Será possível
uma ciberarte? Esta pergunta, a que alguns, mais decididos,
responderam já quer pela pela positiva, quer pela negativa,
continuará por certo, bem ou mal, a inquietar alguns espíritos?
Na maior parte das vezes, a resposta terá ficado submersa
na degladiação das denominações - «arte
digital», «media art» ou arte dos novos meios, «arte interactiva»,
etc. - ou no debate acerca pretensões de um prosseguimento
mais ou menos revolucionário do que chamamos a História
da Arte. É talvez necessário colocar esta pergunta
na sua maior simplicidade, mas também na sua maior dureza:
haverá uma arte possível no domínio do cibernético,
isto é, da ciência do «controlo» (na definição
de Wiener)? Haverá algum injunção possível
entre o espaço cibernético e o espaço da arte?
Da resposta a esta pergunta depende algo mais do que o reconhecimento
estético de um conjunto de novas práticas (o hipertextual,
o multimedia, a interactividade, a conectividade, etc.) ou do que
a assunção crítica de mais uma dissolução
dos destinos da arte. Se a modernidade da arte se reconhece num
certo combate (triumfante ou não) em torno da experiência
como liberdade, a possibilidade de uma poética do ciberespaço,
como espaço do «controlo» (tese subscrita por Deleuze e muitos
outros), é de certa forma essencial para os destinos da própria
cultura.
Ao contrário do que
sublinham a maior parte das narrativas sobre a arte moderna, o seu
combate não se fez apenas (nem talvez essencialmente) em
torno da história, alinhando novidades, revoluções
e superações. A luta contra a persistência da
tradição é uma luta no espaço, e não
apenas no tempo. No seu conjunto, a aventura da arte moderna é
a de exploradores, em luta contra os territórios aparentemente
fixados da vida, do imaginário, e do simbólico, em
nome de um espaço sem definição ou extensão,
que seria, por isso mesmo, poético. Um campo infinitamente
expandido e sem contorno definido é o resultado contemporâneo
mais visível da experiência artísitica do século
XX.
Assim sendo, deverá
reconhecer-se que o ciberespaço, nascido entre os prognósticos
da ciência (de Wiener) e os da ficção cientíca
(de Gibson), como espaço do «controlo» , mas também
da «alucinação», isto é, da libertação
relativamente ao peso do real e também do simbólico,
como promessa de uma espécie de imaginário realizado
ou, pelo menos, actual, não poderia deixar de interessar
às explorações da arte. A dimensão do
virtual, agora associada às novas tecnologias da informação,
mobiliza assim, compreensivelmente, esse pathos exploratório
do espaço, que dominou uma arte apostada em dissolver rigidezes,
fronteiras, contornos e limites.
No geral, a cultura contemporânea
parece abandonar, aliás, o teritório da história
e da temporalidade, para se fixar na temática do espaço.
A ideia de um «fim da história» ou, ainda, a ideia de um
eclipse das dimensões do tempo no eterno presente sem espessura
do instantâneo e do «tempo real», dominam alguns dos diagnósticos
persistentes da experiência contemporânea. Este presente
parece jogar-se, cada vez mais, na sua relação com
um novo espaço, fluído, desterritorializado e globalizado,
que é de facto informacional. O fenómeno das redes
de informação e, especificamente, o da internet
e o da world wide web fornecem, por ora, um dos exemplo mais
evidentes do que podemos pensar como ciberespaço. E, não
por acaso, estes fenómenos polarizam, nos nossos dias, alguns
dos debates mais correntes sobre o tema da liberdade.
Por um lado, o carácter
reticular do espaço das redes de informação
depende interiramente de um conjunto de protocolos associados a
quaisquer trajéctórias nele efectuadas, o que torna
qualquer uma dessas trajectórias imediatamente retraçável
pelo próprio sistema. O ciberspaço aproxima-se de
facto, nesta medida, de um espaço de controlo, de um novo
modelo potencial de vigilância, onde, sem impôr barreiras,
tudo se torna imediatamente localizável e cartografável.
Por outro lado, o seu carácter aberto, o seu tipo de crescimento
e sua configuração em rede acentrada, essencialmente
não programáveis, e ainda a equivalência informacional
de tudo e de todos que nela circulam, sugerem um espaço de
imanência e de plasticidade essenciais. Por isso, o «rizomático»
se tornou na imagem da utopia libertária da internet. Da
alguma consistência desta utopia testemunham, pelo menos,
os esforços vindos de instituições políticas
tradicionais, para impor à rede alguma forma de controlo.
