trans.gif (43 bytes) trans.gif (43 bytes)

  Que significa "moderno"?

  [ João Barrento ]

trans.gif (43 bytes)
trans.gif (43 bytes)

 

 

 

Introdução

O meu título poderia facilmente sugerir a tentação de seguir um caminho que o gosto da taxonomia ou a superstição substancialista dos conceitos aceitariam sem hesitação. Podíamos seguir o rasto das palavras - "modo" / "moda", "moderno", "modernidade", "modernismo" e outras, suas derivadas e afins - e procurar exemplos do seu uso, na miragem de lhes fixar um sentido. Desiludamo-nos. "Moderno" não significa praticamente nada hoje, como já não significava para Pessoa, para quem moderna é toda a civilização europeia pós-antiga. Será preferível começar por interrogar a história e sobretudo questionar o uso ingénuo, desproblematizado e inoperante do conceito de "moderno", tão facilmente "naturalizável" - como tantos outros, a começar pelo de "natureza". Para isso, convém não esquecer que há uma historicidade das categorias históricas. "Moderno" tornou-se, como sabemos, uma categoria histórica e tipológica. Mas a sua tendência natural vai mais para o tipológico (com as inevitáveis pretensões de universalidade) do que para o uso historizado (com a necessária remissão para um dado momento no tempo ou uma manifestação histórica identificável). Esse pendor tipologizante e universalizante cai geralmente, no uso mais corrente do termo, numa contradição: uma categoria que se pretende tipológica, que se quer aplicável a manifestações de qualquer tempo, é referida a parâmetros históricos, já historizados, do "moderno", que associam hoje o conceito, ou a um período da história da arte e da literatura do século XX (e então, "moderno" será o que se opõe ao "tradicional", um conceito ainda mais impreciso (1)), ou a um período da história das ideias, que parte do Iluminismo e terá tido morte definitiva, mas também muito contestada, com o advento do chamado "pós-moderno" (e neste novo contexto, "moderno" tanto pode ser equivalente de "progressista" como de "racionalista"). Sem darmos por isso, confundimos já "moderno" com "modernista" ou "iluminista". A confusão é perigosa, as definições são insuficientes.

Temos de reconhecer que a resposta à questão "Que significa 'moderno'?", posta nesta forma assim absoluta, é uma missão impossível. É sempre mais fácil, e faz mais sentido, tentar responder à pergunta: "Que significa ser moderno hoje?" - como fizeram Cassiodoro no século VI, os intervenientes na Querelle... em 1687, os Românticos alemães em 1800, Baudelaire ao tomar por referência (como medida de defesa e precaução) a pintura de Constantin de Guy (2), Antero, ao publicar as Odes Modernas em 1865, os Naturalistas alemães no manifesto "Dez teses sobre a literatura moderna", lido numa associação literária de Berlim em 1886 (3), Freud ou Georg Simmel quando analisam o "nervosismo moderno" no contexto explícito da civilização urbana, Aragon, na sequência da aventura estética e política do Surrealismo, em 1930 ("Qu'est-ce qu'être moderne aujourd'hui?"), ou mesmo Pessoa quando, no Livro do Desassossego, define o moderno em termos só pensáveis no contexto dos modernismos, como atitude de inconformismo e autonomia estética: "Escapar às regras e dizer cousas inúteis resume bem a attitude essencialmente moderna." (LD II, 26). A resposta à nossa pergunta torna-se uma tarefa insensata e quase impossível, porque a questão tem pelo menos um milénio de existência, na sua vertente mais antiga (4), e mais de dois séculos de discussão, na sua versão mais recente. Tudo o que sobre ela se possa dizer ressentir-se-á dessa sua história, hoje totalmente discursivizada (vd. Bragança de Miranda 1994: 11-18). Quando Kant, em 1784, escreve o seu célebre texto Resposta à questão: O que é o Iluminismo?, ele está a viver o começo de um processo que é precisamente o das Luzes. Hoje, qualquer síntese sobre a questão do moderno que não queira ser uma mera acumulação de factos, referências e testemunhos, tem de obrigar-se a si própria a ser uma construção. Tentemos então construir um quadro de referências, usos, sentidos, problemas e contradições em cujo centro vamos encontrar o termo, o conceito, a categoria - estética, filosófica, sociológica e histórica - do "moderno" e seus derivados.

Depois de um breve percurso pela história da palavra, importa assinalar as etapas fundamentais da sua evolução semântica e da sua história no âmbito do pensamento, da historiografia, da estética e da sociologia, preencher ao máximo todo o campo dos conceitos afins, para, ao distinguir, começar a clarificar, recolher os testemunhos que nos permitam entender cada conceito na concreticidade das suas relações com uma experiência, um tempo e um lugar, enfim, tentar a síntese da questionação actual do problema, numa situação em que, paradoxalmente, se proclamou o fim da modernidade e da era do moderno - estamos irremediavelmente condenados a não poder ser modernos! -, e a superação de todos os modernismos, mas em que o termo que aqui nos interessa continua a ser usado com a maior das naturalidades. Uma situação - esquecemo-nos facilmente disso - que já tem mais de trinta anos, desde que o americano Leslie Fiedler, para poder justificar e nomear o fenómeno emergente da arte pop, usou o termo "pós-modernidade" (5) e proclamou a necessidade de "fechar o abismo" que separava essa nova arte da dos "modernos" da primeira metade do século, e de "atravessar a fronteira" para entrar em novos-velhos territórios, os de uma reaproximação entre arte e vida. A sua fórmula, que haveria de ser esquecida na Europa pelas polémicas geradas por Jean-François Lyotard e a sua obra A Condição Pós-moderna (1979), era, em 1965, "close the gap and cross the border" (Fiedler, 1965). Para além do voluntarismo que a informa (sintomático de um desejo de ser época próprio desta, ainda nossa, fase "pós-moderna"), a fórmula levanta também já toda a questão da epocologia, das razões ou desrazões que determinam os cortes (epistemológicos, sociais, estéticos) que se instituem para marcar o começo de épocas a que se chama modernas, de modernidade, modernistas ou pós-modernas/pós-modernistas. Que esses cortes são arbitrários, construções de conveniência, instrumentos meramente discursivos, já o disse Hans Blumenberg, ao lembrar que "na história não há começos, alguém os institui como tal". Não perderemos, por isso, de vista esta questão, interrogando sempre cada um desses cortes no sentido de saber: Que acontecimentos ou factos explicam ou justificam tais cortes (roturas, viragens)? Por que se consideram eles modernos, e em relação a quê? Ao colocar estas questões, iremos configurando progressivamente uma concepção de modernidade feita das mais díspares ideias do moderno.

