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 "Urban Lab, Shortcuts" — Bienal da Maia, 2001

  [ Fernando José Pereira ]

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A proposta conceptual da Bienal da Maia deste ano apresenta-se no âmbito do laboratorial. O laboratório urbano que é proposto como tema, teoricamente, corporiza em si as possibilidades de experimentação necessárias a uma intervenção visível no universo saturado das iniciativas levadas a cabo no espaço do Porto 2001.

A discussão em torno da intervenção da arquitectura e das artes visuais no campo expandido que é a noção de urbanidade contemporânea apresenta, então, todas as condições para que o evento agrege em seu redor uma expansão qualitativa das discussões, entretanto, amplamente realizadas durante este ano na cidade do Porto.

Dividida física e conceptualmente em dois espaços, acolhe um universo transdisciplinar que responde aos dois temas propostos: IC1 – Identidade; IC2 – Prótese.

A bienal apresenta-se como uma montagem que, no entanto, deixa dúvidas respeitantes à co-habitação entre as peças expostas e a arquitectura, essencialmente, por existir um claro excesso de protagonismo desta última. O que se verifica nos casos mais extremos é uma miscigenação significacional de peças de artistas com a arquitectura envolvente. O que não é, de forma alguma, benéfico para qualquer uma das partes.

Maior acerto existiu, contudo, na montagem das projecções vídeo propostas. Colocadas no interior de contentores, afirmam um espaço reservado sem cair no lugar comum a muitas das exposições de arte contemporânea em que este se encontra completamente fragmentado por pequenos cubículos de onde se entra e sai consecutivamente.

A bienal da Maia, como lugar de experimentação, credita um universo que se afasta (apenas relativamente) das iniciativas paralelas a decorrer na capital cultural. Privilegiando maioritariamente um núcleo autoral de afirmação recente, permite uma visibilidade descomprometida, mas ainda assim importante, pelo contexto em que se encontra. Menos acertada é a inclusão na exposição de alguns fragmentos de uma exposição, marcante, mas ultrapassada temporalmente; referimo-nos à exposição de grupo havida em 1995 e de homenagem a Guy Debord.

Feitas as considerações iniciais, de forma mais ou menos descritiva e amorfa, interessa-nos problematizar os dois temas propostos e as respectivas respostas.

No IC1 – Identidade refere-se esta como uma noção em progressivo enfraquecimento devido, essencialmente, à violenta desidentificação totalizante que é desencadeada pela contemporaneidade. As propostas que a arte tem realizado nos últimos anos aludem grandemente a um maior investimento em categorias locais (subjectivas) por reacção ao desvanecimento das propostas utópicas e estruturantes da modernidade. Contudo, é preciso não ser ingénuo. Também a este nível de análise, as mesmas respostas são, por vezes, desenhadas em diversos âmbitos que vão da política à publicidade, não sendo possível dizer, nos nossos dias, onde começa uma e termina outra. A absorção das linguagens por uma transdisciplinaridade cada vez mais ampla, complica, ainda mais, o papel da arte e das suas propostas neste início de século. Torna-se, portanto, inevitável o confronto que esta expansão imagética tem com algumas das propostas apresentadas.

A este nível será necessário, antes de mais, ressalvar o facto de, mesmo as linguagens mais localizadas e íntimas, como a abjecção e a obscenidade, não se encontrarem mais numa situação de exterioridade relativamente ao sistema simbólico contemporâneo. Fazem parte activa dele e, como tal, procede-se à sua natural domesticação e consequente consumo, falhando na totalidade o investimento, chamemos-lhe subversivo, transformado em componente moralizante.

A identidade apresenta-se como um dos principais temas políticos do nosso tempo, daí o acerto da sua escolha mas, também, um dos mais escorregadios, daí a complexidade da sua apresentação. A noção de totalidade, enquanto tal, apresenta-se como um conteúdo vazio. Só existe quando preenchida pelas particularidades (identidades) que a vão constituindo. Mas, nenhuma particularidade pode ter existência por si só, isto é, com base na sua exclusividade; necessita, antes de mais, de uma contaminação dos conteúdos universais que lhe dão paridade. Todos os conteúdos "identitários" que foram surgindo em força ao longo da década de noventa foram sendo absorbidos pela universalidade totalizadora de que se pretendiam distanciar. O carácter perverso do capitalismo tardio encontra-se no seu alto nível de adaptabilidade. Multi-cultural, híbrido, género, corpo, todos eles conteúdos identitários… mas, também, conteúdos comerciais. Atente-se nos variados exemplos dessa espécie de euforia do corpo surgida nos últimos anos na imagética artística e compare-se com as imagens da publicidade, da política, da indústria cultural: música e cinema. Todas convergem para o mesmo núcleo do sistema numa clara direcção migratória das margens para o centro com a respectiva amálgama indistinta formada pelo seu excesso. Talvez daí advenha um pouco da inquietude que é normal hoje existir quando se vê uma exposição e em que quase tudo se parece com quase tudo, não só do interior do sistema da arte…

A questão da identidade surge, também, camuflada em simbologia corporativista com os seus ícones e logotipos. Apesar de ser uma estratégia que já não se apresenta como nova traz problemas que se direccionam para uma identificação com o papel do empresário que, desta forma, dá continuidade a uma permanência autoral romântica de que, aparentemente, tanto se pretende afastar.

