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  Entrevista a Luís Amaral

  [ Entrevistado por José Augusto Mourão ]

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« There is an obvious advantage in being able to explain complex things in
terms of simpler ones, or large systems in terms of smaller. Therefore
analysis, with its reduction from complexity to simplicity, is traditionally
a useful way of doing science. However, its drawbacks become apparent when
analysis adopts the position 'nothing but'. When chemistry is 'nothing but
the physics of molecules', an organism is 'nothing but its constituent
chemistry', and mind 'nothing but nerve cells and neurochemicals in action',
then a narrowness of perspective results.
» ( F. David Peat )

"Existe uma vantagem óbvia em sermos capazes de explicar coisas complexas nos termos de outras mais simples, ou sistemas grandes em termos de mais pequenos. Assim, a análise, que reduz a complexidade à simplicidade, tem sido tradicionalmente uma forma útil de fazer ciência. Contudo, as suas desvantagens tornam-se aparentes quando a análise adopta a atitude "não passa de". Quando a química "não passa de física molecular", um organismo "não passa dos seus constituentes químicosa", e a mente "não passa da acção de células e produtos químicos nervosos", tal tem como consequência um estreitamento dos horizontes." (F. David Peat)

«La recherche scientifique est réductrice ou elle n'est rien» (René Girard)

"A investigação científica ou é redutora ou não é nada" (René Girard)

[ J A M ]
A ciência moderna nasce de duas rupturas — por redução — com a Natureza e com o homem. A situação actual da ciência vive da multiplicidade das propostas de explicação. O reducionismo como método único e explicação única dos fenómenos parece, pois, abalado. A hipótese explicativa dada pela física estatística para o fenómeno da contaminação é uma hipótese reducionista boa?

[ LA ]
Na Ciência, como em muitas outras actividades humanas, existe uma luta entre descrições de velhos e novos fenómenos por explicar.  Esta "confrontação" de descrições ou modelos ainda recorre ao paradigma reducionista.  A razão para tal é dupla: primeiro, esta é a abordagem que os cientistas em formação aprendem, e, em segundo lugar, é uma abordagem extremamente bem sucedida, especialmente nas chamadas ciências "duras": a física, a química, e alguns aspectos da biologia.

Tais factos não devem levar-nos a acreditar que as abordagens reducionistas sejam as únicas aceites pelos cientistas.  Vários progressos seminais foram "inspirações" de natureza global ou "integracional".  Por exemplo, o conceito da "conservação de energia" nos processos físicos, químicos e biológicos (o qual, diga-se de passagem, foi proposto separadamente, em meados do século XIX, por físicos, químicos e médicos) não pode ser provado. Em vez disso, deverá ser aceite como um axioma. Tal axioma acabou por ser aceite por ter permitido explicar muitos fenómenos.

Actualmente, o estudo de sistemas complexos reproduz até certo ponto esses avanços oitocentistas.  A resolução dos desafios dos sistemas complexos como a difusão de ideias e tecnologias nas sociedades humanas, a difusão de infecções nas populações humanas e animais (pense-se no HIV ou na febre aftosa), ou o estudo do genoma humano necessitará do contributo de investigadores especializados em várias áreas e do desenvolvimento de novos conceitos "integracionistas". O nosso estudo da rede de parcerias sexuais humanas é uma tentativa de construir uma imagem abstracta, talvez simplista, mas, contudo, global das interacções humanas.

[ J A M ]
Está a surgir, sob o signo de uma cultura do híbrido, uma espécie de "erótica generalizada" com a actual fusão do biológico e do mecânico, da carne e da imagem, do real e do potencial. Através da tecnologia contemporânea as ligações estão a adquirir uma nova consistência, correntemente descrita como "conectividade", "interactividade", "on-line", "wired". Como interpreta a sua hipótese de trabalho esta "erótica generalizada"?

[ LA ]
Tais aspectos encontram-se fora da esfera de investigação do nosso estudo.  Sem dúvida, seria interessante saber mais sobre aquilo que impulsiona os indivíduos no nosso estudo e sobre a forma como a crescente conectividade do mundo moderno afecta o comportamento destes.

[ J A M ]
A Internet constitui um progresso decisivo para a sexualidade das redes, comparável àquele que representaram as cruzadas, a colonização e o turismo popular para a do treponema. Que novos "objectos" poderá criar esta nova invasão?