A história de uma palavra e o destino de um conceito

Para organizar sumariamente a história da palavra e a evolução semântica do conceito, alinho já alguns momentos nucleares na história do "moderno". O termo (tal como o de "moda") deriva do latim modo (ablativo de modus), que refere aquilo que é de agora, do instante, recente ou circunstancial. E. R. Curtius assinala, em Literatura Europeia e Idade Média Latina, o aparecimento do termo modernus na Alta Idade Média, como herança linguística tardo-latina, com dois sentidos, o de "actual" e o de "novo" (está já aqui a distinção entre o uso histórico e o tipológico de "moderno"). A partir daí, é possível organizar a história das palavras e dos conceitos (moderno, modernidade e modernismo) em várias etapas que me parecem cobrir a totalidade do espectro de significações de "moderno", os domínios em que se desenrolam as metamorfoses do conceito e as diversas "apostas" filósóficas subjacentes:

1. Uma proto-fase, a da Idade Média, que, não tendo a obsessão de ser moderna (6), recorre ao termo para se demarcar do mundo antigo. A grande aposta desta "modernidade" em que, no século VI, surge a primeira oposição antiqui-moderni (em Cassiodoro), é a aposta no teológico.

2. A Idade Moderna, um conceito da historiografia política, da ciência e do pensamento, em que o moderno se refere, tanto ao mundo pós-teológico e pós-feudal da secularização e da auto-afirmação burguesa, como à nova filosofia e à nova ciência que, na viragem do século XVI para o XVII, e como se lê num célebre poema de John Donne, "tudo põem em dúvida". A aposta faz-se agora no mundo e no homem.

3. A modernidade das Luzes, o Iluminismo como era moderna de afirmação do sujeito triunfante e da Razão crítica - e será esta última a grande aposta desta modernidade das Luzes que, segundo Jürgen Habermas, é ainda o "projecto inacabado" da nossa "pós-modernidade".

4. O Romantismo, que a si próprio se vê como sinónimo de moderno (isto é, novo), quer na sua versão transcendental (a primeira geração alemã, em 1800), quer nas suas versões nacionalistas (os romantismos europeus mais tardios). No processo histórico do século XVIII, entre Iluminismo e Romantismo, a modernidade terá como referencial maior uma classe e uma ordem social, com implicações em todos os campos da vida e da experiência. Derivando da emancipação das ciências nos começos da Idade Moderna, o moderno ganha agora contornos ideológico-críticos apoiados no novo individualismo burguês; inicia-se um processo de autonomização dos campos do saber, e também da literatura e da arte; nascem o autor como criador "independente" e a instância do mercado literário; a obra liberta-se das normas e funda-se na experiência subjectiva, a estética (proposta em 1750 por Baumgarten) substitui-se às poéticas, a originalidade à convenção. O postulado da autonomia estética, formulado por Kant, provoca uma revolução no modo de encarar a produção e a recepção da obra de arte, que perdurará até hoje (com alguns ataques desferidos em certos momentos pelas vanguardas dadaísta ou pop), radicalizando-se nos postulados da arte pela arte que Mallarmé e o abstraccionismo moderno tentariam levar às últimas consequências. A aposta do Romantismo decidiu-se, no final deste processo, pelo Absoluto (que tanto pode a Natureza como a Arte, o Eu ou a Nação).

5. A modernité, a modernidade como projecto estético inovador, em Baudelaire, usa pela primeira vez o termo para o fazer entrar numa dialéctica com a antiquité, da qual o conceito sairá com o sentido de: arte que realiza a eternização do instante. Um sentido, aliás, que ela já tinha nos primeiros românticos alemães, para quem o romântico (que agora é sinónimo de moderno) é a capacidade de elevar o comum a uma potência superior. Percebe-se melhor, através desta filiação, a inclusão do conhecido ensaio de Baudelaire sobre a modernidade - "Le peintre de la vie moderne" - num volume intitulado L'art romantique, em 1868. Também Pessoa verá, no Livro do Desassossego (I, 42-43) o Romantismo como moderno, isto é simbolista: na arte romântico-simbolista dá-se "a exteriorização do sonho e do que há dentro de nós".

6. As "modernidades programáticas" do Fin-de-siècle (Simbolismo, Esteticismo, Decadentismo, Impressionismo, Arte Nova...), versão soft, estetizante, dos modernismos posteriores. Pela primeira vez a ideia de modernidade, sempre vista como evolução, época, movimento no tempo (desde o século XVIII), dá lugar à de Modernidade como pluralidade de processos e conteúdos de um amplo movimento artístico na sincronia (antes e depois de 1900).

7. Os Modernismos, versão em geral dura e pura de uma modernidade que (para alguns) remonta aos Simbolismos do século anterior (ou mesmo ao Romantismo), e para outros se confunde com as vanguardas históricas, explosão espectacular e re-vitalizada dos modernismos (ou também já a sua negação, como acontece com Dada). Todos estes momentos da modernidade estética, de Baudelaire aos modernismos, se orientam progressivamente por uma aposta no Nada, sendo, como são, expressão estética de um niilismo filosófico que, já na segunda metade do século XIX, abre essas duas grandes crateras que foram o vazio ético e o cepticismo em relação ao sujeito (cuja "dissociação" se acentua) e à linguagem (que toma consciência dos seus limites). Estas serão as marcas inconfundíveis de quase tudo o que, daí para cá, se chamou "moderno".

8. O pós-modernismo e as pós-modernidades, entendidos como reacções, dispersas e diversas, à ditadura da razão, à ambição totalitária e impossível das "grandes narrativas" filosóficas e literárias e ao purismo asséptico, formalista e moralista, do tardo-modernismo, com o seu exacerbado "cânone de proibições" e tabus (Adorno), característico, tanto de toda uma vertente filosófica e sociológica da crítica da cultura enquanto crítica da modernidade (que, desde Nietzsche e Kierkegaard, se continua pelo século XX, com Max Weber e Georg Simmel, Walter Benjamin e a "Teoria Crítica" da Escola de Frankfurt), como também da arquitectura do cubo e da função, da pintura abstracta e conceptual, do nouveau roman e da poesia neo-hermética, de Ungaretti a Paul Celan. O pós-moderno, com as suas estéticas do simulacro, da imitação, do kitsch e do virtual, com o seu hibridismo genológico, os jogos com o leitor, a ideia do Eu como ilusão da linguagem e a da realidade como mera possibilidade, fez a sua grande aposta, descomplexada e lúdica, no "Como se" (o que é fosse o que é e este mundo fosse o melhor dos mundos). Com isto, mais não faz do que requentar Nietzsche, que levou bem mais a sério a sua crítica do mundo como fábula, da linguagem como mentira vital, da verdade como metáfora, do sujeito como construção periclitante e do conhecimento como ilusão perspectivista - e enlouqueceu. Muitos "modernos" serão também levados à loucura e ao suicídio por uma pulsão trágica, enquanto que a pulsão lúdica do espírito pós-moderno o leva a jogar criativamente com o desconcerto do mundo.

