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  Navegar - De regresso à(s) base(s) Sobre "Reality < media < data < database" de Patrícia Gouveia

  [ Maria Teresa Cruz ]

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Between poets

Jizo



 

 

Será possível uma ciberarte? Esta pergunta, a que alguns, mais decididos, responderam já quer pela pela positiva, quer pela negativa, continuará por certo, bem ou mal, a inquietar alguns espíritos? Na maior parte das vezes, a resposta terá ficado submersa na degladiação das denominações - «arte digital», «media art» ou arte dos novos meios, «arte interactiva», etc. - ou no debate acerca pretensões de um prosseguimento mais ou menos revolucionário do que chamamos a História da Arte. É talvez necessário colocar esta pergunta na sua maior simplicidade, mas também na sua maior dureza: haverá uma arte possível no domínio do cibernético, isto é, da ciência do «controlo» (na definição de Wiener)? Haverá algum injunção possível entre o espaço cibernético e o espaço da arte? Da resposta a esta pergunta depende algo mais do que o reconhecimento estético de um conjunto de novas práticas (o hipertextual, o multimedia, a interactividade, a conectividade, etc.) ou do que a assunção crítica de mais uma dissolução dos destinos da arte. Se a modernidade da arte se reconhece num certo combate (triumfante ou não) em torno da experiência como liberdade, a possibilidade de uma poética do ciberespaço, como espaço do «controlo» (tese subscrita por Deleuze e muitos outros), é de certa forma essencial para os destinos da própria cultura.

Ao contrário do que sublinham a maior parte das narrativas sobre a arte moderna, o seu combate não se fez apenas (nem talvez essencialmente) em torno da história, alinhando novidades, revoluções e superações. A luta contra a persistência da tradição é uma luta no espaço, e não apenas no tempo. No seu conjunto, a aventura da arte moderna é a de exploradores, em luta contra os territórios aparentemente fixados da vida, do imaginário, e do simbólico, em nome de um espaço sem definição ou extensão, que seria, por isso mesmo, poético. Um campo infinitamente expandido e sem contorno definido é o resultado contemporâneo mais visível da experiência artísitica do século XX.

Assim sendo, deverá reconhecer-se que o ciberespaço, nascido entre os prognósticos da ciência (de Wiener) e os da ficção cientíca (de Gibson), como espaço do «controlo» , mas também da «alucinação», isto é, da libertação relativamente ao peso do real e também do simbólico, como promessa de uma espécie de imaginário realizado ou, pelo menos, actual, não poderia deixar de interessar às explorações da arte. A dimensão do virtual, agora associada às novas tecnologias da informação, mobiliza assim, compreensivelmente, esse pathos exploratório do espaço, que dominou uma arte apostada em dissolver rigidezes, fronteiras, contornos e limites.

No geral, a cultura contemporânea parece abandonar, aliás, o teritório da história e da temporalidade, para se fixar na temática do espaço. A ideia de um «fim da história» ou, ainda, a ideia de um eclipse das dimensões do tempo no eterno presente sem espessura do instantâneo e do «tempo real», dominam alguns dos diagnósticos persistentes da experiência contemporânea. Este presente parece jogar-se, cada vez mais, na sua relação com um novo espaço, fluído, desterritorializado e globalizado, que é de facto informacional. O fenómeno das redes de informação e, especificamente, o da internet e o da world wide web fornecem, por ora, um dos exemplo mais evidentes do que podemos pensar como ciberespaço. E, não por acaso, estes fenómenos polarizam, nos nossos dias, alguns dos debates mais correntes sobre o tema da liberdade.

Por um lado, o carácter reticular do espaço das redes de informação depende interiramente de um conjunto de protocolos associados a quaisquer trajéctórias nele efectuadas, o que torna qualquer uma dessas trajectórias imediatamente retraçável pelo próprio sistema. O ciberspaço aproxima-se de facto, nesta medida, de um espaço de controlo, de um novo modelo potencial de vigilância, onde, sem impôr barreiras, tudo se torna imediatamente localizável e cartografável. Por outro lado, o seu carácter aberto, o seu tipo de crescimento e sua configuração em rede acentrada, essencialmente não programáveis, e ainda a equivalência informacional de tudo e de todos que nela circulam, sugerem um espaço de imanência e de plasticidade essenciais. Por isso, o «rizomático» se tornou na imagem da utopia libertária da internet. Da alguma consistência desta utopia testemunham, pelo menos, os esforços vindos de instituições políticas tradicionais, para impor à rede alguma forma de controlo.