[ LA ]
É muito interessante que mencione essas antigas mudanças, bem como os objectos que "criaram".  Tal como é sugerido pela sua pergunta, estamos sempre a reinventar os mesmos objectos, dando-lhes novas aparências.  E, provavelmente, não é apenas a natureza humana que, perante uma nova oportunidade, adapta um velho objecto a um novo ambiente. Ainda há pouco, li na Science and Nature que certos vírus que atacam bactérias são muito semelhantes a outros vírus que atacam os humanos, até há pouco considerados muito diferentes destes. Uma sociedade em rede está a permitir que os mesmos jogos e estratégias sejam praticados no mundo digital.  Com efeito, será o vírus da sífilis muito diferente, na sua essência, do vírus "Anna Kournikova"?  (O "portador", neste caso, é uma fotografia da tenista Anna Kournikova espalhada por todo o mundo via e-mail.)  É verdade que o vírus é digital e não causa danos físicos, mas é provável que os administradores da IT ainda estejam a perder cabelo por causa dele e da confusão que está a provocar nos mundos do hardware e do humano.

Outro fenómeno associado aos novos media é o regresso de velhas questões.  Um desafio particularmente interessante colocado pela Internet e pelo armazenamento digital de informação relaciona-se com as questões da propriedade e da privacidade.  Um episódio revelador da forma como estas velhas questões se voltam a colocar passou-se com o ex-Deão da Faculdade de Teologia da Universidade de Harvard. O Deão tinha feito um download de material pornográfico para um computador, pertença da Universidade, que fora instalado em sua casa.  Durante uma operação rotineira de manutenção, feita por um técnico da Universidade, o material pornográfico foi descoberto e a informação tornada pública.  Teria realmente a Universidade de Harvard o direito de examinar o disco rígido do Deão? O argumento apresentado pela Universidade foi que, como o computador é sua propriedade, não deveria ter sido lá guardada informação de natureza privada, mas podemos perguntar-nos se esse argumento teria validade caso estivéssemos a falar do texto de um diário escrito num bloco-notas que fosse igualmente posse da Universidade.

[ J A M ]
A mundialização é a expressão da potência dos genes - um dos seus efeitos fenotípicos - como o ninho é um efeito fenotípico dos genes do pássaro. Vê aqui alguma ligação com a sua hipótese explicativa?

[ LA ]
É plausível que o impulso para "alcançar outra costa" ou "meter uma lança em África" desempenhe um papel importante no crescimento da rede de parcerias sexuais (alguns indivíduos na amostra que considerámos tinham perto de mil parceiros diferentes). Este fenómeno poderá não ser muito diferente de um Bill Gates que acrescenta mais um bilião de dólares à sua fortuna ou da divisão do mundo entre os reis de Portugal e Espanha.

[ J A M ]
A sociedade liberal é o biótopo que melhor convém à proliferação dos genes. Só podem estender as suas redes na medida em que as nossas se deslocam. Dizendo que "A não ser que haja poligamia ou o comportamento das mulheres seja seriamente restringido, como no Afeganistão, a maior parte das sociedades será assim" (Público, 21 Junho 2001) não estará a fazer da sua hipótese, para além da sua pertinência em termos de controle, de previsão de efeitos, mais uma hipótese determinista do que pragmática?

[ LA ]
Talvez, mas o que estou a fazer é, essencialmente, construir uma hipótese de trabalho. O objectivo é, evidentemente, poder testar a minha hipótese com dados oriundos de outros países e sociedades. Na verdade, a possibilidade mais interessante seria a minha hipótese de trabalho revelar-se errada. Creio que a descoberta de um exemplo em que a minha hipótese se mostrasse errada seria muito esclarecedor e faria progredir grandemente o nosso conhecimento dos mecanismos que regulam o crescimento da rede de parcerias sexuais.

[ J A M ]
Matematicamente, o "grafo" das relações sociais não tem uma estrutura em árvore: as arestas entrecruzam-se e sobrepõem-se. Quaisquer resultados das matemáticas sobre este problema têm de ser resultados sobre classes de grafos. Em termos estatísticos a dinâmica das redes de contactos sexuais humanos pode ser traduzida através de uma lei matemática. Pode sê-lo também em termos de casos individuais?

[ LA ]
Há uma importante distinção a fazer, no que se refere ao uso da matemática na nossa descrição da rede de contactos sexuais: os resultados a que chegamos são empíricos. Receio que a maioria das pessoas associe uma descrição matemática a uma teoria do fenómeno em causa.  No nosso estudo, não construímos qualquer teoria da estrutura do grafo.  Limitamo-nos a medir uma quantidade que ajuda a caracterizar a sua estrutura.  Simplesmente, acontece que essa quantidade pode ser expressa sob uma forma matemática.  A altura dos humanos pode ser medida de forma semelhante e, assim, a distribuição das alturas entre os habitantes de Portugal pode ser igualmente expressa em termos matemáticos. Da mesma forma que não podemos prever a altura em adulta de uma criança portuguesa em particular, também não podemos prever o número de parceiros sexuais que essa criança virá a ter.  Apenas podemos prever a distribuição de alturas ou do número de parceiros sexuais de todas as crianças agora nascidas.  Isto, para mim, é tranquilizador: é nas variações individuais que podemos encontrar a possibilidade de exercer o nosso livre arbítrio.