Na sua economia
e simplicidade, as propostas de Patrícia Gouveia, dirigem-se
ao essencial e apontam para o que é mais habitualmente esquecido
sob os grandes termos: o ciberespaço é o não
espaço ou o efeito de espaço gerado pela manipulação
de bases de dados. « reality > media > data > database
», que a autora agora apresenta, em instalação (Lugar
Comum, Oeiras) como uma «projecção de bases
de dados», força a uma constatação aparentemente
simples: a estrutura essencial do ciberespaço é a
da colecção de elementos que podem ser textos, imagens,
sons, etc.. sem formar qualquer espécie de totalidade, sem
nada que os unifique ou os envolva. Donde a apresentação
mais ou menos caótica que Patrícia Gouveia faz das
suas peças: por exemplo, para «Between
poets»: «editor html, lisboa à noite, flash, mensagens
de código, frases, beat, jjmi tenor, postais ilustrados,
dreamweaver 3, sñor coconut e su conjunto, lali puna, lugar,
sons, city lights bookstore, imagens, autobiografia, animações
cool edit 2000, ruído, virgens,... ». Em última
análise, como diz Lev Manovitch,«não há
espaço no ciberespaço»; como não
há ambiente, envolvimento ou mundo, ou seja, tudo aquilo
que o ciberespaço necessita então de simular («ambientes
virtuais», «mundos virtuais»), nas interfaces construídas
para aceder a essas bases de dados. O que caracteriza o ciberespaço,
e muito particularmente o da internet, é essa estrutura essencialmente
discontínua das bases de dados. Por isso a questão
da ligação adquire aí uma explicitação
técnica fundamental e, ao mesmo tempo, obssessiva, nos links
e hyperlinks que se reunem a estas colecções
de elementos.
«Between
poets» é um espaço todo ele feito de discontininuidade
e de intersticialidade. O seu tema é, curiosamente, o de
dois espaços geográficos e culturais, duas cidades
(Lisboa e S. Francisco), que a internet permite, como dizemos, «ligar».
A ligação técnica vem aparentemente fazê-las
comungar de um mesmo espaço - o ciberespaço. Mas,
na verdade, não há espaço comum possível,
apenas intersticialidade. Neste entre-cidades, o espaço é
aquilo mesmo que se eclipsa, sendo superido por um conjunto de bases
de dados, relativos a cada uma dessas cidades, que podem ser imagems,
mas também sons, palavras ou frases. O «espaço comum»
entre Lisboa e S. Francisco, pode bem ser, assim, o da poesia de
Herberto Helder e de Lawrence Ferlinghetti, o de uma «conversa»
entre os dois poetas. O «entre-cidades» virtual, não é
naturalmente uma cidade (metáfora contudo recorrente dos
sites da internet), tão pouco um espaço, mas uma outra
forma de ler poesia, alicerçada nas lógicas possívies
das bases de dados.
Uma tal concepção
do ciberespaço, ditada antes de mais pela sua própria
realidade tecnológica, não deve ser tomada como uma
constatação meramente pragmática e desmistificadora
do ciberespaço. Na verdade, o seu reconhecimento fornece
a chave de uma certa visão inevitável do mundo, na
era da informação e das redes de informação:
o mundo como um conjunto infindável de colecções
de dados. A progressiva transferência da experiência
para o ciberespaço parece estar a impor, inevitavelmente,
esta forma arquivista ao todo da cultura. A base de dados transforma-se
assim, ainda segundo Manovitch, na «nova forma simbólica
da era do computador», da mesma forma que a perspectiva o foi por
longo tempo para a visualidade e a narrativa para a textualidade.
Ao contrário destas outras formas, a base de dados não
distingue entre sons, imagens, ou texto (por isso se generaliza,
continuamente, a todos os materiais da cultura) e, sobretudo, não
impõe nenhuma unificação, nenhum princípio
de totalização.
Daí, a súbita
impressão de absoluta equivalência de todos os materiais
e, ainda, a súbita impressão de liberdade da sua manipulação,
que muitos celebram já como o fim da distinção
entre criadores e receptores, ou entre produtores e consumidores.
