencarnação’, resultando na concepção das redes de computadores
como um instrumento permitindo a construção de um novo ‘espaço
de liberdade’ que seria necessário preservar.
Esse novo tipo de espaço foi designado por
espaço cibernético. As suas caracterizações são diversas,
e neste artigo procuramos analisar algumas das mais relevantes.
Uma de entre elas foi insistentemente sublinhada pela cibercultura
durante a década de noventa. Para além do livro de Rheingold,
ela foi sublinhada pelos textos originados na Electronic
Frontier Foundation (EFF) na primeira metade dos anos
noventa, e que podem ser obtidos em http://www.eff.org.
É aí que se começa a delinear uma definição geral de espaço
cibernético, e segundo a qual esse tipo peculiar de espaço
se caracteriza por ser apenas fluxo de informação, sendo mesmo,
o que não é pouco, ‘uma paisagem diferente de qualquer outra
que a humanidade já tenha experienciado. É a Terra-Mãe da
Idade da Informação’. Uma tal novidade não poderia deixar
de trazer consigo mudanças radicais.
O espaço cibernético é apenas informação no
sentido de se tratar verdadeiramente de informação desencarnada.
O tema da informação desencarnada é recorrente na cibercultura,
e ele decorre da ilusão de se julgar que do facto de se puderem
simular inúmeros fenómenos em computador se segue que ‘simulação
computacional’ e realidade física são a mesma coisa; logo,
‘tudo é digital’. Trata-se de uma ilusão que aqui não é importante
esclarecer, pois, visto do ponto de vista da CMC, o tema da
informação desencarnada aponta igualmente numa outra direcção.
A comunicação mediada por computador é desencarnada por, muito
simplesmente, ela se processar sem interacção física entre
os indivíduos. Para a cibercultura, esse facto teria consequências
decisivas. Ele geraria a possibilidade de surgir aquilo que
se poderá chamar uma espécie de comunicação pura, no
sentido em que, sendo completamente desencarnada, a comunicação
não sofre dos inúmeros constrangimentos inerentes à comunicação
acompanhada por certas marcas visíveis que distinguem e diferenciam
os indivíduos. Será de facto assim? H. Rheingold torna claro
o que se encontra aqui em jogo:
Visto não nos pudermos ver uns aos outros
não podemos formar preconceitos acerca dos outros antes
de lermos aquilo que eles têm para dizer: raça, idade, nacionalidade
e aparência física não são visíveis a não que uma pessoa
as deseje tornar públicas. (Rheingold, 1993, p. 422)
Não existindo comunicação face a face, ou mediada
por um outro meio que retenha os constrangimentos da comunicação
face a face, a CMC eliminaria os constrangimentos e marcas
sociais que tipicamente existem na comunicação veiculada por
outros meios. Ela contribuiria para eliminar a exclusão dos
excluídos, e Rheingold vai mesmo ao ponto de afirmar que as
dificuldades comunicativas com o telefone miraculosamente
desapareceriam se o meio utilizado fosse a CMC. Uma tal posição
pressupõe uma ideia comum a muitos dos autores que tematizaram
o conceito de espaço cibernético: a ideia segundo a qual existe
um certo tipo de tecnologias, a Internet neste caso, que determina
automaticamente um certo estado de coisas que à partida
já se supõe ser ‘melhor’, ‘socialmente melhor’. Essa pressuposição
deverá ser analisada através de várias vertentes, mas aqui
ela envolve adicionalmente a ideia segundo a qual uma comunicação
pura, desencarnada, é necessariamente boa e melhor.
O raciocínio parece ser o seguinte: se existe
um tipo de comunicação em que as interacções físicas não existem,
no qual a única realidade é o fluxo de informação,
então a comunicação é ‘boa’. Ela é ‘boa’ exactamente porque
aquilo que torna a comunicação ‘má’, isto é, tudo aquilo que
torna as interacções entre os indivíduos ‘más’, tudo aquilo
que releva das inúmeras pressões dos indivíduos uns sobre
os outros, pertence ao domínio - ontologicamente distinto
do domínio da informação - da realidade física. Numa tal visão
supõe-se que, sendo pura comunicação, os indivíduos atingiriam
finalmente um ideal civilizacional mais elevado. Essa ideias
não tem de estar necessariamente associada a um meio como
a Internet. Ela encerra uma Metafísica da Comunicação.