[ J A M ]
A lógica que preside às redes - de contactos sociais, de ecossistemas, de electricidade ou até a forma como os vírus informáticos se espalham através do correio electrónico - pode reduzir-se a uma lei objectiva (um modelo narrativo canónico)?

[ LA ]
É difícil prever se uma descrição será suficiente para capturar a riqueza de todos esses fenómenos.  Creio que serão necessárias descrições diferentes para cada um dos casos.  O meu estudo dos ecossistemas sugere que a estrutura de rede destes é diferente da que encontrámos nas parcerias sexuais.  Contudo, por vezes ficamos surpreendidos ao descobrir que descrições semelhantes valem para sistemas bastante diferentes. O facto de o estudo de sistemas complexos ainda estar na sua infância constitui um problema.  Creio que, à medida que formos aprendendo, ficaremos mais capazes de prever que sistemas serão descritos pelas mesmas leis e quais não.

[ J A M ]
A rede de contactos sexuais humanos é uma rede de mundo pequeno de escala aberta composta por diferentes números de ligação. Que alcance social pode ter o estudo empírico a partir do qual se conclui a lei que regula o fenómeno dos "pequenos mundos"?

[ LA ]
Bem, a nossa descoberta permite-nos realmente compreender a difusão de doenças como a SIDA.  Compreender a difusão da SIDA não é fácil e isso, até certo ponto, explica o raciocínio de certas pessoas que pensavam estar "seguras".  Sabemos que a SIDA começou em certos grupos de alto risco, e também sabemos que não é particularmente contagiosa, por isso fazia "sentido" pensar que, enquanto não tivéssemos contacto com os grupos de risco, estaríamos seguros.  Suponho que todos vemos agora até que ponto estávamos errados.  Creio que os números em Portugal falam por si, como começam a fazer em vários países asiáticos que se consideravam livres da epidemia de SIDA. Os nossos resultados permitem-nos compreender que os grupos de risco constituem o elemento que mantém a epidemia viva e que serve como reservatório para a sua lenta difusão pela população em geral.  Ninguém está realmente seguro na população em geral, porque essa rede é um mundo muito pequeno.  Podemos pensar que estamos seguros e distantes do núcleo da doença, mas na realidade estamos apenas a alguns graus de distância. Este carácter altamente heterogéneo da propagação da doença e da rede sexual é, na realidade, igualmente muito esclarecedor para o planeamento de campanhas educacionais que funcionem e, mesmo, de campanhas de imunização, caso uma vacina seja desenvolvida.

[ J A M ]
Pode falar-se de uma epidemiologia das representações? A cultura "pega-se",
como a sarna ou o sarampo?

[ LA ]
Estou fortemente convencido de que sim.  É plausível que uma densa rede de interacções humanas e uma massa crítica de indivíduos poderão intensificar a chegada e a sobrevivência de ideias novas.  A minha experiência em investigação científica diz-me que as novas ideias seminais estão quase sempre parcialmente erradas.  É a existência de uma comunidade de indivíduos interessados que permite que uma ideia seminal embrionária se desenvolva, tornando-se num conceito forte, o qual poderá então ser difundido e sustentado.

[ J A M ]
Aquilo que faz o homem desde sempre e para sempre é uma palavra num corpo sexuado e numa genealogia. Subverter a cadeia das gerações (os meios actuais ou previsíveis são muitos) é uma maneira de fazer prevalecer a omnipotência do homem, que irá ao ponto de fabricar humanos que não serão mais do que objectos desejados pela vontade de dominar o universo. Se as coisas vão deixar de ser assim, a questão do homem e a questão de Deus vão deixar de ter interesse. Cenário de fim do mundo?

[ LA ]
Nesses seus termos, sim, é um cenário de fim do mundo.  Mas isso, na minha opinião, é acreditar que o trio homem/ciência/tecnologia é, de algum modo, omnipotente. A minha impressão é que, pelo contrário, estamos a descobrir os limites das nossas capacidades. Não, não fizemos a paz na Terra.  Não, ainda não conseguimos curar o cancro, nem sequer a gripe.  Não, não viajaremos para outras galáxias a velocidades superiores à da luz.  Não, não colonizaremos outros sistemas solares.  Não, não podemos prever o tempo nem conseguiremos controlá-lo (apesar de podermos vir a descontrolá-lo). Talvez seja o nosso ego que nos faça crer que somos capazes de fazer todas estas coisas.  Mas a vida só se manterá interessante se não deixar de ser desafiadora e imprevisível.  Excepto em termos estatísticos, claro.