«Liberdade fatal», diz Finkelkraut, num texto recente sobre a internet,
pois, a ser verdadeira, nos privaria da «exterioridade», do «não-eu»
«do que nos escapa», condenando-nos a nós mesmos como a uma
espécie de «vontade tirana», que o homem do telecomando (ou
o «espectador tirano», como lhe chamava precisamente Fellini), começou
a exercitar, já há algum tempo, sobre o seu pequeno
ecrã doméstico. A «interactividade», que toma cada
vez mais conta de uma percepção aparelhada pela técnica,
fazendo dela o reflexo de um conjunto de acções possíveis
sobre as coisas, é o nome corrente que alguns dão
hoje à liberdade, nos padrões já de si degradados
de uma liberdade como liberdade de escolha. À operação
de «zapping», juntam-se, no ciberespaço as operações
de «clicking» e «surfing», operações
aparentemente irrisórias, com as quais o homem do teclado
e do rato, intervém contudo numa certa ordem do mundo, pelo
menos, impedindo-o de assumir uma figuratividade estável
pela qual a cultura costumava zelar. O zelo vai agora para a possibilidade
dsse gesto mínimo do «clicar» colocar ao nosso alcance mais
uma escolha ou mais uma pequena modulação do (nosso)
mundo.
Em «Jizo»
(«Deus das crianças, das mulheres grávidas e dos viajantes
»), esse gesto adquire um inquietante desafio. Dedicado ao problema
da imensidade de crianças sem mundo, sem família,
sem cuidados e sem alimentação, Jizo, confronta-nos
com uma colecção proliferante de rostos e de sons
de crianças, e com excertos de textos de Robyn Davidson e
Yves Simon. «Crianças, avalanches de crianças», e
de choros ou chamamentos, que parecem dizer, «somos demasiadas»
(Lugares Desertos, Robyn Davidson). O gesto irrisório
de «clicar» ou mover de um lado para o outro do ecrã cada
uma dessas imagens anónimas, parece ser o convite a uma escolha
que, contudo, não estamos preparados para fazer: «Esta criança
sem programa é a minha» (O Viajante Magnífico,
Yves Simon ). As bases de dados tornam-se neste caso uma importuna
presença e a relação interactiva uma incumprível
promessa.
O ciberespaço parece
ser, pois, mais pródigo em forjar «data-dandies» (Geert
Lovink) , do que novos cidadãos de um novo mundo, livres
e interventivos. Tal como as primeiras metrópoles modernas
forjaram, de certa forma, o «flâneur», o ciberespaço
esataria em vias de forjar o coleccionador de bases de dados. Mas,
ao passo que o flâneur ainda tinha um espaço ou um
manto envolvente, mesmo que desestruturado - o da cidade, o da multidão
- o «data dandy» desliza («faz surf») no universo
fluído da informação, activando à sua
passagem «arquitecuras líquidas» (Marcos Novak) que se modelam
e animam à sua passagem. Tudo nesse universo sugere, de facto,
uma nova arquitectura, que convida a entrar. Mas, na verdade, no
ciberespaço não há espaço (como diz
Manovitch) apenas trajectórias. O «data dandy» está
sempre de visita. Visitar um «site» - entrar e sair - são
as operações permanentes da navegação
e, por isso, se chama também ao cibernauta um «visitante».
«Visita» e «visistar», diz
Michel Serres (em Les cinq sens) «significam primeiramente
olhar e ver; e acrescentam-lhe a ideia de itinerário - aquele
que visita, vai ver». Visitar é assim uma percepção
itinerante e excursiva; não percepção do movimento,
em que nos treinou o cinema, mas percepção em movimento,
que segue as inflecções, desvios e inclinações
dos próprios sentidos, a convite das interfaces multisensoriais,
dos sons, das imagens, dos grafismos animados que vamos encontrando.
A percepção torna-se a experiência capaz de,
a todo o momento, inflectir imediatamente a direcção,
deixar-se atrair como uma «agulha magnética» (Serres), sem
mobilizar a atenção ou a concentração,
e sem se deixar fixar. A arquitectura virtual, animista (e não
cinética) - «arquitectura que respira, late, salta como uma
forma e aterra como outra» (Marcos Novak) - desafia os nossos hábitos
perceptivos. Parece ser essa por ora a maior virtude da interacção
no ciberespaço - uma tactalidade distraída, que se
exercita pelo uso e pelo hábito, como previa já Walter
Benjamin (em «A obra de arte…»). Esta forma de recepção
táctil seria, aliás, característica da arquitectura,
a qual assumiria então «um valor canónico», porque,
acrescenta Benjamin, «as tarefas que são apresentadas ao
aparelho da percepção humana, em épocas de
mudança histórica, não podem ser resolvidas
por meios apenas visuais, ou seja, da contemplação».
As arquitecturas de «reality
> media > data > database» colocam ao seus visitantes
todos estes desafios, inerentes à construção
de trajectórias no não espaço que é
o ciberespaço. Elas não simulam vestíbulos,
câmaras, geografias ou paisagens, pois a navegação,
de base em base, sabe que não chega nunca a terra.
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