A experiência da
dor é uma das que mais essencialmente constitui a identidade
cultural, histórica e religiosa do Ocidente como, no
fundo, muitas outras culturas.
A experiência
da dor talvez seja, de todas elas, a que mais universalmente
se encontra distribuída.
Efectivamente assim tem
sido. Donde uma certa propensão para se aceitar a verosimilhança
de uma universalidade da dor. Nada haveria de mais transcultural
do que a experiência da dor, assim pensada como princípio
universal, mesmo sendo, como demasiado o sabemos, a mais singular
das experiências. Até mesmo, porventura, a mais
íntima.
Basta pensar na morte
que nunca é uma experiência própria senão
a do outro e que, mesmo assim, imaginamos e supomos
como dolorosa.
Quando se imagina
a morte enquanto experiência da dor, ou é porque
se pensa essa alteridade ou porque imaginariamente se antecipa
uma experiência que nunca poderá ser própria.
Mas há pelo menos um aspecto e que dor e morte se igualam:
a universalidade de ambas.
A menos que isso
não seja bem assim no que diz respeito à pretensa
universalidade da dor. Num aspecto, em todo o caso, tem de
se admitir a não universalidade da dor e esse é
o seu limiar.
Que o limiar da dor
varie de cultura para cultura, parece inquestionável.
Basta lembrar as tremendas imagens, que Bergman veio a utilizar
em Persona, de um monge budista consumindo-se pelo
fogo na sua impassível postura de oração,
sem que um só gesto se desprendesse de uma imóvel
serenidade. Algo de incompreensível aos olhos ocidentais.
Mas a antropologia
também desse limiar nos fala. Por exemplo, Pierre Clastres,
no seu livro Chronique des indiens Guayaki, conta um
episódio que o fez reflectir e a nós nos interpela.
Clastres tinha notado
que os ritos de passagem, nas sociedades selvagens, se caracterizam
quase sempre pela provação da dor. Nas mais
diversas populações e relativamente aos dois
sexos, os ritos que, marcando a passagem da infância
à maturidade, marcam também a pertença
ao grupo e a integração plena na sua cultura,
observam sempre um ritual em que a dor se impõe. Muito
frequentemente são escarificações cuja
marca no corpo é destinada a permanecer, como na famosa
colónia penitenciária de Kafka.
A marca deixada pela
escarificação iniciática permanece indelével
para assinalar a irrevogável pertença ao grupo
identitário. Mas a dor que a sua imposição
provoca será ela dor mais do que para os olhos estranhos?
No texto de Clastres,
o seguinte texto é citado que descreve uma dessas cerimónias
de iniciação: "A impossibilidade, diria
mesmo a serenidade com a qual esses jovens suportavam o seu
martírio era mais extraordinária ainda do que
o próprio suplício… Alguns mesmo, dando-se conta
que eu desenhava, conseguiram olhar-me nos olhos e sorrir,
enquanto eu, ouvindo a faca ranger na sua carne, não
conseguia reter as lágrimas."
"O corpo é
uma memória", escreve Clastres a propósito.
E através da sua escarificação se marca
a pertença do sujeito e a sua identidade. Do mesmo
modo que é pelo corpo e os seus "sinais particulares"
que nós nos identificamos no BI com as "impressões
digitais" e o rosto na fotografia. Mas estas, o rosto
e as impressões que nos definem, não indiciam
senão a pertença a si próprio. Com o
nome a constituir uma espécie de totem de uma tribo
individual, como algures fez notar Lévi-Strauss.
Clastres conta como,
entre os Guayaki, essas escarificações continuavam
a ser praticadas nos ritos de passagem, mesmo quando o grupo,
junto do qual Clastres fazia o seu trabalho de campo, se encontrava
já numa fase de transição entre o nomadismo
original e a sedentarização a que o assédio
da "civilização" os viria a condenar.
Nessas circunstâncias
intermédias, pela primeira vez de memória de
Guayaki, uma jovem recusa submeter-se a tais práticas.
Com o argumento da dor. Que antes não existia uma vez
que todos a aceitavam em silencio. Clastres interpreta esse
episódio como sendo o sinal de uma irremediável
morte anunciada daquela cultura. O reconhecimento da dor,
a diminuição do limiar suportável da
dor, seriam um indício claro de desagregação
interna de uma cultura.
O que talvez, entre
nós, nas nossas sociedades, o caso extremo da droga
ponha em relevo é o desaparecimento puro e simples
de qualquer limiar da dor. A dor, qualquer dor, física
ou mental, é insuportável.
O desconhecimento
da dor faz as nossas sociedades indolores. Pelo menos tudo
ou quase tudo para isso concorre, mormente os media em todo
o seu esplendor.
Dois filmes recentes
de algum êxito ilustram, de maneira diferente e são
disso indício: Trainspotting e Crash.
Em Trainspoting
a droga é sobretudo um analgésico. Para abolir
a dor, física e mental. Perante a insuportável
morte de uma criança, os personagens reagem imediata
e ansiosamente com a aplicação de mais uma dose
analgésica. Quando um deles, o único que permanecia
de fora, cai na dor do luto e da separação,
sossobra também no esquecimento da dor procurado na
heroína.