A aventura moderna do moderno

A história do moderno nos últimos 250 anos - o processo daquilo a que frequentemente chamamos ainda "a nossa" modernidade - é a história de uma dialéctica, de uma tensão criativa e de uma afirmação irreversível. A dialéctica é a daquela rede de contradições que leva a razão crítica a degenerar em razão instrumental e mesmo totalitária, e que ficou conhecida por "dialéctica da Aufklärung" (ou do Iluminismo), o título do importante livro de Theodor Adorno e Max Horkheimer (de 1944); a tensão criativa é a que resulta do choque, extremamente produtivo, entre a arte e o social, que se instala o mais tardar com o Romantismo (no Norte da Europa, em França e na Alemanha, essa tensão surge já antes); e a afirmação irreversível é a do postulado kantiano da autonomia estética (também ele já prenunciado na publicação da primeira Estética, a de Baumgarten, em 1750, que dá o golpe de misericórdia nas poéticas normativas dominantes). Este postulado da Terceira Crítica de Kant assinala a rotura definitiva com as tutelas da arte: apesar das repetidas tentativas de tutelagem, que continuam a fazer-se hoje por meios bem mais subtis do que a teologia, o poder absoluto ou as ideologias totalitárias, a nossa consciência do estético tornou-se desde então inseparável da ideia de um domínio com autonomia, se não absoluta, pelo menos relativa.

Da convergência destes três movimentos, que se iniciam todos, embora não em simultâneo, na segunda metade do século XVIII, nasce o dinamismo de uma ideia que é ainda em larga medida a nossa ideia do "moderno" (alguns marcos mais tardios, muitas vezes referidos como balizas da nossa modernidade sociológica e estética - em particular os casos de Marx e de Baudelaire - mais não são do que etapas e desenvolvimentos deste processo, que vem de Rousseau, de Kant e do primeiro Romantismo alemão). Esta ideia do moderno tem alimentado, quer a produção artística, quer a reflexão sobre ela, e também teorias e polémicas sem fim, a ponto de hoje podermos falar, paradoxalmente, de uma "tradição do moderno", que parece ter chegado a um certo esgotamento, nomeadamente no que se refere à proliferação de discursos sobre a modernidade.

Antoine Compagnon explorou, em Les cinq paradoxes de la modernité (1990), esta tradição-traição de uma modernidade que se torna tradicional (tradição essa que hoje - e isto é o pós-moderno em estado puro! - se faz passar pelo climax da modernidade), ou de uma superstição do novo que - como já Hans Magnus Enzensberger viu em 1962, ao escrever sobre as aporias da vanguarda -, na sua ânsia de ser sempre mais novo, se esgota rapidamente, entrando num ciclo do eterno retorno de um mesmo que se quer fazer passar por outro. Mas isto tem mais a ver com a idolatria futurista ou com a obsessão (edipiana) da morte da arte, de que as vanguardas precisam para se afirmar, do que com aquele culto melancólico do novo - e este é outro paradoxo - que trai em Baudelaire aquela que terá sido talvez a mais produtiva contradição dos "modernos" desde o Romantismo: a tensão entre a vontade do novo (a "religião do futuro", como lhe chama Compagnon, na esteira de Baudelaire) e a nostalgia das origens - quer estas se chamem Idade Média idealizada, regresso à natureza, primitivismo, "anywhere out of this world" (nos Poèmes en prose de Baudelaire), atavismos de vária ordem, ou até mesmo aquela mítica adoração futurista da máquina mais como dinamismo puro, manifestação de força e energia (a par da guerra), do que como produto da técnica moderna. Só neste contexto se entende o "spleen" baudelairiano (o "j'ai plus de souvenirs que si j'avais mille ans"), a atracção do "poète actif" pelas multidões, ou a referência de Baudelaire ao progresso como "ce fanal obscur" ("esse facho obscuro"), que ilumina o caminho para diante mas ao preço, elevadíssimo, do mergulho no obscurantismo da alienação. A melhor alegoria desta visão dúplice do progresso será porventura a conhecida Tese IX de Walter Benjamin "Sobre o conceito da História", em que o Anjo do novo, de costas para o futuro, é empurrado por um vendaval que sopra do paraíso, tendo à sua frente um montão de ruínas (um dos poetas mais emblemáticos do modernismo do século XX, Paul Valéry, repete a imagem no seu Mon Faust, quando escreve: "nous entrons dans l'avenir à reculons"). E a mesma contradição sustenta, ainda em Baudelaire, a escrita, já não simbólica, mas modernamente alegórica, de poemas como "O cisne" ("Paris change!, mais rien dans ma mélancolie / N'a bougé! (...) tout pour moi devient allégorie") e, em última análise, a própria ideia da modernidade como o lugar de encontro do fugidio e do eterno, tal como surge no sempre citado soneto "À une passante", ou, melhor definida, em "O pintor da vida moderna", "este solitário dotado de uma imaginação activa, sempre viajando pelo grande deserto do homem (...) [e que] procura qualquer coisa a que nos permitiremos chamar a modernidade (...). Trata-se, para ele, de retirar da moda aquilo que ela pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório (...). A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável" (Baudelaire 1993: 21).

Estamos no centro (até cronologicamente falando) de um processo de modernidade como crise, intuída, mas ainda não plenamente assumida, pelos românticos (e já por Rousseau, no plano do pensamento), vivida por Baudelaire em meados do século XIX (vivida ainda como um inesgotável e excitante manancial para a criação), e interiorizada, cerebralizada e extremada por Pessoa, que da consciência da crise fez quartel-general da sua inquietude. Nele, essa crise é já só consciência crítica, hiperlúcida e trágica, sem o júbilo sonhador ou a elevação transcendental dos românticos, o inebriamento melancólico de Baudelaire, ou o visionarismo de Rilke. O que se deu, neste processo crítico, nesta viagem da modernidade pela crise, foi a passagem da idade clássica a uma aventura romântico-moderna em que a possibilidade de experiência (Erfahrung, no diagnóstico de Walter Benjamin), objectivada em tradições e convenções da língua e dos símbolos da vida colectiva, dá lugar à solidão radical da vivência (Erlebnis em Benjamin), ou da vivência radical, fruto da "invenção do indivíduo" pelos Romantismos.

Esta dicotomia podia transpor-se, numa análise das duas modernidades aqui implícitas - a iluminista e a "modernista", ou a filosófica e a estética - para a própria relação entre estas duas vertentes do processo histórico e artístico desde o século XVIII. A relação entre as duas, uma convivência tensa desde o início, é definida por um sociólogo como Alain Touraine em função do que considera serem as duas grandes figuras da modernidade: a Razão e o Sujeito. De facto, assim é. E é bom não esquecer que o dinamismo e a produtividade teórica e estética da nossa modernidade se devem essencialmente ao facto de a segunda destas figuras - o Sujeito - se ter transformado desde logo na consciência crítica da primeira: ao longo do século XIX, torna-se evidente como a afirmação da liberdade individual entra em conflito com as pretensões universalistas de uma Razão que a princípio se apresenta triunfante e absoluta, para progressivamente se ir remetendo a um lugar já só instrumental, nas sociedades do consumo e da comunicação. Touraine vê nesta razão instrumental a sua versão mais modesta e suave, e advoga - na linha do consenso racional de um Jürgen Habermas - a necessidade de uma redefinição da modernidade por via de um consenso novo entre Razão e Sujeito, em sociedades (como a nossa - quem diria?) onde se perdeu a noção do espaço público - que, ironicamente, é o berço da primeira modernidade, a iluminista - e onde houve uma regressão para um estado de coisas em que se acentuou o fosso entre "os poderosos e o povo" (os "guerreiros conquistadores" - hoje combatendo nas Bolsas de todo o mundo! - e as "pessoas vulgares") (Touraine 1993:16).