A Internet torná-la-ia definitivamente clara e efectivamente
real. A Internet seria um acelerador de uma natureza humana
activamente virada para o exterior: ligados à rede, os indivíduos
não se encerrariam sobre si próprios, mas participariam permanentemente
numa exterioridade colectiva comunicativa. Assume-se portanto
que quando um indivíduo está comunicativamente virado para
o exterior ele não está virado sobre si próprio e sobre
as suas paixões tendentes a negar o outro. Esse ponto de partida
é evidentemente muito problemático.
Tal como os proponentes da tese de que ‘tudo
‘é digital’ estão implicitamente a sustentar uma Metafísica
da Informação, também os defensores da ideia de que a
comunicação sem interacção física é algo bom estão de facto
a assumir e a defender uma metafísica. Eles estão a sustentar
que, sem interacção física, a comunicação se torna ipso
facto impessoal, que ela se torna uma pura exterioridade
a qualquer indivíduo. Nesse ideal comunicativo, e visto serem
apenas seres comunicantes, os indivíduos estariam totalmente
virados para o exterior, elidindo-se a si mesmos enquanto
indivíduos histórica e socialmente situados no reino da suas
paixões. Num movimento que veremos ser típico em diversos
teorizadores da cibercultura e do ciberespaço, parte-se da
afirmação da individualidade completa exprimida pela comunicação
para se caminhar em direcção a uma espécie de comunitarismo
mais ou menos explícito. Mas naturalmente que posições como
as de Rheingold são literalmente metafísicas.
Em primeiro lugar, devido a uma essência
supostamente possuída pelos indivíduos. Ver-se-á mais adiante
que o raciocínio é idêntico no que respeita às tecnologias.
Agora, escrever ‘essência’ significa que certos conceitos
possuem uma natureza tal que os torna uma espécie de atractor
para os quais as acções terão necessariamente de convergir
num movimento gerador de unanimidade. Assim, ‘comunicar’ seria
como que um ponto fixo estável e dotado de uma realização
única, jamais um ponto fixo instável que admitiria pontos
múltiplos de estabilidade. Noutros termos, ‘comunicar’ seria
um processo decidível que teria de ser necessariamente
bom. Mas não se poderá dar o caso de ser essa própria ideologia
que surge como o verdadeiro ponto fixo atractor de opiniões?
Esse primeiro ponto encontra-se associado a
um segundo pois, segundo esse tipo de ideologia, o indivíduo
comunicativo completamente virado para o exterior é literalmente
um anjo, entidade de facto completamente desencarnada.
Que a posição de Rheingold envolve uma assunção extremamente
problemática torna-se mais claro se se aduzir a observação
empírica de acordo com a qual uma sociedade em que a comparação
entre os indivíduos se baseia cada vez menos em ordens exteriores
a todos eles, se baseia cada menos em certos indícios efectivamente
físicos, torna-se de facto uma sociedade baseada em sinais
comunicativamente mediados. Só que a consequência pode ser
que quanto mais os indivíduos interagem apenas pela comunicação
mais as comparações entre eles, e mais as comparações
por relação a terceiros, se tornam dominantes. O aumento da
transparência comunicativa de que a Internet seria
uns dos factores pode estar ligado a uma maior visibilidade
das diferenças com o consequente aumento das comparações entre
os indivíduos. A ser assim, temas recorrentes da cibercultura,
como a possibilidade do anonimato existente na CMC,
em vez de relevarem de uma lógica de autonomia individual
relevam de uma cada vez mais intensa comparação e pressão
dos indivíduos uns sobre os outros. Não surpreende pois que
o relato daquilo que efectivamente se passa ‘nas comunidades
de comunicação’ de muitas sub-redes da Internet seja muito
diferente do ideal de que Rheingold fala[1] . É um outro ponto fixo que se observa, não o ponto fixo ‘bom’.
Mas não se está a sugerir que a convergência tenha de ser
para o ‘mau’: neste artigo sustentaremos que certos conceitos
e certas tecnologias são em si mesmas em indiferentes a um
‘social bom’ ou ‘social mau’. Eles são instáveis.
A deriva comunitarista
Os primeiros teorizadores do conceito de espaço
cibernético sublinharam incessantemente que as novas tecnologias
representam a possibilidade de realizar mais plenamente o
ideal moderno de indivíduo livre e autónomo. No entanto, isso
não implicaria a inexistência de qualquer laço comunitário.
