A proposta conceptual da Bienal da
Maia deste ano apresenta-se no âmbito do laboratorial. O laboratório
urbano que é proposto como tema, teoricamente, corporiza
em si as possibilidades de experimentação necessárias
a uma intervenção visível no universo saturado
das iniciativas levadas a cabo no espaço do Porto 2001.
A discussão em torno da intervenção
da arquitectura e das artes visuais no campo expandido que é
a noção de urbanidade contemporânea apresenta,
então, todas as condições para que o evento
agrege em seu redor uma expansão qualitativa das discussões,
entretanto, amplamente realizadas durante este ano na cidade do
Porto.
Dividida física e conceptualmente
em dois espaços, acolhe um universo transdisciplinar que
responde aos dois temas propostos: IC1 – Identidade; IC2 – Prótese.
A bienal apresenta-se como uma montagem
que, no entanto, deixa dúvidas respeitantes à co-habitação
entre as peças expostas e a arquitectura, essencialmente,
por existir um claro excesso de protagonismo desta última.
O que se verifica nos casos mais extremos é uma miscigenação
significacional de peças de artistas com a arquitectura envolvente.
O que não é, de forma alguma, benéfico para
qualquer uma das partes.
Maior acerto existiu, contudo, na
montagem das projecções vídeo propostas. Colocadas
no interior de contentores, afirmam um espaço reservado sem
cair no lugar comum a muitas das exposições de arte
contemporânea em que este se encontra completamente fragmentado
por pequenos cubículos de onde se entra e sai consecutivamente.
A bienal da Maia, como lugar de experimentação,
credita um universo que se afasta (apenas relativamente) das iniciativas
paralelas a decorrer na capital cultural. Privilegiando maioritariamente
um núcleo autoral de afirmação recente, permite
uma visibilidade descomprometida, mas ainda assim importante, pelo
contexto em que se encontra. Menos acertada é a inclusão
na exposição de alguns fragmentos de uma exposição,
marcante, mas ultrapassada temporalmente; referimo-nos à
exposição de grupo havida em 1995 e de homenagem a
Guy Debord.
Feitas as considerações
iniciais, de forma mais ou menos descritiva e amorfa, interessa-nos
problematizar os dois temas propostos e as respectivas respostas.
No IC1 – Identidade refere-se esta
como uma noção em progressivo enfraquecimento devido,
essencialmente, à violenta desidentificação
totalizante que é desencadeada pela contemporaneidade. As
propostas que a arte tem realizado nos últimos anos aludem
grandemente a um maior investimento em categorias locais (subjectivas)
por reacção ao desvanecimento das propostas utópicas
e estruturantes da modernidade. Contudo, é preciso não
ser ingénuo. Também a este nível de análise,
as mesmas respostas são, por vezes, desenhadas em diversos
âmbitos que vão da política à publicidade,
não sendo possível dizer, nos nossos dias, onde começa
uma e termina outra. A absorção das linguagens por
uma transdisciplinaridade cada vez mais ampla, complica, ainda mais,
o papel da arte e das suas propostas neste início de século.
Torna-se, portanto, inevitável o confronto que esta expansão
imagética tem com algumas das propostas apresentadas.
A este nível será necessário,
antes de mais, ressalvar o facto de, mesmo as linguagens mais localizadas
e íntimas, como a abjecção e a obscenidade,
não se encontrarem mais numa situação de exterioridade
relativamente ao sistema simbólico contemporâneo. Fazem
parte activa dele e, como tal, procede-se à sua natural domesticação
e consequente consumo, falhando na totalidade o investimento, chamemos-lhe
subversivo, transformado em componente moralizante.
A identidade apresenta-se como um
dos principais temas políticos do nosso tempo, daí
o acerto da sua escolha mas, também, um dos mais escorregadios,
daí a complexidade da sua apresentação. A noção
de totalidade, enquanto tal, apresenta-se como um conteúdo
vazio. Só existe quando preenchida pelas particularidades
(identidades) que a vão constituindo. Mas, nenhuma particularidade
pode ter existência por si só, isto é, com base
na sua exclusividade; necessita, antes de mais, de uma contaminação
dos conteúdos universais que lhe dão paridade. Todos
os conteúdos "identitários" que foram surgindo
em força ao longo da década de noventa foram sendo
absorbidos pela universalidade totalizadora de que se pretendiam
distanciar. O carácter perverso do capitalismo tardio encontra-se
no seu alto nível de adaptabilidade. Multi-cultural, híbrido,
género, corpo, todos eles conteúdos identitários…
mas, também, conteúdos comerciais. Atente-se nos variados
exemplos dessa espécie de euforia do corpo surgida nos últimos
anos na imagética artística e compare-se com as imagens
da publicidade, da política, da indústria cultural:
música e cinema. Todas convergem para o mesmo núcleo
do sistema numa clara direcção migratória das
margens para o centro com a respectiva amálgama indistinta
formada pelo seu excesso. Talvez daí advenha um pouco da
inquietude que é normal hoje existir quando se vê uma
exposição e em que quase tudo se parece com quase
tudo, não só do interior do sistema da arte…
A questão da identidade surge,
também, camuflada em simbologia corporativista com os seus
ícones e logotipos. Apesar de ser uma estratégia que
já não se apresenta como nova traz problemas que se
direccionam para uma identificação com o papel do
empresário que, desta forma, dá continuidade a uma
permanência autoral romântica de que, aparentemente,
tanto se pretende afastar.