Há alguma ingenuidade nesta utopia de recorte idealista, que lembra em muito Habermas e o seu esforço para manter vivo, por respiração artificial, o cadáver - adiado talvez para um século pós-pós-moderno - do grande projecto das Luzes (7). Também Marshall Berman, autor de um conhecido livro sobre "a aventura da modernidade", Tudo o Que É Sólido se Dissolve no Ar (um título tomado de empréstimo ao Manifesto Comunista), parece sofrer da nostalgia de um núcleo da modernidade que é o de um século XIX algo heróico, mas hoje manifestamente arredado dos nossos horizontes. Essa modernidade terá sido a de uma espécie de primeira "globalização", conduzida pelo espírito de uma modernização febril, de "um tipo de experiência vital e ambiental que une a espécie humana" (Berman 1989: 15), mas é ao mesmo tempo combatida por uma plêiade notável de figuras a que Berman, ambiguamente, chama "os grandes modernistas do século XIX", e na qual inclui nomes tão díspares como Marx e Kierkegaard, Nietzsche e o anarquista Max Stirner, Whitman e Ibsen, Baudelaire e Rimbaud, Carlyle e Melville, Strindberg e Dostoievski. Estes e outros "modernistas" formam, para o autor americano, a galeria olímpica daqueles que gostam de viver em perigo e de abarcar o incomensurável. Será neles, e no seu espírito, que Nietzsche pensa quando fala de "nós, os modernos, nós, os semibárbaros". O século XX, inventando uma arte a que também chama moderna, ter-se-á, com isso "esquecido" desta sua tradição de "vida moderna", emancipando-se, pela arte, da modernidade do século XIX. Outros afirmarão, pelo contrário, que o século XX se liga, precisamente pela sua arte, ao século anterior: penso que a tese faz sentido, para um período muitas vezes vagamente referido como "o século XIX", mas altamente complexo e diferenciado, e que foi, mais do que qualquer outro, a um tempo epigonal e seminal. Berman contrapõe, no entanto, os dois momentos históricos como se cada um deles constituisse uma unidade coesa, para concluir que o século XX estagna e regride, cristaliza num "monolito fechado" (a arte autónoma, para a qual Adorno já encontrara uma metáfora semelhante, a da "mónada sem janelas"). No século XIX, visto como "fase autêntica" de uma modernidade dinâmica, totalizante e dialéctica, sabia-se que a tecnologia e a organização social condicionam o destino do homem, e combatia-se isso; no século XX (estranhamente visto por Berman como uma época de elites sem poder crítico), desde os movimentos modernos e as "vanguardas da pura revolta" até à nova esquerda dos anos sessenta e ao pós-modernismo, apenas se sabe!

É uma visão duvidosa e saudosista, que pretende ressuscitar para o século XX o que considera ser o "modernismo" dinâmico e dialéctico do século XIX, não parecendo entender como no século XX é precisamente a arte - e sobretudo a arte dos movimentos ditos modernos ou de vanguarda, naturalmente elitista, como sempre - que absorve essa dialéctica produtiva da contradição entre o social e o humano (ou o estético), para denunciar, embora silenciosa e indirectamente, a dialéctica negativa de um progresso enredado nas suas próprias contradições, a que Adorno deu expressão filosófica. São precisamente autores como Adorno ou, na sua esteira, Peter Bürger e Hans Robert Jauss, o Henri Lefebvre de Introduction à la modernité e Antoine Compagnon, ou, entre nós, José Bragança de Miranda (com a sua reflexão agudíssima em Analítica da Actualidade), que farão as leituras mais amplas e mais críticas do processo histórico e estético da "nossa" modernidade, que não é una, mas múltipla, que é certamente ainda a das Luzes, mas também, no plano da arte, a de um século que, esse sim, é verdadeiramente ainda o nosso: o século XX. "Modernos" não podem continuar a ser, neste século que já começa no anterior, os seguidores do modelo realista-naturalista, mas apenas aqueles que, já desde Baudelaire - que, nisso, é nosso contemporâneo - proclamam e praticam uma estética antinaturalista, a do "surnaturel", que liquida o ideal clássico, supera o simbolismo transcendental romântico e, ao virar do avesso a natureza, atinge também mortalmente a moral (que, nessa altura, já é a dupla moral burguesa que Freud e Simmel viriam a escalpelizar no fim do século). Veja-se, por exemplo, o que Baudelaire escreve no capítulo "O elogio da maquilhagem" de O Pintor da Vida Moderna: "A natureza não ensina nada, ou quase nada (...), a natureza não pode senão aconselhar o crime";"A virtude, pelo contrário, é artificial, sobre-natural"; "A mulher tem, de facto, o direito, e cumpre ao mesmo tempo uma espécie de dever, ao aplicar-se a parecer mágica e sobre-natural (...). Deve, portanto, recorrer a todas as artes para obter os meios de se elevar acima da natureza"; "O artifício não embeleza a fealdade, podendo apenas servir a beleza" (Baudelaire 1993: 49-53).

São esses modernos de pleno direito, os prematuros da modernidade no auge do realismo e do positivismo, que levam por diante a "rebelião do Belo contra o Bom da sociedade burguesa", como bem viu Adorno em Minima Moralia. Não de forma idealista, mas "alegoricamente", assimilando pela primeira vez a indústria e o mundo urbano, para chegarem à desconcertante afirmação de um novo "realismo", tão sui generis como o da "nova mitologia" dos primeiros românticos alemães. Ao afirmar "Tout bon poète fut toujours réaliste", Baudelaire reincide na sua ideia de uma modernité sem tempo (porque já tocada por um sopro de eternidade), mas com um lugar definido e inconfundível, neste caso o da Paris da haussmanização e das grandes exposições universais (lugar simbólico, aliás, já que a partir daí nunca mais a arte verdadeiramente moderna se libertará dessa presença referencial e tutelar da técnica e do social - embora às vezes pareça fazê-lo, e no fundo aspire sempre a fazê-lo). É por isso que Hans Robert Jauss, ao traçar a génese da nossa modernidade em quatro etapas, desde os dois Discours de Rousseau (Discurso sobre as Ciências e as Artes, de 1750, e Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, de 1754) , defende a ideia de que o modernismo (esteticista) de Baudelaire releva de uma tendência dominante na época, que, contra algumas interpretações já clássicas (como a de Walter Benjamin em Charles Baudelaire, um Poeta na Fase do Capitalismo Tardio), é uma estética da não-autonomia da arte, que assimila - na poesia como na fotografia - a art social, a art utile e a art industriel (Jauss 1989: 93-94). Jauss "salva", assim, este esteticismo inicial, no qual reconhece uma "tendência progressista", do mesmo modo que Adorno atribui a toda a arte moderna o duplo estatuto de autonomia e fait social.