Pelo contrário, muitos textos salientam ser precisamente a
partir de indivíduos livres e comunicantes que emergiriam
comunidades; emergiria um laço social comunitário completamente
imanente aos indivíduos. Segundo a Electronic Frontier
Foundation, emergiriam Comunidades caracterizadas, (i),
pela absoluta liberdade de informação e, (ii), com as restrições
ao ponto (i) a serem determinadas de forma imanente pelos
indivíduos. É (era?) mote da EFF: as comunidades on-line
devem ter o direito de estabelecer os seus próprios standards
de regulação.
As comunidades basear-se-iam em indivíduos
interagindo comunicativamente e localmente uns com os outros,
supondo-se que essas interacções gerariam por auto-organização
um todo comunitário. Mais abaixo, ver-se-á como essa ideia
se encontra associada às características tecnológicas de uma
rede como a Internet. Mas a existência de ‘todos comunitários’
depende igualmente da tese segundo a qual a informação é intrinsecamente
algo público, tal como os múltiplos indivíduos puramente
comunicativos que a geram se reduziriam a um ‘espaço público
de discussão’ (tema recorrente em Rheingold, que o vai buscar
a Habermas). E se a informação é por natureza pública ela
não pertence a nenhum indivíduo[2]
. Tal seria particularmente verdade no que respeita à
informação sob forma digital. É uma concepção que reflecte
a metafísica da informação presente na completa dualidade
entre corpo e informação: como a informação é completamente
autónoma do mundo físico, ela é uma entidade platónica
supra-individual que não possui qualquer conexão com os indivíduos
corpóreos que a criaram.
Uma consequência bem precisa resulta dessa
metafísica: não deverão existir leis de propriedade intelectual,
em particular as leis aplicáveis ao software. É assim
que um dos maiores difusores do conceito de Ciberespaço, John
Perry Barlow, argumentou que, devido à tecnologia envolvida,
a qual permite a duplicação ad infinitum, as leis de
copyright não possuiriam qualquer aplicabilidade. Seria
pois a tecnologia a impor uma certa alteração para ‘melhor’
do social. Na realidade, essa constrição tecnológica estaria
de acordo com os princípios decorrentes do facto de o software
ser apenas constituído por ‘ideias supra-individuais;
são ideias que passam de indivíduo para indivíduo e de cultura
para cultura sem possuírem versões autenticadas’[3], pela que a dicotomia informação/realidade física
faz igualmente alterar a ordenação dos direitos de propriedade.
Teremos de voltar a rever a questão da publicidade do código
fonte do software, mas no presente contexto o platonismo
de Barlow atesta de forma inequívoca que o movimento da cibercultura
tem sempre implícita a tendência para um certo tipo de comunitarismo.
Aplicado à questão dos direitos de copyright sobre
o software, o princípio comunitarista envolve um paralogismo,
pois se se começa por supor que a única realidade se encontra
nos indivíduos autónomos propõe-se de seguida que nenhum indivíduo
tenha direitos de propriedades intelectual. Mas note-se que
uma tal proposta não emerge de qualquer ‘contrato social’
que livremente os indivíduos estabeleçam entre si. Ela apenas
pode surgir como uma imposição exterior aos indivíduos,
isto é, através de algo exterior às interacções reais entre
os indivíduos e que acaba por as substituir.
Devemos esclarecer melhor as afirmações anteriores.
As posições ‘liberais’, ‘anarquistas’, ‘individualistas’ dos
activistas on line tendem a inflectir para uma espécie
de comunitarismo que salienta a importância dos ‘todos’ nos
quais que todos os indivíduos seriam iguais. Parte-se assim,
por um lado, do conceito de indivíduo absolutamente livre
e autónomo; por outro lado, o conceito de ‘informação pública’
e de ‘ideia platónica’ salienta realidade dos ‘todos’. Talvez
que esses autores não tenham detectado aí qualquer contradição.
