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  O bom uso das formas - Dieter Rams na Experimenta Design

  [ Victor Flores ]

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Foi na empresa Braun AG de Kronberg que desde meados dos anos 50 o designer alemão Dieter Rams conseguiu contrapor à tendência nipónica de complexificar os aparelhos uma filosofia de simplicidade, funcionalidade e modularidade que viria a ser também por si aplicada ao mobiliário da marca Vitsoe. É a todo este universo cujo modus operandi se pautava pela fórmula "O bom design é tão pouco design quanto possível" que somos confrontados na Dieter Rams Haus, a segunda co-produção do CCB/Museu do Design com a edição 2001 da bienal internacional experimenta design que elegeu precisamente como tema para as suas iniciativas nas áreas de projecto, design e criatividade o conceito "modus operandi".

Com a curadoria do designer Miguel Vieira Baptista, a "Casa Dieter Rams" resulta de uma cuidada simulação do ambiente doméstico de uma casa com entrada, sala, cozinha, casa de banho e atelier, devidamente equipados com os móveis Vitsoe e com os electrodomésticos Braun, tanto da autoria de Dieter Rams como de outros designers que com ele desenvolveram produtos nestas empresas. A ideia deste modelo de exposição prende-se directamente com o facto dos produtos de Rams- de secadores de cabelo e balanças de casa de banho a misturadoras de cozinha e aparelhos de som e imagem- serem claramente de natureza doméstica. Por outro lado, a expressão "Casa Dieter Rams" pode muito bem combinar-se com "Casa de Dieter Rams", e neste caso o contacto com as suas obras numa casa simulada poderá sempre evocar o uso em privado e o convívio diário com estas peças que o próprio designer adoptou na sua casa de Kronberg como forma de testar a sua fruição e funcionalidade.

É nesta medida que a própria experiência da visita a esta casa poderá funcionar como uma miragem dos aparelhos e electrodomésticos que começamos a deixar de ter. Isto porque é cada vez mais comum verificarmos que muitos dos objectos de uso doméstico instalados em nossas casas tendem a descurar a famosa fórmula moderna do bom design, quer porque nos oferecem novidades e virtuosismos gratuitos submetendo a forma do produto aos inumeráveis botões da high tech, quer ainda porque a operacionalidade das suas funções mais elementares faz-se carecer de livros de instruções, de visitas ao lar de demonstradores profissionais e, entre outros recursos, de disquetes de softwares com as FAQs (Frequently Asked Questions). Em grande parte dos casos não só não conhecemos na integridade grande parte das máquinas que temos em casa, como podemos cada vez menos fazer depender o seu bom uso da sua "boa forma".

Parte deste processo tendeu a agravar-se a partir do momento em que estes dispositivos domésticos e a sua respectiva panóplia de acessórios ganhou maior afinidade com as novas tecnologias electrónicas e, proporcionalmente, passou a ter um número maior de funções e de operações. É que a grande maioria dos novos electrodomésticos apetrechados com chips e placas de microprocessamento deixou de ter um número restrito, fixo e pré-determinado de funções para oferecer ao utilizador uma variedade múltipla e comutativa de opções de escolha, assinalando definitivamente a passagem doméstica da era electro-mecânica para a era electrónica. Tal facto veio enredar gradualmente o utilizador num unfriendly xadrezado de botões e de siglas codificadas, frustrando-o e fazendo-o pressentir o que será a "tecno-aliteracia". Se já seria elucidativo o exemplo menos recente dos rádio-despertadores com botões que pressionados em múltiplas combinatórias permitem o disparo da quantidade de funções, o simples caso dos telecomandos tornaram a situação ainda mais "gritante". Telecomandos dos aparelhos de som e imagem de alta fidelidade que não só se vêm multiplicando nas salas de estar (nem sempre a mesma marca associa o controlo remoto de dois aparelhos num só comando), como vêm sendo milimetricamente esquadrinhados por um infindável número de botões-miniatura em pele de borracha cujas funções cada vez mais refinadas permanecem arredadas do nosso uso quotidiano mais restrito e comum. Subitamente ganharam a forma de consolas de som, de montagem e de pré-programação, respondendo às aspirações mais requintadas do público. É assim que se vai estreitando a afinidade entre a "economia electrodoméstica", as plataformas digitais e os pacotes de software sem os quais não podemos instalar, ligar ou desligar, apetrechar, reparar ou fazer a mais simples das manutenções.

E é exactamente neste ponto que reside um dos maiores desafios do design contemporâneo. Já relativamente longe da premência de conjugar o binómio forma-função que se aplicava quando as funções do produto podiam ser exclusivamente definidas pelo próprio fisicamente (o exemplo do clip é aqui ainda incontornável), o design tende cada vez mais a ter que reforçar a associação do design de produto (ou de hardware) com o design de software que trabalhará a relação cognitiva e emocional do utilizador com o produto. Grande parte do futuro do design reside nesta exploração comunicacional e semiótica do interface do produto, apostando ainda fortemente no que entende por "ambiente do produto", i.e., os serviços e complementos que o servem, potenciam e que traçam a sua identidade.

São todas estas inquietações que parecem ocorrer-nos quando visitamos a "Casa de Dieter Rams" no CCB. Não por haver uma relação de semelhança com as experiências confusas e frustrantes criadas por muitos dos aparelhos domésticos actuais, mas precisamente por aqui ser apresentado um perfeito contraponto a todo esse cenário. Aqui tudo nos parece mais simples, lógico e funcional. Não só porque acumulámos uma larga experiência e destreza na descodificação de "caixas pretas", mas sobretudo porque nos deparamos com uma época histórica do design industrial alemão em que o número restrito de funções de um electrodoméstico não era impedimento para uma investigação tecnológica e cognitiva que visasse a simplificação da sua experiência quotidiana ou a potencialização da sua funcionalidade.