Uma das principais dificuldades com
que se debatem as apresentações artísticas
nos nossos dias passa pela dificuldade de articulação
daquilo a que Christoph Menke designa por uma soberania da arte.
Uma espécie de nova autonomia não autista que permita,
desta feita, também para o campo artístico, uma identidade
que vem perdendo. Não se trata, obviamente, da reivindicação
formalista mas, antes, da necessária reacção
perante a constatação de uma dissolução.
A bienal da Maia ao privilegiar a
experimentação contém em si algumas potenciais
possibilidades de resistência a esta permanência dissolvente.
Validadas unicamente em si próprias, as propostas têm
que se haver directamente com a sua inclusão em ambiente
hostil —a reivindicação contraditória de antiespectacularidade
e provocação colidem frontalmente com a própria
realização do evento— e manifestam, desta forma, a
sua valência como linguagem que se pretende marcadora de um
tempo presente.
O IC2 – apresenta-se segundo a temática
da prótese. Também aqui o acerto temporal é
notório. Existiu uma necessidade bem vincada de introduzir
temas que são de discussão ampla na contemporaneidade
e, por isso mesmo, a proposta corre riscos muito mais acentuados.
O confronto é directo.
O corpo protésico confirma
a tecnologia como uma das facetas da contemporaneidade que não
pode ser mais encoberta. Se nas artes performativas existem evidentes
relações directas com a questão, no campo mais
alargado das artes visuais, esta impõe-se de modo bastante
mais amplo, também. A designação Burroughsiana
de cut-up para muitas das intervenções propostas é,
neste aspecto, bastante feliz pois, antes de mais, coloca uma amplitude
de intervenção que recusa a literalidade e o fechamento
de uma resposta.
Embora o corpo apareça como
dominante absoluta nas propostas dos artistas convidados este não
se confina ao seu aparelhamento tecnológico. Alarga, de certa
forma, a discussão para um âmbito que ultrapassa a
noção de prótese para uma situação
de contornos de carácter, aparentemente, menos tecnológico.
A exploração conceptual da relação estabelecida
pelo corpo com uma evidência contextualizadora de índole
profundamente tecnológico apresenta-se, assim, como pano
de fundo para as obras em exposição.
Encontram-se presentes, de forma
necessariamente subjectivada, as visões de uma crescente
inquietação com a realidade circundante. Mais uma
vez, o risco da integração no universo das problemáticas
mais em voga conduz a espaços de menor eficácia por
claro efeito especular com muitas outras organizações
a decorrerem. O que a presença indistinta de alguns dos principais
nomes do maisnstream artístico internacional nesta
área vem problematizar decisivamente. A sua ambivalência
produz evidentes paradoxos. Por um lado, potenciam a legitimação
de uma iniciativa periférica; por outro, ao tentarem retirar
esse carácter e ao conferirem um ambíguo tom de protagonismo
transfiguram a sua identidade em hibridismo cultural.
Para lá de todas as considerações
que são possíveis realizar a propósito deste
evento fica a ideia clara da sua intencionalidade primeira: o acerto
temporal. A profusão de iniciativas transdisciplinares, que
vão das artes visuais à música electrónica,
passando pela miscigenação das duas tanto num campo
como no outro, pela performance, pelo cinema, pelo teatro, e finalmente
pela arte pública, coincidem no interesse que manifestam
com o contexto temporal em que se inserem.
Afirma-se decisivamente a prática
curatorial do seu responsável. Para o bem e para o mal ela
torna-se elemento presente e identitário. O que é,
a nosso ver, um elemento de mais valia para uma iniciativa que já
tem alguns anos de realizações e que, depois de uma
existência nublosa e sem direcção concreta se
propõe, desde a sua última edição, a
dar corpo a intervenções de carácter mais forte
e individualizado. Assim tenha continuidade.
A bienal da Maia apresentou-se como
espaço de prática laboratorial. A experimentação
que, naturalmente, aí se desenvolve potencia a renovação
constante de que a arte necessita para se apresentar. É,
aliás, com base em algumas das propostas que aí se
mostram que o laboratório experimental se constrói
—longe das retóricas de apresentação e sedução
pública que dele emanam— como base de sedimentação
para um devir próximo que exige aos artistas uma muito maior
responsabilidade no relacionamento, internalizado compulsivamente,
que têm que manter com a realidade circundante. A sua resistência
à fusão em condição fashionable
será um dos desafios —já o é— mais interessante
de seguir. Talvez por lá passem as práticas experimentais,
laboratoriais ou não, mais importantes e decisivas.
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