Os lugares de uma experiência
A programação artística
de Porto 2001 tem trazido, desde o início do ano, algumas
boas surpresas. Não sendo este o momento de referir as exposições
de Serralves (onde por sinal se pode ver uma admirável retrospectiva
de Fernando Lanhas a merecer todo o destaque pela leitura compreensiva
e globalizadora que faz da totalidade de uma obra singular que,
como tal, mereceria divulgação internacional) nem
os cuidados postos na programação pelas melhores galerias
da cidade, deveremos referir, pela importância e oportunidade,
uma outra que se intitulou A Experiência do Lugar.
Comissariada por Miguel V.H. Perez e por Paulo Cunha e Silva, esta
exposição propôs-se, julgo que acertadamente,
dar a ver alguns dos equipamentos científicos da cidade,
particularmente faculdades, através da intervenção
de dez artistas contemporâneos escolhidos com rigor e sentido
de actualidade.
Deslocando assim, na perspectiva desse sinal que ascende em muita
da arte actual, dos convencionais lugares da arte a própria
experiência artística para a sua presença em
specific sites. Os resultados não são igualmente estimulantes,
ainda que o conjunto da inicitiva revele uma aposta inteligente
ao nível do seu próprio projecto.
Diria que dos dez projectos, aqueles que mais evidentemente se distinguem,
o fazem precisamente porque foram capazes de integrar a relação
com o espaço e com as figuras (ou personagens) próprias
desses espaços para que foram realizadas. Os demais, os que
se atenderam apenas a prolongamentos ocasionas das obras dos respectivos
autores, esses claudicaram prejudicando a intenção
implícita da própria exposição.
Numa leitura breve, e necessariamente simplista, procurarei então
caracterizar, em pouco mais do que numa legenda, estas dez intervenções
que resultaram, no seu conjunto, numa das até agora mais
estimulantes exposições do ano na cidade.
Aproveitando, já que de faculdades se trata, para lhes atribuir
"notas" numa escala de zero a dez, tomando assim com alguma distância
irónica esta função sempre ambígua que
é a de julgar a obra alheia.
1. Rui Chafes (8/10)
Trata-se de uma obra a vários títulos
notável. Composta por duas peças, uma de exterior
e outra de interior, a obra de Rui Chafes reencena algumas das suas
preocupções temáticas e formais sem todavia
esquecer a sua inserção concreta. Assim, a peça
no interior da estufa do Jardim Botânico consiste numa aproximação
feliz ao universo romântico (neste caso quase pré-rafaelita)
que o artista tanto tem explorado, fazendo sentir a presença
dos motivos insistentes da doença e da morte, enquanto a
de exterior, na sua magnitude grave, deixa que nela se projecte
um sentimento de espera. É, uma vez mais, a capacidade de
Chafes de reinvestir na escultura actual uma densidade dramática
que poucos artistas de hoje (e não só em Portugal)
conseguem fazer com tanto rigor, leveza e capacidade de fugir ao
óbvio.
Não passará isto sem referir uma outra obra de Chafes
actualmente na cidade (na exposição do Teatro do Campo
Alegre), obra de uma densidade invulgar e de um sentido único
de dramaturgia, que só o confirmam na posição
cimeira a que ascendeu no plano da arte europeia actual. Esta última
obra, embora realizada noutro contexto, a merecer a classificação
máxima, com distinção e louvor.
Secreta Soberania, Jardim Botânico da
Faculdade da Universidade do Porto
2. Gerardo Burmester (8/10)
A obra de Burmester há muito que
pedia esta oportunidade. Saír da galeria (ou do Museu) para
se inscrever na relação com um espaço exterior
à arte.
Aqui o artista mostrou-se totalmente à altura desse desafio,
ao integrar no seu universo temático complexo elementos materiais
do Instituto de Biologia Molecular e Celular, aproximando com grande
intensidade de relação os seus temas e materiais daqueles
que integram o espaço onde realizou a sua obra.
Um clima de estranheza fóbica, quase de pesadelo, desprende-se
então da obra projectada, que por vezes excede um pouco na
direcção de um certo barroquismo o modo de se casar
com esses elementos.