Na sua economia e simplicidade, as propostas de Patrícia Gouveia, dirigem-se ao essencial e apontam para o que é mais habitualmente esquecido sob os grandes termos: o ciberespaço é o não espaço ou o efeito de espaço gerado pela manipulação de bases de dados. « reality > media > data > database », que a autora agora apresenta, em instalação (Lugar Comum, Oeiras) como uma «projecção de bases de dados», força a uma constatação aparentemente simples: a estrutura essencial do ciberespaço é a da colecção de elementos que podem ser textos, imagens, sons, etc.. sem formar qualquer espécie de totalidade, sem nada que os unifique ou os envolva. Donde a apresentação mais ou menos caótica que Patrícia Gouveia faz das suas peças: por exemplo, para «Between poets»: «editor html, lisboa à noite, flash, mensagens de código, frases, beat, jjmi tenor, postais ilustrados, dreamweaver 3, sñor coconut e su conjunto, lali puna, lugar, sons, city lights bookstore, imagens, autobiografia, animações cool edit 2000, ruído, virgens,... ». Em última análise, como diz Lev Manovitch,«não há espaço no ciberespaço»; como não há ambiente, envolvimento ou mundo, ou seja, tudo aquilo que o ciberespaço necessita então de simular («ambientes virtuais», «mundos virtuais»), nas interfaces construídas para aceder a essas bases de dados. O que caracteriza o ciberespaço, e muito particularmente o da internet, é essa estrutura essencialmente discontínua das bases de dados. Por isso a questão da ligação adquire aí uma explicitação técnica fundamental e, ao mesmo tempo, obssessiva, nos links e hyperlinks que se reunem a estas colecções de elementos.

«Between poets» é um espaço todo ele feito de discontininuidade e de intersticialidade. O seu tema é, curiosamente, o de dois espaços geográficos e culturais, duas cidades (Lisboa e S. Francisco), que a internet permite, como dizemos, «ligar». A ligação técnica vem aparentemente fazê-las comungar de um mesmo espaço - o ciberespaço. Mas, na verdade, não há espaço comum possível, apenas intersticialidade. Neste entre-cidades, o espaço é aquilo mesmo que se eclipsa, sendo superido por um conjunto de bases de dados, relativos a cada uma dessas cidades, que podem ser imagems, mas também sons, palavras ou frases. O «espaço comum» entre Lisboa e S. Francisco, pode bem ser, assim, o da poesia de Herberto Helder e de Lawrence Ferlinghetti, o de uma «conversa» entre os dois poetas. O «entre-cidades» virtual, não é naturalmente uma cidade (metáfora contudo recorrente dos sites da internet), tão pouco um espaço, mas uma outra forma de ler poesia, alicerçada nas lógicas possívies das bases de dados.

Uma tal concepção do ciberespaço, ditada antes de mais pela sua própria realidade tecnológica, não deve ser tomada como uma constatação meramente pragmática e desmistificadora do ciberespaço. Na verdade, o seu reconhecimento fornece a chave de uma certa visão inevitável do mundo, na era da informação e das redes de informação: o mundo como um conjunto infindável de colecções de dados. A progressiva transferência da experiência para o ciberespaço parece estar a impor, inevitavelmente, esta forma arquivista ao todo da cultura. A base de dados transforma-se assim, ainda segundo Manovitch, na «nova forma simbólica da era do computador», da mesma forma que a perspectiva o foi por longo tempo para a visualidade e a narrativa para a textualidade. Ao contrário destas outras formas, a base de dados não distingue entre sons, imagens, ou texto (por isso se generaliza, continuamente, a todos os materiais da cultura) e, sobretudo, não impõe nenhuma unificação, nenhum princípio de totalização.