Ou talvez, como parece ser a posição de Rheingold, se suponha,
talvez com a ajuda de um qualquer automatismo tecnológico,
que a realização ética individual coincide com o ponto
de vista comunitário. O problema consiste obviamente na
eventualidade da premissa ética não se verificar, podendo
então existir um conflito com o ponto de vista comunitário
que à partida foi assumido. E se esse conflito existir, pode
julgar-se que deverá ser a Comunidade supostamente emergente
dos acordos individuais - mas que na realidade é uma entidade
platónica supra-individual – a decidir a ética a ser seguida
(por exemplo, não receber dinheiro pela sua propriedade intelectual,
precisamente...). E a única coisa certa é que, no mundo digital
ou não, essa comunidade platónica será na realidade formada
por indivíduos.
Mais profundamente, existe aqui um paralogismo.
Para que o conceito de ‘informação pública’, de ‘indivíduo
comunicante’ completamente virado para o exterior, não dissolva
completamente a ideia de indivíduo autónomo, para que individualismo
e comunitarismo possam de algum modo ser compatíveis, tem
de se supor que o todo emerge das tocas individuais
e livres de informação sem no entanto deixar de estar também
completamente presente em cada consciência individual.
Os activistas on line não encontravam essa possibilidade
de reconciliar ‘indivíduo’ e ‘comunidade’ apenas no exemplo
das comunidades on-line da Internet. Eles também se
inspiraram explicitamente nas novas ciências da complexidade
e da auto-organização[4].
Ora, essas teorias mostram que a emergência de ‘todos’ tem
características bem diferentes das acabadas de referir. Elas
mostram como, efectivamente e em muitos casos, a interacção
local e não linear de um grande número de elementos faz emergir
uma regularidade ou ordem global (um ‘todo’). Só que a aplicação
dessa ideia a sistemas sociais torna perfeitamente claro que
o todo jamais está presente em qualquer consciência individual;
ele é o efeito não intencional de cada consciência individual
e apenas pode ser representado por algo que se torna exterior
às interacções locais dos indivíduos. A ordem global não é
recapitulável, nem pode ser antecipada, por qualquer
consciência individual; do ponto de vista das consciências
individuais, não existe qualquer garantia de convergência.
De forma rigorosa, pode-se dizer que, nas estruturas auto-organizadas
e acentradas, apenas as acções locais são reais; já o todo
pode ser considerado, por relação às acções reais, uma entidade
virtual, jamais representável a partir de um ponto de vista
local do sistema. A emergência do ‘todo’ não resulta aí de
qualquer ‘sentimento do todo’ ou Eu colectivo existente em
cada indivíduo, e menos ainda produz necessariamente algo
mais ‘eficiente’ e ‘melhor’ (cf. C. Alves, Machuco Rosa e
A. Antão in Interact,http://www.cecl.pt/interact/index.html
para a análise detalhada de um exemplo). Isso mostra que o
paralogismo implícito nas ideias de organizações como a EFF
consiste em tornar imanente a cada indivíduo aquilo que, de
acordo com o modelo, lhe é transcendente, não representável.
Operando o paralogismo, os níveis ‘comunidade’ e ‘indivíduo’
tornam-se então ambos identicamente reais. Insensivelmente,
o acentrismo típico da cibercultura procede a uma singular
inversão das perspectivas. É como se, novamente, uma certa
visão a priori de uma totalidade devesse determinar
os comportamentos locais (não existir propriedade intelectual,
ou certas e muito particulares normas de ‘etiqueta’ e de ‘ética’
existentes em muitas sub-redes da Internet), num movimento
que se torna uma ideologia global, com todas as possíveis
consequências decorrentes de qualquer tipo de ideologia.
Dimensões Políticas do Ciberespaço
Na acepção até agora considerada, o espaço
cibernético foi considerado como um espaço de comunicação
mediada por computador e a partir da qual é suposto emergir
um todo comunitário. Mas o conceito de espaço cibernético
possui um sentido um pouco mais preciso quando se coloca em
destaque a sua dimensão explicitamente política. Um
dos maiores méritos da EFF foi ter sido talvez a primeira
organização a pensar esse novo tipo de espaço político, bem
como as limites de aplicação de alguns conceitos jurídicos
nesse novo ambiente. Algumas das propostas que a EFF defendia
no início dos anos noventa são ainda hoje em excelente ponto
de partida para a discussão da regulação das redes de computadores,
como sucedia quando a organização defendia que a Internet
devia seguir ‘o modelo de uma plataforma aberta que seja
uma infra-estrutura global de comunicação e que forneça acesso
não discriminado, baseado em standards abertos, privados,
e livre de regulação asfixiante’.