Uma das principais dificuldades com que se debatem as apresentações artísticas nos nossos dias passa pela dificuldade de articulação daquilo a que Christoph Menke designa por uma soberania da arte. Uma espécie de nova autonomia não autista que permita, desta feita, também para o campo artístico, uma identidade que vem perdendo. Não se trata, obviamente, da reivindicação formalista mas, antes, da necessária reacção perante a constatação de uma dissolução.

A bienal da Maia ao privilegiar a experimentação contém em si algumas potenciais possibilidades de resistência a esta permanência dissolvente. Validadas unicamente em si próprias, as propostas têm que se haver directamente com a sua inclusão em ambiente hostil —a reivindicação contraditória de antiespectacularidade e provocação colidem frontalmente com a própria realização do evento— e manifestam, desta forma, a sua valência como linguagem que se pretende marcadora de um tempo presente.

O IC2 – apresenta-se segundo a temática da prótese. Também aqui o acerto temporal é notório. Existiu uma necessidade bem vincada de introduzir temas que são de discussão ampla na contemporaneidade e, por isso mesmo, a proposta corre riscos muito mais acentuados. O confronto é directo.

O corpo protésico confirma a tecnologia como uma das facetas da contemporaneidade que não pode ser mais encoberta. Se nas artes performativas existem evidentes relações directas com a questão, no campo mais alargado das artes visuais, esta impõe-se de modo bastante mais amplo, também. A designação Burroughsiana de cut-up para muitas das intervenções propostas é, neste aspecto, bastante feliz pois, antes de mais, coloca uma amplitude de intervenção que recusa a literalidade e o fechamento de uma resposta.

Embora o corpo apareça como dominante absoluta nas propostas dos artistas convidados este não se confina ao seu aparelhamento tecnológico. Alarga, de certa forma, a discussão para um âmbito que ultrapassa a noção de prótese para uma situação de contornos de carácter, aparentemente, menos tecnológico. A exploração conceptual da relação estabelecida pelo corpo com uma evidência contextualizadora de índole profundamente tecnológico apresenta-se, assim, como pano de fundo para as obras em exposição.

Encontram-se presentes, de forma necessariamente subjectivada, as visões de uma crescente inquietação com a realidade circundante. Mais uma vez, o risco da integração no universo das problemáticas mais em voga conduz a espaços de menor eficácia por claro efeito especular com muitas outras organizações a decorrerem. O que a presença indistinta de alguns dos principais nomes do maisnstream artístico internacional nesta área vem problematizar decisivamente. A sua ambivalência produz evidentes paradoxos. Por um lado, potenciam a legitimação de uma iniciativa periférica; por outro, ao tentarem retirar esse carácter e ao conferirem um ambíguo tom de protagonismo transfiguram a sua identidade em hibridismo cultural.

Para lá de todas as considerações que são possíveis realizar a propósito deste evento fica a ideia clara da sua intencionalidade primeira: o acerto temporal. A profusão de iniciativas transdisciplinares, que vão das artes visuais à música electrónica, passando pela miscigenação das duas tanto num campo como no outro, pela performance, pelo cinema, pelo teatro, e finalmente pela arte pública, coincidem no interesse que manifestam com o contexto temporal em que se inserem.

Afirma-se decisivamente a prática curatorial do seu responsável. Para o bem e para o mal ela torna-se elemento presente e identitário. O que é, a nosso ver, um elemento de mais valia para uma iniciativa que já tem alguns anos de realizações e que, depois de uma existência nublosa e sem direcção concreta se propõe, desde a sua última edição, a dar corpo a intervenções de carácter mais forte e individualizado. Assim tenha continuidade.

A bienal da Maia apresentou-se como espaço de prática laboratorial. A experimentação que, naturalmente, aí se desenvolve potencia a renovação constante de que a arte necessita para se apresentar. É, aliás, com base em algumas das propostas que aí se mostram que o laboratório experimental se constrói —longe das retóricas de apresentação e sedução pública que dele emanam— como base de sedimentação para um devir próximo que exige aos artistas uma muito maior responsabilidade no relacionamento, internalizado compulsivamente, que têm que manter com a realidade circundante. A sua resistência à fusão em condição fashionable será um dos desafios —já o é— mais interessante de seguir. Talvez por lá passem as práticas experimentais, laboratoriais ou não, mais importantes e decisivas.