Este duplo estatuto perder-se-á, porém, na evolução posterior a Baudelaire, com a insistência, em Mallarmé e no Esteticismo - francês, inglês, português, alemão - do Fin-de-siècle, nos princípios da arte pela arte. É isso que explica a reacção violenta dos modernismos propriamente ditos e das vanguardas históricas (que, no fundo, mais não é do que a manifestação de uma edipiana "morte dos pais"), quer se pense na absorção frenética do dinamismo da vida urbana no "simultaneísmo" dos Expressionistas de Berlim em 1910 (ou da pintura dos Delaunay e dos Futuristas italianos), no poème-conversation de Apollinaire em 1912, nos primeiros poemas de estilo chocantemente coloquial de T. S. Eliot em 1917, nas colagens da arte "Merz" de Kurt Schwitters a partir de 1918, ou na rotura dadaísta, entre 1916 e 1922, e, naturalmente, na revolução surrealista, de 1924 ao fim da década.

É da reflexão sobre esta fase da história do moderno, a que nos habituámos a chamar Modernismo - e que constitui provavelmente o único lapso de tempo (1910 a 1930) que, no contexto estético da história desta categoria, merece o nome de época - que nascem algumas das sínteses mais importantes e das definições mais pregnantes do "moderno", da "arte moderna" e, em íntima ligação com ela, da "Modernidade": as de Henri Lefebvre e Gilbert Durand, as de Adorno e Peter Bürger. Na impossibilidade de comentar aqui cada uma destas leituras em particular, destaco aquilo que me parece aproximá-las, para lá das diferenças - nalguns casos abismais - dos pressupostos teóricos e ideológicos que as orientam (por exemplo, o marxismo de Lefebvre versus a mito-análise de Durand). E o que as aproxima será o reconhecimento, comum a todas, da indissociável relação entre o estético e o social, que leva a que todos estes autores, partindo da afirmação da primazia e da autonomia (relativa) do estético, se interessem por uma via que é a de uma "sociologia do imaginário" moderno (a expressão é de Gilbert Durand), e não apenas por uma fenomenologia imanentista da "obra" moderna (Peter Bürger acentuará o facto de a própria noção de obra ser posta em causa pelas vanguardas, sobretudo por Dada), ou por uma mera tipologia dos Ismos (as grandes obras modernas não cabem em nenhum Ismo). O "moderno" refere-se, então, a um processo amplo e não compartimentável, processo de transformação social, de instabilização das consciências e de renovação, nunca vista antes, das linguagens artísticas (digamos, entre 1850 e 1930). Começando por ser uma reflexão incipiente, espartilhada entre um Romantismo agonizante e um Realismo nascente, entre a metafísica idealista e o positivismo científico, entre restos de absolutismo e a afirmação, minada de contradições, do liberalismo e do socialismo, essa "modernidade" tacteante irá gerar um Modernismo estético definido por Lefebvre como "a consciência exaltante-exaltada do Novo", introduzindo certezas programáticas onde antes existia interrogação e reflexão crítica (Lefebvre 1962: 10). Lefebvre definirá a modernidade, nos alvores deste processo, através das relações, opostas, de Marx e Baudelaire com o mundo burguês (suprema abstracção na teoria marxiana da alienação e matéria concreta da nova poesia, na poética de Baudelaire), para concluir que "a modernidade, na sociedade burguesa, será a sombra da revolução possível e falhada, a sua paródia" (Ibid., 174). A grande revolução moderna não será, de facto, a revolução política (a não ser que se pense na grande Revolução de 1789). De uma forma ou de outra, nos séculos XIX e XX todas as revoluções fracassaram, das movimentações liberais à Comuna, da revolução bolchevique ao nazismo e ao fascismo. Ela será, sim, a revolução da linguagem poética (para ecoar um célebre título de Julia Kristeva sobre os modernos franceses) ou, talvez melhor, das linguagens artísticas. Na fase heróica da Modernidade e dos Modernismos, essa revolução ganharia foros de rebelião contra o discursivismo realista-naturalista (mas também político-parlamentar), e afirmar-se-ia através de duas vias que abarcam o que de mais significativo e decisivo nos deixaram os Modernismos euro-americanos: a do silêncio (na literatura experimental e hermética) e a do grito (do desespero niilista à espectacularidade futurista). Estes dois gestos, que a certa altura degeneram em pose, convergem nesse emblemático testemunho de uma modernidade que oscila entre o simbolismo e o expressionismo, e que é "O Grito", de Edvard Munch (1909) - um grito silencioso, reprimido, angustiado e universalmente humano.

Para Gilbert Durand, silêncio e grito corresponderiam às figuras, em que se apoia para desenvolver a sua "mito-análise" da modernidade à luz de uma "sociologia das profundezas", de Hermes (ou Orfeu) e Prometeu, figuras também traduzíveis por: mito e racionalidade. Segundo esta sua leitura de "implicação mítica", moderno será, para Durand, o discurso predominantemente "dilemático", e não afirmativo (Durand 1983: 8-10). Por seu lado, Theodor Adorno (na Teoria Estética, publicada em 1970, tradução portuguesa 1982), vê na arte moderna múltiplos aspectos daquilo a que chama o seu "duplo carácter": a abstracção (a recusa do empírico) que radica no sensível, a autonomia que é também fait social (porque transporta consigo a recusa da alienação do real e porque se recusa à "chantagem" da reconciliação com a negatividade desse real, como fez a arte realista), ou a historicidade que lhe vem da sua mais intransigente afirmação de imanência trans-histórica, sinal da sua universalidade. Só assim se compreende que Beckett possa ser o "grande realista" de meados do século XX, o melhor "espelho" de um estado de coisas, social e existencial, do mundo: esta é uma afirmação que hoje entendemos muito melhor, e daí talvez o regresso de Godot e de Oh, les beaux jours aos palcos. A "anti-arte" abstracta de Beckett e de tantos outros "modernos" e "modernistas", precipitadamente estigmatizada como "desumana" por Ortega em 1925, é de facto o Outro da sociedade totalitária e alienada e de relações humanas, elas, sim, cada vez mais abstractas (Adorno 1970: 53).

No mesmo sentido se poderia dizer, com Peter Bürger (cf. Bürger 1974), que modernos são aquele espírito e aquela prática artística que levam os movimentos de vanguarda - O Dadaísmo e o Surrealismo, aqui opostos, não tanto aos Modernismos, mas ao Esteticismo do Fim-de-Século, que terá esvaziado a arte de qualquer função - a reconduzir a arte à praxis e à vida, paradoxalmente através de processos de construção-desconstrução radicalmente opostos a quaisquer princípios organicistas ou vitalistas, que tinham estruturado a categoria estética da "obra" desde o período clássico-romântico até ao próprio Expressionismo modernista, do qual Dada violentamente se distancia. A aventura moderna do moderno, que começara com Baudelaire e a sua transfiguração alegórica do mundo urbano e dos começos da dissociação do sujeito nele, alcança aqui um clímax com as proclamações da morte da obra e da morte da arte, e do seu renascer nas práticas transsubjectivas, de inspiração construtivista ou onírica, de Dada e do Surrealismo.