Esse tipo de posições era, como sempre, acompanhado
pela ideologia que julga ver numa tecnologia como a Internet
o mecanismo capaz de eliminar definitivamente qualquer exterioridade
aos indivíduos. Uma dessas exterioridades seria o Estado-Nação
e os seus diversos governos.
Por exemplo, um dos membros da EFF escrevia:
...o mundo electrónico,
concebido para resistir a um ataque nuclear, pode igualmente
ser indiferente à regulamentação governamental. Devido ao
seu alcance global e ao seu design descentralizado ele não
é policiável. (John Gilmore)
O raciocínio era o seguinte. O algoritmo de
transmissão da informação digitalizada através das redes de
computadores, o package-switching, foi
criado por P. Baran nos anos sessenta. Visto tratar-se
de um algoritmo acentrado e distribuído, que não supõe a existência
de um ponto central de controle por onde a informação tem
de passar, a possibilidade de controlo por essa entidade supostamente
transcendente aos indivíduos (o governo) não existiria. Obviamente
que o raciocínio é falacioso, porque mesmo se o package-switching
é um algoritmo acentrado, isso não impede que o controle não
possa ser feito no nível superior dos protocolos da rede.
Mas deixemos por agora esse ponto de lado. O importante é
que as redes de computadores fariam com que ‘o governo se
torne obsoleto pelo carregar no botão, pela democracia interactiva
que uma Plataforma Aberta poderá criar (Esther Dyson, in Wired, Maio de 1995).
Temos pois a dualidade entre dois espaços, uma dualidade
mais uma vez paralela à dualidade informação /realidade física.
Um, o espaço territorial governado e delimitado pelo Estado-Nação.
O outro, o espaço cibernético, que seria a ‘Terra-Mãe da Informação’
e que escaparia ao controlo dos Estados. Como os textos da
EFF produzidos nessa época atestam, existia a clara consciência
de uma possível ‘colisão
entre a Sociedade e o Espaço Cibernético’. Contudo, a ideia de base
era que, devido à sua arquitectura
tecnológica,
a Internet impediria que a ‘sociedade territorial’ controlasse
o espaço cibernético – se existisse, esse controle significaria
muito precisamente o desaparecimento do próprio conceito de
espaço cibernético.
Não seriam apenas a características
do design do espaço cibernético que não o tornariam policiável. Como a citação de J. Gilmore refere, a sua natureza ‘libertadora’ decorreria
igualmente do seu ‘alcance global’, isto é, o espaço cibernético
é por natureza transterritorial. Ele passa ao lado da fonte
ancestral de ordenamento jurídico, o conceito de território
físico limitado por certas fronteiras com realidade legal.
Obtemos agora uma definição mais precisa do espaço cibernético:
ele consiste em interacções não físicas com um alcance global
e não segmentadas por fronteiras territoriais.
Não interessa fazer críticas
fáceis a estas posições. Deve voltar a sublinhar-se que o
conceito de espaço cibernético está longe de ser uma ilusão.
Ele coloca questões bem precisas acerca do quadro normativo
e legal delimitando o número crescente de actividade que se
desenrolam via redes de computadores. As posições EFF traduzem
uma experiência efectiva e uma situação real da rede que em
larga medida ainda é a actual.
No entanto, a crítica tem novamente de ser levada a
cabo, se bem que por outras vias. Desde logo, e como já se
referiu, afirmar-se que a Internet passaria ao lado da ‘sociedade
territorial’ devido à natureza do package-swithing
não faz evidentemente muito sentido, pois, a existir ou
não controlo, ele deverá começar a processar-se ao nível dos
protocolos que se tornaram standards da Internet,
a começar pelo actualmente standard de base, o TCP/IP.
Mais exactamente, se situarmos a questão do controlo no seu
nível correcto, o dos protocolos, é importante ver que as
posições iniciais da EFF podem ser descritas como essencialistas e não evolutivas.
Essas posições são estritamente paralelas à ‘metafísica das
essências’ e da ‘natureza intrinsecamente comunicante’ de
Rheingold.
Isso é claro se retivermos da citação de Gilmore a ideia geral que a arquitectura
da Internet possuiria certas características intrínsecas,
essenciais, necessárias, que tornariam o controlo impossível.
A ausência de controlo seria uma consequência inevitável de
automatismos tecnológicos. Mas, como L.