Grande parte deste trabalho sobre a comunicação de produto começou a ser feito no período pós-guerra alemão na Hochschule für Gestaltung, também correntemente designada como "Escola de Ulm". Em actividade entre 1953 e 1968, a Escola de Ulm veio sobretudo a demarcar-se no ensino do design pela integração da semiótica e da teoria da informação no seu modelo curricular. Foi durante os anos 60 que desenvolveu vários projectos para clarificar os signos de instruções nos painéis de controlo dos aparelhos electrónicos, e são o seu prestígio na reabilitação pós-guerra do design alemão, assim como o prosseguimento de muitos dos princípios Bauhaus, que lhe fizeram merecer um trabalho conjunto com a já então prestigiada marca Braun- a empresa da primeira máquina de barbear eléctrica (a S50, de 1950) e do prestigiado Multimix, o seu primeiro electrodoméstico.

Preocupado com o caos, a desordem e a complexidade da sociedade alemã do pós-guerra, Dieter Rams envereda tanto na Braun como na Vitsoe pela aplicação de ordem, simplicidade, durabilidade e baixo custo aos produtos mais procurados pelos cidadãos decididos a reconstruir a estabilidade dos seus lares. Grande exemplo disso é a versatilidade dos móveis que se deixam acoplar e associar modularmente entre si ou com componentes da casa. É o caso de um sofá-cama Vitsoe cuja base aproveita as calhas de um sistema de portas de correr da mesma marca, ou ainda o caso de um sistema de contentores para arrumações que podem ser conjugados com estantes e dispostos em qualquer parte da casa. Mas é sobretudo com os aparelhos audio que a Braun recomeçou a produzir em 1956 que o sistema de múltiplas combinações e acoplagens ganha uma nova dinâmica. O caso mais paradigmático da associabilidade dos componentes e do seu pioneiro "funcionamento em rede" foi alcançado em 1962 com o modelo Audio 1. Tratou-se de uma aparelhagem de som de alta fidelidade que para além de beneficiar de um estreitamento em altura (11cms, possíveis pela nova tecnologia dos transístores), tinha ainda a vantagem de poder ser combinada com receptores, gira-discos, gravadores, altifalantes e ainda modelos de televisão da marca Braun. E porque a optimização da utilidade e condenação do desperdício sempre fizeram parte dos princípios de design de Rams, todas estas unidades combináveis com o Audio 1 cabiam e podiam ser perfeitamente instaladas nas estantes 606 da Vitsoe e da Knoll International. Uma autêntica "unidade na unidade" típica do "estilo Braun" de acordo com Tomás Maldonado, e que se contrapunha à "unidade na diversidade" do estilo Olivetti.

À medida que percorremos a "Casa Dieter Rams" o peso das inovações deste designer torna-se incontornável. Desde a primeira televisão com pé integrado (o modelo FS 80 de 1964) às televisões com ângulo de inclinação ajustável, as invenções de Dieter Rams dirigem-se ainda mais particularmente aos aparelhos de som. O notável modelo TP1 de 1959 que veio combinar um rádio de bolso com um gira-discos portátil; sistemas de alta definição que vieram possibilitar a disposição das diferentes unidades ora em fila, ora empilhadas (Studio 2, de 59, ) ora ainda afixadas à parede; ou ainda modelos de rádio portáteis com multi-frequência (T1000, de 1963) que podiam ser utilizados nos automóveis não equipados com rádios de série.

Mas a implementação da boa forma celebrizada pela Escola de Ulm faz-se também aqui sentir pela inovação dos componentes das unidades e pelas características estéticas destes sistemas. Desde a substituição da vibrante tampa metálica que anteriormente cobria os gira-discos pela tampa acrílica transparente que ainda hoje é standard universal, à gradual substituição da aparência de mobiliário dos sistemas de som através da aplicação de materiais de plástico e metálicos para acondicionar as caixas de som, ou ainda à introdução do preto como cor predominante dos sistemas de alta fidelidade através do modelo Studio 1000 de 1965. Esta última inovação permitiu que a aparência compacta e de tecnologia avançada ficasse reforçada, contrapondo-se ao branco e cinzento que haviam marcado toda a linha audio anterior. O refinamento destas preocupações estéticas atingiria o seu maior alcance quando nos anos 80 o sistema de alta fidelidade Atelier passava a conjugar tampas rebatíveis que cobriam os elementos menos utilizados e dispositivos que escondiam toda a cablagem da unidade, concedendo-se assim à sua parte posterior a mesma importância que à "fachada" do aparelho.

Em todos estes artefactos profundamente planeados e testados vigoram os princípios defendidos por Rams para o modus operandi do bom design: inovação, optimização da utilidade, qualidade estética, comunicação do produto, discrição, honestidade, durabilidade, respeito ambiental e simplicidade. Na difícil combinação destes elementos, e na sua reprodução industrial em séries mais ou menos limitadas, residiu o famoso "estilo Braun" que teve a assinalável vantagem de iniciar a este tipo de consumo as camadas mais jovens, sensíveis a produtos de baixo custo, transportáveis, fáceis de manusear, belos e ecológicos. Como resposta à pressão neo-capitalista alemã e também a todo o styling que começava a caracterizar grande parte dos produtos de mercado, Dieter Rams assinou para sempre as suas obras com o mote "menos é mais" e com ele os contornos da já clássica "boa forma" viram-se inigualavelmente expandidos.

Informação
Exposição aberta ao público no Centro Cultural de Belém
entre 20 de Setembro e 25 de Novembro de 2001.