Um tempo português

Em Portugal, esta aventura moderna do moderno teve também os seus pensadores, cronistas e analistas, mas quase sempre - com a excepção recente de Bragança de Miranda - com referência apenas à nossa própria literatura (e muitas vezes só à nossa poesia), e de um modo disperso e ambíguo. Eduardo Lourenço faz geralmente remontar o primeiro momento importante da nossa "modernidade" literária às Odes Modernas de Antero (como, aliás, já Fernando Pessoa havia feito), enquanto que Fernando Guimarães se tem preocupado em traçar a genealogia dos "movimentos modernos" até às suas raízes no século XIX, para fundamentar as suas teses, hoje já pouco contestadas, de uma continuidade entre Simbolismo e Modernismo. Outros, como sabemos, propuseram antes teses afins, indo mesmo mais atrás, até ao Romantismo - o caso de Octavio Paz -, não deixando, porém, de ser contestados por aqueles que viram nos modernismos do século XX uma rotura, mais do que uma sutura, em relação ao Romantismo (é o caso, por exemplo, do brasileiro José Guilherme Merquior). Entre nós, a discussão não tem, porém, sido, nem intensa nem muito sistemática. É sintomático o facto de o Dicionário de Jacinto do Prado Coelho não incluir um artigo sobre "Modernidade", um conceito hoje inflaccionado, vago e demasiado abrangente. Os modernistas portugueses das duas "gerações" sabiam melhor do que falavam quando usavam o termo "moderno" (embora também o não tenham propriamente pensado). Pessoa usa-o já em 1910, no artigo sobre "A nova poesia portuguesa", com referência à poesia desde Nobre e Antero (este é também considerado o "ponto de partida" das transformações literárias portuguesas modernas no artigo "On Modern Portuguese Literature" [1912?]), embora noutros textos "moderno" seja praticamente equivalente de simbolista ("A arte moderna é a arte do sonho" [1913?]) ou referido como uma "transição" entre Romantismo e Modernismo. Na fase sensacionista é este Ismo que representa o "movimento" moderno por excelência, já que terá superado, tanto o simbolismo/paulismo como o nacionalismo saudosista (cf. Páginas Íntimas e de Auto-interpretação), enquanto que noutras ocasiões (no Livro do Desassossego e em textos incluídos nas Páginas de Estética, de Teoria e Crítica Literária [PE]) as menções ao moderno se alargam à arte do seu tempo, vista como "aristocrática" ("A arte moderna é aristocrática":PE, 158). Mais tarde, no Prefácio à Antologia de Poemas Portugueses Modernos, organizado com António Botto em 1929, recusa-se o uso do termo "moderno" em sentido genérico ("O termo 'moderno' nada significa em si mesmo"), mas volta-se a defini-lo, agora para o caso português, com referência a Antero: "No caso presente, entendemos por poemas portugueses modernos os dos poetas portugueses que têm data literária desde a Escola de Coimbra, e incluindo essa escola". Porque, acrescenta-se, "esta escola foi o renascimento da poesia portuguesa" (Páginas de Doutrina Estética, 135-36). Uma coisa, porém, parece certa: para Pessoa, a arte moderna não é o Futurismo, porque este "é uma fotografia abstracta das coisas" e a arte é "antifotográfica e concreta" (PE, 161). Moderno parece ser então para Pessoa, não o abstraccionismo nem o realismo, mas "qualquer coisa de intermédio", que não cabe nas batalhas dos Ismos, mas é comum a muitos deles e tem a ver com uma "atitude" em que entram, tanto o snobismo como a originalidade, o comportamento anti-burguês e a vontade de negação, o cosmopolitismo e a autonomia estética. É o que parece estar contido na fórmula lapidar do Livro do Desassossego, que já citei, e onde se diz que "ser moderno é escapar às regras e dizer cousas inúteis".

Para Almada Negreiros, que tem por vezes o cuidado de distinguir entre os Modernos (os Modernistas) e os "Novos" (grupo mais consciente da oposição radical entre novo e velho, no qual se inclui), ser moderno é, num registo diferente do de Pessoa, estar à la page, ser anti-académico e anti-passadista, mas sem vinculação a um movimento específico (cf. "Modernismo", 1926) - é ser "futurista e tudo", mas não necessariamente modernista: esses são os de Orpheu, enquanto os "Novos" que se juntam num Comício no Chiado Terrasse em 1921 são apenas "um grupo de rapazes que quer entrar para a SNBA!" A ideia - e a distinção novo-velho, e também novo-moderno - é retomada em 1934 (em "'Os Pioneiros' - Para a história do movimento moderno em Portugal") e 1936 (em "Fundadores da Idade Nova"), sem que, no entanto, se chegue a definir, literaria e esteticamente, os conceitos, como tinha feito, por exemplo, o manifesto de Apollinaire "L'esprit nouveau et les poètes", de 1917. A confusão é grande: José Augusto França constata que só em 1914 apareceu o termo "modernismo", usado por um crítico de jornal, mas aplicado aos simbolistas-decadentes do Porto (os de Lisboa prefeririam chamar-se, mais ou menos meteoricamente, Sensacionistas ou Futuristas). O termo (Modernismo) será fixado mais tarde pela geração da presença, mas apenas para referir o grupo de Orpheu, e para ser, a dado passo, mais ou menos "tabuizado", transformado em etiqueta desse passado próximo de que Régio e Gaspar Simões se distanciam. Já em 1928 o Notícias Ilustrado, ao historiar o nosso Modernismo, escrevia que os verdadeiros modernistas eram "os precursores" (do segundo Modernismo).

O arquitecto Carlos Ramos daria ainda uma definição de Modernismo (desta vez por oposição a Nacionalismo, que teria a ver com o lugar onde se nasce) que me interessa por destacar a dimensão cosmopolita e a importância do tempo no moderno. Escreve Carlos Ramos no número 3 da revista Sudoeste, em 1935: "Modernismo é o estado de consciência proveniente do conhecimento exacto da hora em que uma pessoa viu a luz do dia". Curiosa definição. Ser moderno é então uma questão de tempo, não de lugar. Há, realmente, uma "topofobia" nos modernos, já assinalada (em O Sentimento Trágico da Vida) por Unamuno, que não gostava de modernismos nem de "maluquices futuristas", que vê os modernistas como gente que anda à deriva, sem identidade nem lugar próprio (esquece-se de que a identidade dos modernistas por toda a Europa era um estado de espírito, e que o seu lugar próprio era a arte, de Paris a Berlim e de Lisboa a S. Petersburgo). É um facto que a perspectiva temporal sempre foi determinante para a compreensão daquilo a que se vem chamando "moderno" desde a Querelle...: Baudelaire define a modernidade com recurso às noções de instante e eternidade, os modernos do início do século e o tardo-modernismo de meados de novecentos sempre fizeram do tempo e da temporalidade, dos mistérios da durée e da memória, os seus grandes temas. A obra moderna é, assim, aquela que, no seu universalismo cosmopolita, absorve ou anula o espaço, com vista à fixação do sentido da sua modernidade na figura de uma eternidade desvinculada das contingências espaciais e da "cor local". A arte moderna apostou na "eternidade" de categorias como a forma, a estrutura ou o "ponto" que tudo absorve e transforma em puro subjectivismo. É mais um dos paradoxos do moderno, esta pretensão de, rejeitando a fixação espacial, dar expressão ao tempo através de figuras da intemporalidade. Herberto Helder deixou a mesma ideia, formulada de modo quase genial, numa passagem de Cobra (p. 60): "A única meditação moderna é sobre o nó / absorvendo a madeira toda." Nesta expressiva imagem podem estar todos os sentidos do processo recente da modernidade que temos vindo a seguir: a concentração (simbolista) do mundo no pormenor ou (modernista) no Eu; a dialéctica do moderno em Baudelaire, entre o pontual e o ilimitado; a expressão da crise da linguagem discursiva na viragem do século, particularmente num documento-chave como a célebre Carta de Lord Chandos, de Hofmannsthal; a processualidade iminentemente metonímica da poesia de Pessoa (cf. J. Barrento, O Espinho de Sócrates, pp. 91 segs.), ou já o pós-moderno e a sua proclamação do fim das grandes narrativas.