Lessig sublinhou insistentemente, a arquitectura específica
da Internet até, digamos um tanto arbitrariamente, 1995, nada
tem de necessária. Desse ponto de vista, o erro da ideia
expressa por Gilmore e partilhada por muitos outros (cf. as
citações na compilação feita por Joseph Reagle) reside em supor
que a arquitectura da Internet em 1995 (ou mesmo ainda hoje)
é algo dado, uma sua natureza intrínseca que jamais poderá
ser de outra forma. Se assim fosse, se essa arquitectura
fosse necessária, poder-se-ia sustentar em parte (mas apenas
em parte, pois cada computador ligado à Internet possui um
endereço IP, o qual permite relacionar essa máquina com o
seu utilizador, e assim possibilitar algum controlo sobre
as actividades que este leva a cabo) que a Internet poderia
determinar aquilo que se assume à partida ser um processo
de emancipação.
Só que a premissa é falsa. Não existe nada de ‘dado’ na arquitectura da
Internet. Recordemos que essa arquitectura se baseia em protocolos
abertos e públicos, entre os quais o TCP/IP ou o HTTP. O acesso
à rede também foi, durante bastante tempo, completamente aberto,
não regulamentado. Mas nada obrigou a que, por exemplo, o
TCP/IP tivesse as características que permite que a Internet
seja uma rede aberta. Esse resultado foi uma consequência
de uma decisão explícita dos designers
da rede. Esse ponto é fundamental pelo que devemos esclarecê-lo
melhor.
O que caracteriza as tecnologias da informação? Existe muita ambiguidade
a esse respeito, e muita dela é devida à própria ambiguidade
da palavra ‘informação’. Podemos propor aqui não tanto uma
nova definição mas o que pode ser considerada uma característica
marcante das tecnologias da informação. Pela menos em parte,
ela pode servir como um critério de demarcação das tecnologias
da informação face às tecnologias
da matéria e da energia. É aproximadamente rigoroso, pelo
menos num sentido relativamente restrito, afirmar que as tecnologias
da informação são constituídas por software, o qual pode ser
implementado em máquinas. Isso distingue-as das tecnologias
da matéria e da energia – mas naturalmente que não estamos negar que estas possam vir a incorporar
cada vez mais software, como certamente continuará suceder. Essa distinção
pode estar associada a uma outra. As tecnologias da informação
envolvem valores socio-políticos como uma sua
possibilidade intrínseca. Escrevemos ‘intrínseca’ para
sublinhar o facto de esses valores poderem estar presentes
na própria concepção da tecnologia. Eles estão literalmente
nela escritos. Estão escritos no seu código fonte. Aí podem ser escritas coisas.
Valores. O design de uma rede envolve conjuntos de
valores.
Quando
se afirma que as tecnologias da informação envolvem intrinsecamente
valores no seu design
não se está a recair no essencialismo tecnológico, pois daí
não se infere logicamente que tipo de valores elas envolvem. Elas
envolvem a possibilidade indeterminada de valores mas não
envolvem necessariamente este ou aquele valor específico.
São instáveis por relações a valores específicos. Esse
ponto constitui uma refutação directa daqueles que afirmam
que uma tecnologia como a Internet envolveria intrinsecamente
certos valores que gerariam um certo tipo de sociedade. Esses
valores estariam inscritos, por exemplo, no TCP/IP. O TCP/IP
parece não envolver valores, mas na realidade envolve-os.
Envolve-os, utilizando um termo de informática perfeitamente
adaptado ao presente contexto, por default.
O TCP/IP é um standard
aberto completamente indiferente à natureza específica
da informação que corre sobre ele. Ele não distingue as aplicações
específicas que correm sobre ele. O TCP/IP apenas permite
que as máquinas comuniquem e troquem bits entre si,
qualquer que seja a arquitectura específica que estes possuam.
Mas a própria arquitectura do TCP/IP não é uma sua característica
intrínseca, necessariamente dada. Quanto o conceberam, os
engenheiros informáticos poderiam perfeitamente ter escrito
o seu código de forma a, por exemplo, filtrar um certo tipo de informação. As possibilidades são imensas.