Daí, a súbita impressão de absoluta equivalência de todos os materiais e, ainda, a súbita impressão de liberdade da sua manipulação, que muitos celebram já como o fim da distinção entre criadores e receptores, ou entre produtores e consumidores. «Liberdade fatal», diz Finkelkraut, num texto recente sobre a internet, pois, a ser verdadeira, nos privaria da «exterioridade», do «não-eu» «do que nos escapa», condenando-nos a nós mesmos como a uma espécie de «vontade tirana», que o homem do telecomando (ou o «espectador tirano», como lhe chamava precisamente Fellini), começou a exercitar, já há algum tempo, sobre o seu pequeno ecrã doméstico. A «interactividade», que toma cada vez mais conta de uma percepção aparelhada pela técnica, fazendo dela o reflexo de um conjunto de acções possíveis sobre as coisas, é o nome corrente que alguns dão hoje à liberdade, nos padrões já de si degradados de uma liberdade como liberdade de escolha. À operação de «zapping», juntam-se, no ciberespaço as operações de «clicking» e «surfing», operações aparentemente irrisórias, com as quais o homem do teclado e do rato, intervém contudo numa certa ordem do mundo, pelo menos, impedindo-o de assumir uma figuratividade estável pela qual a cultura costumava zelar. O zelo vai agora para a possibilidade dsse gesto mínimo do «clicar» colocar ao nosso alcance mais uma escolha ou mais uma pequena modulação do (nosso) mundo.

Em «Jizo» («Deus das crianças, das mulheres grávidas e dos viajantes »), esse gesto adquire um inquietante desafio. Dedicado ao problema da imensidade de crianças sem mundo, sem família, sem cuidados e sem alimentação, Jizo, confronta-nos com uma colecção proliferante de rostos e de sons de crianças, e com excertos de textos de Robyn Davidson e Yves Simon. «Crianças, avalanches de crianças», e de choros ou chamamentos, que parecem dizer, «somos demasiadas» (Lugares Desertos, Robyn Davidson). O gesto irrisório de «clicar» ou mover de um lado para o outro do ecrã cada uma dessas imagens anónimas, parece ser o convite a uma escolha que, contudo, não estamos preparados para fazer: «Esta criança sem programa é a minha» (O Viajante Magnífico, Yves Simon ). As bases de dados tornam-se neste caso uma importuna presença e a relação interactiva uma incumprível promessa.

O ciberespaço parece ser, pois, mais pródigo em forjar «data-dandies» (Geert Lovink) , do que novos cidadãos de um novo mundo, livres e interventivos. Tal como as primeiras metrópoles modernas forjaram, de certa forma, o «flâneur», o ciberespaço esataria em vias de forjar o coleccionador de bases de dados. Mas, ao passo que o flâneur ainda tinha um espaço ou um manto envolvente, mesmo que desestruturado - o da cidade, o da multidão - o «data dandy» desliza («faz surf») no universo fluído da informação, activando à sua passagem «arquitecuras líquidas» (Marcos Novak) que se modelam e animam à sua passagem. Tudo nesse universo sugere, de facto, uma nova arquitectura, que convida a entrar. Mas, na verdade, no ciberespaço não há espaço (como diz Manovitch) apenas trajectórias. O «data dandy» está sempre de visita. Visitar um «site» - entrar e sair - são as operações permanentes da navegação e, por isso, se chama também ao cibernauta um «visitante».

«Visita» e «visistar», diz Michel Serres (em Les cinq sens) «significam primeiramente olhar e ver; e acrescentam-lhe a ideia de itinerário - aquele que visita, vai ver». Visitar é assim uma percepção itinerante e excursiva; não percepção do movimento, em que nos treinou o cinema, mas percepção em movimento, que segue as inflecções, desvios e inclinações dos próprios sentidos, a convite das interfaces multisensoriais, dos sons, das imagens, dos grafismos animados que vamos encontrando. A percepção torna-se a experiência capaz de, a todo o momento, inflectir imediatamente a direcção, deixar-se atrair como uma «agulha magnética» (Serres), sem mobilizar a atenção ou a concentração, e sem se deixar fixar. A arquitectura virtual, animista (e não cinética) - «arquitectura que respira, late, salta como uma forma e aterra como outra» (Marcos Novak) - desafia os nossos hábitos perceptivos. Parece ser essa por ora a maior virtude da interacção no ciberespaço - uma tactalidade distraída, que se exercita pelo uso e pelo hábito, como previa já Walter Benjamin (em «A obra de arte…»). Esta forma de recepção táctil seria, aliás, característica da arquitectura, a qual assumiria então «um valor canónico», porque, acrescenta Benjamin, «as tarefas que são apresentadas ao aparelho da percepção humana, em épocas de mudança histórica, não podem ser resolvidas por meios apenas visuais, ou seja, da contemplação».

As arquitecturas de «reality > media > data > database» colocam ao seus visitantes todos estes desafios, inerentes à construção de trajectórias no não espaço que é o ciberespaço. Elas não simulam vestíbulos, câmaras, geografias ou paisagens, pois a navegação, de base em base, sabe que não chega nunca a terra.