Em todo o caso a confirmação de uma capacidade que
este artista sempre demonstrou de ir para além da mera circunstância
expositiva circunscrita, para atender a relações de
espaço mais complexas e mais estimulantes. De onde se incompreender,
uma vez mais, a sua ausência em mais colecções
públicas representativas da arte portuguesa actual.
Destaque-se ainda a obra que igualmente apresenta na mostra do Teatro
do Campo Alegre.
"Igual com igual", Instituto de Biologia Molecular e Celular
da Universidade do Porto
3. Pedro Cabrita Reis (6/10)
Sendo Cabrita Reis um dos mais notáveis
artistas contemporâneos portugueses, isto é, um daqueles
cuja responsabilidade é maior (bastará recordar a
admirável exposição que ainda recentemente
se viu em Serralves desta obra luminosa e plena de originalidade)
não julgo que a sua intervenção tenha sido,
neste caso, das mais felizes.
O pequeno poço que imaginou (sequente na sua obra como quase
imagem de marca ) para se relacionar com a grande esfera do Planetário
não vai muito além desta relação de
escalas, metáfora da relação do humano com
o universo, numa aproximação evidentemente inteligente,
mas que ainda assim carece de uma intensidade que esteja à
altura da sua própria aventura poética.
O Poço, Planetário do Porto
4. Julião Sarmento
(10/10)
Trata-se, diria que felizmente, de uma obra
polémica. Aproveitando as novas tecnologias digitais de interactividade,
Julião Sarmento produziu um pequeno filme-video em que uma
bela mulher se dirige descaradamente aos espectadores para os prender
da leitura de um texto algo obsceno de Clara Ferreira Alves.
Integrada na Biblioteca da Faculdade de Letras, a peça tem
uma eficácia perversa, fazendo justiça às temáticas
que se podem esperar de Sarmento, mas uma vez mais surpreendendo
pelo carácter de inovação e de mudança
de meios que são, na obra do artista, modos de fugir a uma
imagem de marca que o quer fixar como simples pintor.
A surpresa, o descaramento perverso e o gosto pelo escândalo
e pelo erotismo marcam esta obra que, tal como outras que o artista
vem desenvolvendo paralelamente à sua pintura, o confirmam
no lugar totalmente singular que a sua obra ganhou (muito tardiamente)
no estreito contexto artístico português, depois de
longamente ter encontrado o seu reconhecimento num alto plano internacional.
Charm, Faculdade
de Letras
5. Pedro Tudela (9/10)
A obra de Tudela, tendo-se distinguido nos
últimos anos pelo modo como soube integrar temáticas
difíceis como a doença ou a morte ou, mais em geral,
as referências quase obsessivas ao universo hospitalar ganha,
nesta presença discreta na Faculdade de Farmácia,
um fulgor surpreendente.
E surpreendente não tanto pela aposta numa certa espectacularidade
(o que acontece com a sua peça no Teatro do ampo Alegre),
como antes e mais precisamente pela sua capacidade de se manter
num nível de subtileza complexa e quase imaterial.
Obra densa de consequências, a fazer a ponte inteligente entre
os mecanismos da criação artística e os universos
violentos do funcionamento da máquina do corpo.
A muitos títulos um trabalho exemplar.
Pharmacia, Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto
6. Augusto Alves da Silva
(5/10)
Sendo um dos artistas da chamada geração
de 90 que mais incisivamente foi capaz de definir uma intervenção
marcada pelo signo do rigor, Alves da Silva não foi capaz
de ir, nesta sua intervenção no Instituto de Medicina
Legal, além de um certo decorativismo.
As fotografias que ali colocou, consequentes quanto à lógica
do seu projecto, não conseguem relacionar-se com o lugar
dominando-o. Ao contrário, sendo imagens de uma leveza quase
tocante (que contrasta com a violência simbólica do
Instituto) elas rapidamente são devoradas por essa violência,
pelo que perdem a eficácia do diálogo com tão
mórbido espaço.
Por outro lado, não poderei deixar de entender que, para
afrontar um lugar de tais memórias e de tal representação
no espaço urbano, talvez não fosse fácil de
encontrar o artista que, no contexto português, tivesse uma
obra capaz de lidar com esse mesmo plano de representação.