Isso não sucedeu porque pessoas como Robert Khan (um dos criadores
desse protocolo) não quiseram. Portanto, quando se afirma
que tecnologias da informação como a Internet envolvem valores
não se quer dizer que eles foram lá postos por Deus, ou que
eles são uma sua natureza ‘automática’. Existem decisões
que determinam a arquitectura da rede, e se a rede garante
ou não a ausência do controlo isso não se deve a qualquer
automatismo tecnológico mas sim às decisões que previamente
foram tomadas. São os valores nelas envolvidos que determinam
a arquitectura, e não a inversa. Um dos fundadores da EFF
escreveu:
‘Architecture is politics.’ M. Kapor
O que capta efectivamente um ponto essencial,
mas que pode equivocar se não se mantiver presente a instabilidade
das arquitecturas baseadas em software, isto é, se
se supuser que os valores escritos no código têm de ser
necessariamente de um certo tipo. A EFF parece não se ter
apercebido que estava a falar da Internet com o tipo
de código que determinava a rede em 1995 (e em larga medida
ainda determina hoje). Mas nada obriga a que a rede mantenha
essas características de abertura e livre acesso. O código
pode ser mudado, podem ser escritos e adaptados novos protocolos,
pode ser escrito novo código por cima dos protocolos existentes.
E isso pode modificar a arquitectura da tecnologia tal como
L. Lessig insistiu. Pode-se efectivamente
sustentar que, devido a um conjunto de pressões, tais como
a necessidade em resolver o problema da gestão do recurso
relativamente escasso que são os endereços IP, ou então devido
a razões comerciais (por exemplo, a partilha de receitas entre
os múltiplos IPO’s por onde uma mensagem passa) se desenvolverão
novos protocolos, como, por exemplo, o actual projecto IPV6
[actualmente o IP é IPV4]. Por outro lado, nada impede que
comecem a surgir cada vez mais programas que, de forma invisível,
obtêm um considerável informação sobre os utilizadores. Os
exemplos poderiam ser multiplicados.
Conclui-se portanto ser um equívoco sustentar que as
tecnologias, em particular as tecnologias das redes de computadores,
possuem uma natureza que se propagam automaticamente para
uma certa concepção do social.. É como se os defensores de
uma tal perspectiva ‘libertadora’ se deixassem capturar por
uma exterioridade no exacto momento em que estão animados
pelo desejo de negar qualquer exterioridade. Na verdade, se
a tecnologia imporia o desaparecimento de uma ordem transcendente
aos indivíduos, é a própria tecnologia, na medida em que é
automática e independente da vontade de qualquer um, que surge
como uma nova fonte de ordem exterior. A crença é que
essa exterioridade tem na sua natureza a convergência para
um ponto fixo estável único, o qual é ‘bom’. Mas já se viu
que nada o garante, pois as tecnologias são, no que à estrutura
social diz respeito, instáveis.
O Estado perante o espaço cibernético
Para terminar este percurso através de algumas das
ideias força da cibercultura acerca do espaço cibernético
retornemos à questão do Estado. Ela pode agora ser abordada
referindo sumariamente que uma análise detalhada da questão
dos standards característicos das tecnologias da informação
mostraria que eles estão sujeitos ao princípio designado por
externalidades em rede, segundo o qual o valor de uma rede
aumenta exponencialmente com o número dos seus utilizadores.
Esse princípio foi teorizado rigorosamente por W.
Brian Arthur, e como o caso Microsoft
versus USA mostra, a sua dinâmica induz quase
inevitavelmente a formação de monopólios. Visto à luz da ideologia
difundida durante a década de noventa a propósito desse tipo
de tecnologias é um resultado que não pode deixar de surpreender!
Assim sendo, os standards deverão ser públicos, e não
detidos por uma empresa privada? (Recorde-se de novo a polémica
em volta do Windows.) Mas quem o garante? Quem regula? Recordemos
a parte final da citação de J. Gilmore
Devido ao seu alcance global e ao seu design descentralizado [a Internet]
não é policiável.
O que coloca em definitivo a questão do Estado versus
Internet. Devido ao seu caracter transterritorial e transnacional
a Internet não poderia ser controlada por qualquer Estado
específico. Está aqui pressuposta não apenas uma visão essencialista
das tecnologias mas também uma visão essencialista e a-histórica
da evolução do Estado. Também a natureza do Estado-Nação que
se consolidou no século XX nada tem de necessária. Mais exactamente,
o percurso evolutivo que, durante séculos, levou à figuração
actual do Estado-Nação é ele próprio um excelente exemplo
de um mecanismo de retroacção positiva desembocando na formação
desse monopólio específico a que se chama ‘Estado’ e que acabou
por abarcar a quase totalidade de cada vida quotidiana. É
nesse contexto que faz sentido falar em standards públicos.