Modernos e pós-modernos

O destino do conceito de "moderno" na nossa actualidade, que, faute de mieux, dele se serve para a si mesma se definir, é curioso e paradoxal. A contemporaneidade há muito que sentiu necessidade de o sacudir, incomodada que andava, desde os anos sessenta, com o que considera ser ainda a dureza, a inflexibilidade, um sentido absoluto e programático dos modernos (leia-se: modernistas), incompatível com a era da contingência e da disseminação, da "dispersão sem princípio tutor" (Eduardo Prado Coelho, "O homem de areia", Público ["Mil Folhas"], 24 de Fevereiro de 2001). A incompatibilidade é real, apesar de ser igualmente possível traçar genealogias, sobretudo a nível de processos estéticos (menos de estados de consciência), entre o moderno e o pós-moderno. Mas um sistema que pretendesse abarcar e relacionar esses dois momentos que absorvem o último século, teria de ser um sistema de oposições. Um quadro sintético que quisesse enumerar algumas delas, no plano filosófico e no estético, poderia ter a seguinte configuração, ou outra semelhante:

Modernidade/ Modernismo Pós-Modernidade/ Pós-Modernismo

- Racionalidade
- Pensamento "duro"
- Pensamento da unidade
- Totalidades sistemáticas
- Pensamento dialéctico (Estrutura)
- Sentido do trágico
- Sentido ético
- Eticização da estética
- Programas (vinculativos, unilaterais)
- Um pensamento adentro de uma filosofia da história
- Crítica das ideologias
- Vivência crítica da crise
- Superstição do 'novo'
- Arte do profundo e do elementar
- Purismo estético
- Culto da originalidade
- Ironia séria
- Subjectivismo sem sujeito
- "Desumanização"? (abstracção)

- Crítica da razão/ irracionalismo
- Pensamento "debole"
- Pensamento da "diferença"
- Fragmentação assistemática
- Pensamento "aberto" (Desconstrução)
- Sentido do lúdico
- Vazio ético
- Estetização da ética e da política
- "Valores" (flexíveis, referenciais)
- Fim da história,"pós-história"
- Fim das ideologias
- Convivência acrítica com as crises
- Reciclagem e revivalismos
- Arte do superficial e do acidental
- Eclectismo
- Culto da intertextualidade
- Paródia e humor
- Sujeitos (sem subjectivismo)
- Re-humanização? ('reality-shows', 'realismo urbano')

(In)actualidade do moderno

Que aconteceu entretanto ao "moderno" e à sua assimilação pelos movimentos designados de Modernismos? O modernismo teve o destino diagnosticado (por Enzensberger, Sanguinetti, Peter Bürger) a todas as vanguardas: desgastaram-se e esgotaram-se. O que um dia foi contra-cultura, prática simbólica de rotura iconoclasta e radical, transformou-se num objecto de quase suspeição por parte de uma cultura hoje dominante, incaracterística e sem perfil claro: o chamado pós-modernismo. O modernismo é hoje visto (também pela crítica literária) como cultura obsoleta, ou pelo menos como matéria já só histórica, muitas vezes objecto de rejeição ou ironia - quer a cultura artística dos modernismos, quer a das grandes causas políticas ou éticas, quer ainda a de uma cultura filosófica crítica e informada pelo niilismo. Tudo isso se tornou património de uns dinossáurios que fizeram as últimas aparições por 1968, para depois (nos Estados Unidos, já mesmo por essa altura) darem lugar a outro bicho mítico, o pós-modernismo, a que um dia chamei o "unicórnio do século" (todos falam dele, mas nunca ninguém o viu de corpo inteiro - pela simples razão de que ele nunca teve um corpo inteiro).

O modernismo foi uma cultura da rotura em profundidade, que virou do avesso os paradigmas racionalistas, positivistas e realistas; o pós-moderno é uma cultura do radical em extensão, numa convivência sem complexos. O que antes era rigorismo radical, com limites bem definidos, transformou-se hoje num culto do radical pelo radical. O que antes foi rasurado - o Eu, o sujeito: mas não a subjectividade - expõe-se hoje sem limites e sem subjectividade nos 'talkshows' e nos 'reality shows', na literatura do "realismo urbano total": o Eu exterior, o corpo sem interioridade, só com uma alminha feita de faits divers, emoções mesquinhas, biografias rasas. Lúdicas e puramente anódinas. A cultura pós-moderna, diferentemente da moderna, não é crítica nem rigorista, é performativa e transgénica, híbrida e permeável, quase já só tem corpo e sexo. O resultado: um enorme tédio, porque não se pode ir mais longe do que o corpo, e porque a banalização do gesto pretensamente extremo nos deixa cada vez mais indiferentes. Radicais, dir-se-á, foram os modernos, Nietzsche e Sá-Carneiro, Bataille e Cioran. Mas também eles sofreram o destino, hoje claramente diante dos nossos olhos, de todos os modernos: tornaram-se "antigos", envelheceram. Os modernos estão hoje - no que diz respeito a uma eventual presença actuante na cultura contemporânea - mortos e enterrados. Mas o sentido do "moderno", esse continua aí, mais vivo do que nunca - se por moderno entendermos, não o que nos vem dos discursos históricos, esgotados, sobre a modernidade, mas o presente vivo e a sua urgência, a experiência de uma actualidade que é fundamento de liberdade, acto e criação ou, como escreve Bragança de Miranda a propósito da noção de actualidade em Foucault, "o agir livre que se efectiva no combate que se joga entre o existente e o possível, o presente e o actual" (Bragança de Miranda 1998: 74). Para Foucault, que privilegiava a acepção do moderno em Baudelaire, "a modernidade é um modo de ser da actualidade, cujo sentido está em aberto, que se joga dia a dia, acto a acto" (Ibid., 78). É o que quer dizer a pergunta, colocada já em 1829 pelo dramaturgo alemão Christian Dietrich Grabbe na boca de Fausto, na peça Dom João e Fausto [em cena na Cornucópia]: "Valerá menos o que acontece no mundo do que a história do mundo?" (I, ii).

