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  Fincher ou A Iresolução da Época

  [ José Bragança de Miranda]

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Circunstâncias fortuitas deram-me a oportunidade de rever Fight Club de David Fincher (1), obra que já me impressionara a primeira vez que a vi e que se incluía numa série de outros filmes sobre a "violência" (2). Dada a limitação essencial de qualquer aproximação a uma obra, que nem precisa de ser "de arte", não pude deixar de sentir o conflito irremediável entre a obra e os seus usos. De facto, nenhuma obra está circunscrita no seu "corpo" visível. Uma obra é sempre ela, mais a sua zona de sombra. Perante isto que insuficiência a "material", que fragilidade a "intriga", nada conseguindo obviar. As interpretações que vêm em Fight Club uma crítica do "consumo" ou  o  desconforto   americano  com  o "mundo

das mulheres" ou aglorificação da violência, não apreendem o filme, acrescentam-se a ele. Tudo enredamentos provocado por algo que sempre escapa, por vir sempre demasiado cedo ou demasiado tarde.


O que faz de Fincher um autor muito especial é a maneira como leva às últimas consequências essa "falha" essencial de toda a obra, com o seu "inacabamento" radical. Diz Fincher: "There are things that you don't even know what the effect on an audience is going to be until you try it. You don't even know what it's going to be on yourself.

A movie is a prototype. Every single one of them is a prototype - it's not the finished thing" (3). Se toda a obra é um protótipo a sua potência mede-se pela infinidade de "tipos" que origina, incontroladamente, mas também pela infinidade de trajectórias que cada um deles percorre. Se a luta entre obras de arte é uma "corrida de protótipos", em si mesma cada uma delas não se distingue dos inúmeros "tipos" ou "cópias" que o protótipo contém. No caso do cinema (e das "obras de reprodução técnica") isso é ainda mais evidente.
Alegoricamente pode encarar-se Fight Club como o devaneio de um homem qualquer numa incerta noite de insónia, onde o real se alucina, tudo fragilizando. Através desse devaneio é mais o real que é convocado no seu estado noctâmbulico. Ao sonambulismo de «Jack» (Edward Norton) corresponde uma situação em que todas as diferenças perdem nitidez. Isso é esplendidamente mostrado pela «lógica onírica», quase surrealista, com que no filme de Fincher tudo é curiosamente distorcido e exagerado.

Na sua atmosfera noctambúlica tudo está em ligação, se repete e comunica, tudo conspira, impossivelmente. De repente há membros do «clube de combate» por todo o lado, infiltrados por todo lado, mesmo os próprios polícias que interrogam Jack estão ao serviço de um «projecto» de que não se «pode falar». O onirismo fílmico dá mimeticamente a ver que as diferenças entre real e irreal, entre real e cópia se esvaneceram.

O devaneio de Jack, provocado pela sua insónia, que o abeira da psicose, está no prolongamento de um mundo puramente alucinatório. Nesse estupor "everything is a copy of a copy" como diz Jack. A primeira delas é do design Ikea e os fatos Armani, as roupas Calvin Klein , etc., mas esta é a menos virulenta, pois é reconhecível, o que não acontece aos restantes objectos, corpos e actos. Quando o patrão de Jack encontra na fotocopiadora uma cópia dos estatutos do «clube de combate» e lhe diz «You don't get paid to abuse the copy machine» este lhe responde: «"Abuse" the copy machine. What an image». Ironia profunda, quando o próprio mundo se tornou numa «copy machine». Nesta situação, mesmo que o «real» existisse, estaria perdido no meio das cópias, das «imagens» e seria irreconhecível (4). O cinema que tem de mostrar a diferença entre o «real» e a «imagem» através das imagens é o melhor revelador da natureza alucinatória da experiência contemporânea.

Calderón escreverá um dia «la vida és sueño», mas apenas porque havia uma outra, bem mais importante, situada no «além» divino. Num mundo sem Deus o sonho torna-se em pesadelo. Esquecer sonho e pesadelo acaba por anular a própria possibilidade de distinguir entre sonho e vida, entre devaneio e real. Consequências inevitáveis do nihilismo que, remotamente, orienta a nossa condição e que, depois de anunciado pelo louco de Nietzsche, vai chegando aos americanos, com fragor. A certo momento, Tyler que lançara ácido na mão de Jack para o caldear pela «dor», diz-lhe: «This is the greatest moment of your life and you're off somewhere, missing it. Listen. Your father was your model for God. And if your father bails out, what does that tell you about God?» (5). Quando o real se alucina pareceria que apenas as máquinas podem dar testemunho da ilusão. É o caso do monitor de vídeo de uma câmara de segurança que, num momento crucial do filme - o da luta de Jack contra «Tyler» (Brad Pitt) - mostra apenas os forcejos de Jack. Tudo se resumiria, assim, a um efeito de desdobramento, a uma «dupla personalidade» em que uma é «mais real» do que a outra. O recurso à máquina é, aliás, um motivo recorrente em Fincher, que se observa também em The Game e em Seven. No livro de Palahniuk o papel da câmara está entregue a Deus: «A Deus isto parece um homem sozinho com uma pistola enfiada na própria boca. Mas quem está a segurar a arma é Tyler e a vida é minha» (6). Tudo indica que há uma hipótese mais radical.

Quando se sonha o real também se sonham as máquinas e nada fica de fora. Crise metafísica esta, em que real e irreal se confundem, mas que não nos deve impedir de agir ou de viver. Câmara-deus, câmara em vez de Deus, deus por trás da câmara, meros sonhos da máquina de filmar... Todas as personagens, «Jack», «Tyler» e «Marla» (Helena Bonham Carter) personificam sonhos do tamanho do mundo, o mundo em espelhismos dos corpos, que se afrontam entre si, ambiguamente, pois nem sabemos ao certo quem sonha o quê.