A intervenção do Estado como regulador seria necessária a
fim de garantir carácter aberto e público dos standards
da Internet, garantindo não apenas valores como as da privacidade
mas igualmente a continuação da inovação necessária ao desenvolvimento
das redes de computadores.
Mas que tipo de Estado? O Estado é um monopólio, e
a ideia dos primeiros activistas on line era que ele
não poderia estender esse monopólio à Internet. Pois, a ideia
é sempre a mesma, existiriam tecnologias que não o permitiriam.
Por exemplo, a criptografia. Segundo o cyberpunk
Tim May, autor do ‘manifesto Cripto-Anarquista’ e da Black Net, a criptografia tem um alcance social bastante vasto pois ‘alterará
de modo fundamental a natureza das empresas e da interferência
do governo nas transações económicas’[5]. Ela garantiria esse ideal
que é o anonimato completo. É portanto certo que o
Estado procurará deter a difusão dessa tecnologia. Contudo,
segundo May, trata-se de uma causa perdida, pois a ‘cripto
anarquia’ é inevitável; mesmo se ‘não existe qualquer hipótese
de ela ser implementável pelos políticos’, ‘ela será implementável
pela tecnologia ela própria, o que já está sucedendo’[6], isto é, certos mecanismos tecnológicos
conduzirão automaticamente a uma alteração ‘boa’ do social,
levando a que ‘os Estados-Nação, as leis de exportação, as
leis de patentes, as considerações de segurança nacional e
outras que tal sejam relíquias da era pré-cibernética’[7].
De certeza? Se algo que a análise da evolução da natureza
do Estado mostra é que em média o número de ‘estados’ diminuiu,
fenómeno no entanto acompanhado por um aumento do alcance
geográfico e funcional de cada um. Como se referiu, o Estado
consolidou-se como um monopólio cada vez mais abrangente.
Ora, é efectivamente verdade que uma rede transnacional como
a Internet coloca novos desafios ao velho Estado-Nação. A
regulação dos protocolos da Internet tem sido levada a cabo
por organizações não governamentais tais como o W3W.
Um conjunto de factores pode levar a que a situação se altere.
Por outro lado, não é crível que a criptografia se desenvolva
inteiramente segundo as linhas defendidas por May. Não é crível
que, como de facto vem sucedendo, o Estado deixe de produzir
legislação aplicável à Internet. Mas como a Internet é efectivamente
uma rede global muita da legislação e intervenção dos Estados
terá ser concertada, e isso permitir-lhes-á manter o poder
e o monopólio. Os Estados cooperarão entre si. Avaliada
desse ponto de vista, a Internet será apenas mais um factor
que impele os Estados a formarem cartéis, começando
por cartéis regionais. Aos desafios da chamada ‘globalização’
responde-se com a emergência de instituições elas próprias
com um alcance funcional cada vez mais global. Pois se diversos
monopólios vêm o alcance do seu raio de acção em risco, a
tendência inevitável é que eles se associem formando um monopólio
ainda maior. A ser assim, e de acordo com alguns dos pontos
salientados pela EFF, mas num sentido completamente oposto
ao que a organização esperaria, a Internet cumprirá de facto
o seu papel de agente de mutação social e política.
[1]
Cf., por exemplo, o relato de humdog, ‘pandora’s cox: on community in
cyberspace, in
P. Ludlow (ed.), High Noon on the Electronic Frontier, Mit
Press, Cambridge, 1996, pp. 437-444.
[2]
J. P. Barlow termina um texto fundamental, referindo que “the thoughts
in it have not been ‘mine’ alone (aspas no original) (J.
P. Barlow,, ‘Selling Wine without Bottles: The Economy
of Mind on the Global Net’ in P. Ludlow (ed.), High Noon on the Electronic Frontier, Mit
Press, Cambridge, 1996., p. 34)
[4]
Cf.., pr exemplo, K. Kelly, Out
of Control, Wesley, Reading, 1995.
[5]
Tim May, ‘Introduction to the Black Net’, in P. Ludlow (ed.), op. cit., p. 238.
[7]
May, Ibidem, , p. 241.
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