De uma maneira geral,
nas nossas sociedades, a dor mental: angústia, depressão,
ansiedade não têm limiar que a suporte. Toda
a espécie de fármacos existem para a combater
ao ponto de recentemente se ter generalizada, com o "Prozac",
a droga da felicidade. Sempre significando uma maior redução
do limiar da dor se não mesmo a sua completa abolição.
Os media, particularmente
o mais poderoso de entre eles, a Televisão, é
pelo esquecimento da dor que lutam. Pela abolição
da memória e a criação de um perpétuo
presente indolor que se escoa num constante fluxo trepidante
de "boa disposição", "alegria"
e excitação, exibindo-se numa máscara
de perpétuo sorriso.
Neil Postman, numa
obra que lhe deu alguma notoriedade (Amusing ourselves
to death), contestava que o futuro das nossas sociedades
estivesse ameaçado pelo pesadelo totalitário
imaginado por Orwell em 1984, mas antes o perigo viria
de um futuro anestesiado como aquele que A. Huxley imaginou
em O admirável mundo novo.
O problema é
que o desconhecimento da dor e a anestesia que o permite,
acabam por abolir também o limiar do prazer. O apagamento
destas fronteiras, a indiferenciação generalizada
da sensibilidade, acabam num sintoma como aquele que Crash
denota e exibe: o paradoxal prazer da dor.
Quando se reduziu
o limiar, impossibilitando a dor, tendeu-se para o simultâneo
estreitamento do limite que a separa do prazer. Ao prazer
resta, como possibilidade de se descobrir, a reinvenção
da dor. Este é o paradoxo cujos inquietantes sintomas
se nos dão a ver em obras como Crash e Trainspoting.
Em ambos os casos, no
"flagelo da droga" como, particularmente em Portugal,
na "sinistralidade rodoviária", a morte é
o limite inevitável. E não serão os bem
intencionadas campanhas "pela vida" que a isso obviarão.
O problema é bem mais fundo e decisivo para o futuro
da nossa civilização.
È aqui que algumas
interrogações sobre a técnica – ou melhor,
sobre a relação entre a técnica e a dor
- podem ocorrer.
Não será
a técnica interpretável como um dispositivo
de combate à dor e uma estratégia para a sua
abolição, com todas as ambivalentes consequências
que se podem observar? Para o bem como para o mal? Será
a medicina interpretável como uma tecnologia da dor?
A guerra é, também
ela, finalmente, indolor, pelo menos para aqueles que a fazem,
ao menos como objectivo estratégico.
Objectivo estratégico
e mediaticamente central da guerra (e também aqui se
vê como a guerra é mesmo a política continuada
por outros meios) é a abolição da dor,
eufemisticamente apodada de "danos colaterais" que
se pretendem "reduzir". A guerra tecnológica
pretende ser indolor.
Hoje em dia a identidade
entre técnica e guerra, ou entre exército e
máquina, atingiu o seu paroxismo, revelando a essência
mesma da técnica que é a de impedir a dor, combatendo-a
(1). A utopia
da guerra indolor é o que hoje se impõe é
o que hoje se impõe no pensamento politico-militar.
Quando Jünger escreve
sobre a "necessidade sentida pelo homem de se voltar
para uma dimensão que o subtraia do domínio
ilimitado da dor e à sua vigência universal"(2)
perguntar-se-á se não será precisamente
a técnica essa dimensão. Tanto mais que, conhecendo-se
o papel central que ela tem no projecto da modernidade iluminista,
pode-se entender que o mesmo autor escreve, nos seguinte termos:
"... a dor é um preconceito que a razão
pode refutar de maneira decisiva."(3)
Tudo isto terá
certamente a ver com o processo de individuação,
característico da modernidade, de que falava Foucault
e que, sendo paralelo ao do desenvolvimento da técnica,
se caracteriza por aquilo a que Jünger chama a "sentimentalidade
moderna", assim enunciada: "o corpo é idêntico
ao valor"(4).
De onde se segue que a relação com a dor "seja
a relação com um poder que antes de tudo há
que evitar" precisamente porque a dor, ao atingir o corpo,
está a golpear "o poder principal e núcleo
essencial da própria vida."(5)
Terá sido isso que, da modernidade, logo compreendeu
a jovem Guayaki citada por Clastres.
Um outro aspecto da dimensão
indolor (ou anti-dor) da técnica exprimir-se-á,
porventura, no aparecimento do tédio como categoria
central da modernidade (sublinhada sobretudo pelas filosofias
da existência): "o tédio não é
senão a dissolução da dor no tempo"(6).
Lembremos aqui alguns filmes de Antonioni (nomeadamente O
Eclipse) que são a perfeita ilustração
disso mesmo.
(1)
"... a ordem técnica em si, esse grande espelho em que se
reflecte com máxima claridade a crescente objectivação da
nossa vida e que se acha impermeabilizada de maneira especial
contra a perseguição da dor. A técnica é o nosso uniforme."
Ernst Jünger, Uber den Schmerz, 1934.
Trad. Cast. Sobre el dolor. Barcelona, Tusquets, 1995.
(2)
Op. Cit., p.25
(3)
Id. Ibid.
(4)
Id. p.35
(5)
Id. Ibid.
(6)
Id. p.30
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