Penso, por exemplo, no caso de um Robert Gober, cujas peças
de fria meditação sobre a temática da morte
decerto encontrariam ali lugar de mais forte afrontamento.
4 fotografias e 1 um vídeo, Instituto de Medicina Legal do
Porto
7. Helena Almeida (9/10)
Sem trair os pressupostos do seu trabalho,
Helena Almeida relaciona o seu trabalho com o espaço da Faculdade
de Ciências recorrendo a uma força subtil que é
constante no seu trabalho. No vetusto edifício, cheio de
memórias, a artista intervem cruzando com a sala onde expõe
imagens de si mesma, em quase performance, que realizou nessa mesma
sala.
Imagens com esse índice de perturbação a que
nos habituou longamente numa vasta obra sem concessões, cuja
montagem exemplar gera uma espécie de relação
inquietante com o espaço, obrigando-o a tornar-se num espaço
comunicante em que mutuamente se articulam as memórias da
ciência com a interrogação sobre o corpo de
que fez tema próprio desde há quase três décadas.
A Experiência do Lugar, Faculdade
de Ciências
8. Cristina Mateus (10/10)
Trata-se de uma das intervenções
mais conseguidas, a meu ver, a desta jovem artista cujo trabalho
se tem vindo a afirmar com cada vez maior intensidade nos anos mais
recentes.
Num espaço quase esconso do Museu da Faculdade de Medicina,
Cristina Mateus realizou, tendo para isso empregue uma série
de elementos pertencentes ao espaço, uma intervenção
que se voltou quer para um rearranjo desses mesmos elementos quer
para uma utilização de material filmográfico
que reconverteu em video.
Intervenção disceta e eficaz que soube tomar em conta
as vicissitudes do lugar fazendo por dentro a sua experiência
e transformando um Museu de História da Medicina num laboratório
de interrogações que é um dos índices
mais fortes que percorrem a arte actual.
Group reject, Museu de História da Medicina da Universidade
do Porto
9. Miguel Palma (10/10)
É, quanto a mim, a peça mais
tocante. Num imenso espaço reservado a futro laboratório
de experiências científicas, o artista colocou uma
enorme pista sobre a qual corre, absurdamente um pequeno automóvel.
A imagem tem uma eficácia surpreendente, questionando muito
do que é a situação do homem contemporãneo
entregue a um universo tecnológico desumanizado em que fica
como figura isolada na proporção da sua integração.
Agindo como que tele-comandado por forças que em muito o
ignoram. A eficácia da peça passa também pela
relação com o novo edifício de Engenharia,
colosso arquitectónico de proporção inusitada,
quase faraónica.
Peça feliz de um artista que, com um percurso discreto, marcou
nitidamente a arte portuguesa da última década, inovando-a
na sua linguagem e na sua actualização em termos de
diálogo com os contextos internacionais.
2,5 Km a 100 à hora, Faculdade de Engenharia da Universidade
do Porto
10. Joana Vasconcelos (4/10)
É talvez a intervenção
menos conseguida. O que tanto mais surpreende quanto a artista é
já um nome firme da nova constelação da arte
portuguesa recente.
Aqui Joana Vasconcelos não foi além do óbvio,
relacionando a Faculdade de Ciência do desporto do Porto com
uma espécie de monumento kitsch ao glorioso, isto é,
ao clube que disputa a aficción de todo o pequeno e médio
portuense que se preza.
Todavia a relação é frágil porque nem
a Faculdade é um espaço do clube nem essa ponte em
si mesma faz qualquer senido. Trata-se de uma peça que parece
isolar-se da necessidade de trabalho conceptual que tal encomenda
requeria para se auto-legitimar num contentamento vagamente autista.
Assim sendo, com a sua exaltação de veludos sintéticos,
ruidosos hinos e taças em plástico que evocam as vitórias
do clube, a peça de Joana Vasconcelos, que habitualmente
é inteligente e desconcertante nas suas intervenções,
não vai além de uma cumplicidade ambígua com
o gosto de uma pequena burguesia suburbana, dominada pela alienação
futebolística, sem jamais ser capaz de interrogar as razões
profundas dessa dominação que parece aceitar como
uma fatalidade de que se ri. Mas o facto é que se ri apenas
de si mesma.
Ouro sobre azul, Faculdade de Cìências do Desporto
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