Eu diria que não.

 

NOTAS

(1) Em A Arte do Romance, Milan Kundera comenta a recusa do romancista Hermann Broch em seguir o "modernismo titulado" (i. é académico) em nome da oposição a uma fórmula, a do "romance tradicional", onde cabem, sem distinção, nada mais nada menos do que quatro séculos de romance (A Arte do Romance. Lisboa: D. Quixote, 1988, p. 84).

(2) O mesmo se não pode dizer de Rimbaud e da sua reivindicação, totalmente vaga, "Il faut être absolument moderne!", nem do seu émulo alemão, o poeta Arno Holz, quando escreve, num poema de 1886: "...Moderno deve ser o poeta, / Moderno dos pés à cabeça!".

(3) Cf. J. Barrento (Org.), Literatura Alemã. Textos e Contextos (1700-1900). Vol. II. Lisboa: Presença 1989, pp. 225-227.

(4) Isto, para não adoptarmos um ponto de vista ainda mais radical, como o de Carlo Michelstaedter, o mítico autor triestino de Persuasão e Retórica (1913), para quem só há dois tempos na História, o grego e o pós-grego (o cristão, ou já o da filosofia abstracta do pós-socratismo, que assinala a morte da palavra viva e da experiência), e para quem "o nosso tempo é medido por uma escala epocal longuíssima, onde a noção de modernidade, por exemplo, deixa de ter sentido" (António Guerreiro, O Acento Agudo do Presente. Lisboa, Cotovia, 2000, p. 129).

(5) A ideia de "pós-modernidade" remonta a Nietzsche e à sua proposta de superação da cultura moderna da decadência e do niilismo pela figura do "sobre-homem". O termo aparece já, referido a essa superação, num ensaio do autor alemão Rudolf Pannwitz ("A crise da cultura europeia") em 1917. Num contexto histórico-literário, "pós-modernismo" é já usado na América Latina e nos Estados Unidos desde os anos trinta do século XX (Borchmeyer 1994: 347 segs.)

(6) Que os Antigos continuam a ser venerados pela Idade Média adentro, mostra-o a influente metáfora de S. Bernardo (de Chartres), segundo a qual os seus contemporâneos (os modernos, que se vangloriavam de ver mais longe) seriam apenas anões aos ombros de gigantes (os Antigos). A metáfora, transmitida por John of Salisbury, perdurará até ao século XVII (cf. Bragança de Miranda, 1994, pp. 176 e 200-201).

(7) J. Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: D. Quixote, 1990; e Die neue Unübersichtlichkeit [A Nova Opacidade]. Frankfurt: Suhrkamp, 1985.

Bibliografia sumária (e citada)

- Theodor Adorno, Ästhetische Theorie. Frankfurt, 1970 (Ed. portuguesa: Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1982)

- João Barrento, O Espinho de Sócrates. Lisboa: Presença, 1987

- Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna. Trad. Teresa Cruz. Lisboa: Vega, 1993

- Marshall Berman, Tudo o Que É Sólido se Dissolve no Ar. A aventura da moder nidade. Lisboa: Edições 70, 1989

- Dieter Borchmeyer, "Postmoderne", in: D. Borchmeyer/V. Zmegac (Eds.), Moderne Literatur in Grundbegriffen

[Conceitos Fundamentais da Literatura Moderna]. Tübingen, 1994

- Peter Bürger, Theorie der Avantgarde. Franfurt, 1974 (Trad. portug.: Teoria da Vanguarda. Trad. de Ernesto Sampaio.

Lisboa: Vega, 1993)

- Matei Calinescu, Faces of Modernity. Avant-Garde, Decadence, Kitsch. Bloomington: Indiana University Press, 1977

- Antoine Compagnon, Les cinq paradoxes de la modernité. Paris: Seuil, 1990

- Comunicação e Linguagens, Nr. 6/7 (1988) ("Moderno / Pós-moderno")

- Gilbert Durand, Mito e Sociedade. A mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1983

- Hans Magnus Enzensberger, "Die Aporien der Avantgarde", in: Einzelheiten II. Frankfurt, 1962 (Trad. portug. em: Tempo Brasileiro, Nr. 26-27, Jan°-Março 1971)

- Leslie Fiedler, "The New Mutants" [1965] e "Cross the border and close the gap" [1968], in: Collected Essays. New York: Stein & Day, 1971

- José Ortega y Gasset, La deshumanización del arte [1925]. Madrid: Revista de Occidente, 6a. ed., 1960 (trad. portug.:

A Desumanização da Arte. Lisboa: Vega, 1996)

- Fernando Guimarães, Simbolismo, Modernismo e Vanguardas. Lisboa: INCM 1982.

- Id., Os Problemas da Modernidade. Lisboa: Presença, 1994

- Jürgen Habermas, Die neue Unübersichtlichkeit [A Nova Opacidade]. Frankfurt, 1985

- Id., O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: D. Quixote, 1990

- Hans Robert Jauss, Studien zur Epochenwandel der ästhetischen Moderne [Estudos sobre as transições epocais da

modernidade estética]. Frankfurt, 1989

- Henri Lefebvre, Introduction à la modernité. Paris: Minuit, 1962

- Eduardo Lourenço, "Sentido e não sentido do moderno", in: Ocasionais I. Lisboa: A Regra do Jogo, 1984

- José Guilherme Merquior, Formalismo e Tradição Moderna. S. Paulo: Editora Forense Universitária, 1974

- Id., O Fantasma Romântico. Petrópolis: Vozes, 1980

- Henri Meschonnic, Modernité, modernité. Paris: Verdier, 1988

- José Bragança de Miranda, Analítica da Actualidade. Lisboa: Vega, 1994

- Id., Traços. Ensaios de Crítica da Cultura. Lisboa: Vega, 1998

- J. Almada Negreiros, Obras Completas. Vol. 5: Ensaios I. Lisboa: Estampa, 1971; Vol. 6: Textos de Intervenção. Lisboa: Estampa, 1972.

- Octavio Paz, Los hijos del limo. México, 1974 (trad. francesa: Point de convergence. Du Romantisme à l'avant-garde. Paris: Gallimard, 1976)

- Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (LD). Ed. Jacinto do Prado Coelho e Maria Aliete Galhoz. 2 vols. Lisboa: Ática 1982

- Id., Páginas de Doutrina Estética. Ed. Jorge de Sena. Lisboa: Editorial Inquérito s.d. [1946]

- Id., Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Ed. G. R. Lind e J. Prado Coelho. Lisboa: Ática 21973

- Id., Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Ed. G. R. Lind e J. Prado Coelho. Lisboa: Ática 1966

- Alain Touraine, Critique de la modernité. Paris: Fayard, 1992

- Gianni Vattimo, O Fim da Modernidade. Lisboa: Presença, 1987.