Em princípio todas as personagens são simples efeitos do «devanear» da câmara, como se todas elas fossem o sonho da própria máquina de filmar, que absorve os sonhos daqueles que estão à frente e atrás dela e os restitui outra vez. Esse sonhar em geral, sem sujeito, está em correspondência com a época da «pós-história», momento em que todas as distinções se revertem , em que todos os bons sonhos ficam para trás e ressurgem enquanto pesadelos. Ora, o pesadelo é a «violência» na infinidade das suas formas. Assim sendo por todo o lado emerge uma violência que ficou irresolvida. O sonho histórico de uma comunidade perfeita e pura mudou-se em pesadelo, pela simples razão de não se ter realizado. Que a América de David Fincher se encontre com a Alemanha de Heiner Müller revela o carácter terminal desta questão.

Aquilo que neste filme se sonha é a primitividade da violência e o seu incessante retorno, através das imagens mais anódinas. Tyler dá corpo a esse primitivismo com que, aliás, se confrontam todas as personagens, e nós próprios, e que se manifesta na violência ao acaso, espontânea, sem intenção nem objectivo. A certo passo Tyler diz que sonha com o dia que se verão lianas a crescer ao longo da Torre Sears e pessoas a assar pedaços de carne no asfalto aquecido pelo sol numa auto-estrada abandonada… A violência surge na sua primitividade mais absoluta quando escapa a todo o plano, mas não há história sem um plano que acabe com a violência. Todo o filme dá a ver este paradoxo.

Estamos perante um devaneio sobre a violência, que campeia por todo o lado, que surge e desaparece para irromper noutro canto qualquer; ela junta-se a uma violência que já está aí, como que cristalizada e imperceptível. A haver um «plano» este acaba sempre por ser imputado. Assim, em Jack a violência só tem sentido pessoal, através da descoberta do corpo pela «dor», que o desperte da anestesia em que vive; para Tyler todas as violências desembocam num plano: o do «projecto destruição» ou «Project Mayhem», uma espécie de armagedão absoluto que deverá acabar com o capitalismo. É isso justamente que lhe confere uma eficácia absoluta, ou, no mínimo, uma presença excessiva. Isso explica que o «clube de combate» tenha sido criado involuntariamente, ou que a primeira regra seja não falar dele, como a primeira regra do «projecto destruição» é não fazer perguntas sobre ele.

É no reconhecimento da primitividade da violência que Tyler e Jack se encontram, para logo se separarem. Divisão essa que é essencial, e incancelável. Mas enquanto Jack está em progressão, pois para ele a violência é um momento de descoberta, Tyler chegou ao fim de um curso, só lhe restando percorrê-lo erraticamente na esperança de terminá-lo. Daí que para ele todas as formas de violência estão em correspondência secreta, formando um plano, um «projecto». A haver «plano» é porque é o espelhismo de um outro plano, que falhou. Será esse o segredo do pulular da violência?

Tudo indica que o projecto destruição - é esse o "plano" de Tyler - é um simulacro de um outro que falhou: a revolução. É isso mesmo que permite descrever a época como "pós-histórica". Como se a história tivesse continuado em frente, deixando para trás a ideia que a arrastava e iluminava. A ser assim, a revolução terá ficado atrás por ter sido ultrapassada por uma história que terminou sem se realizar. Daí que a violência que deveria  pôr   fim  a  toda a   violência, era

esse  o fito da "revolução", emirja de todo o lado. O plano da revolução subsiste como simulacro no "projecto destruição". A comunidade secreta que se vai constituindo em torno do "clube de combate" e do "projecto destruição" é a replicação de uma espécie de comunismo selvagem, um comunismo primitivo, que está congelado nos fundos da experiência, e que emerge perversamente, por não se ter realizado na história. Como uma fera que salta bruscamente sobre tudo e todos, em qualquer lugar e fora de qualquer tempo. Pulular da violência que teria de ter sentido, de facto, só o tem porque o encontra no seu fracasso.

Ora este fracasso revela-se no domínio da finança, dos patrões, na moda, nas artes, em suma, nos mais mínimos objectos da civilização, mas também no menor gesto ou desejo. Lição essencial esta, explorada tenazmente para revelar esta violência oculta, porque conscrita em todas as coisas, invisível da sua parente opacidade. Duplicidade essencial das coisas, que se trata de expor. Para isso é preciso encontrar as fissuras que exibem esse ocultamento. A ser verdadeira esta hipótese, qualquer objecto serviria para esse trabalho. Mas alguns são mais propícios, o "corpo", por exemplo, mas acima de tudo o "sabão" que aparece anodinamente logo no primeiro encontro de Tyler e Jack no avião, em que o primeiro se apresenta como fabricante e vendedor de "sabão". Progressivamente este motivo irá revelar-se como essencial, pontuando todo o filme.

A certo momento Tyler decide ensinar Jack a fazer sabão. Numa cena aparentemente delirante, mas trágica, Tyler e Jack saiem para arranjar gordura para fazer sabão dirigindo-se, de noite, a uma clínica. Como se trata de uma clínica de "BODY SCULPTING CLINIC", a coisa ganha contornos hilariantes e cruéis, pois a gordura vem "from the asses and thighs of rich women, paydirt". Num enorme cartaz lê--se "DANGER -  BIOHAZARD",   onde   um   duplo

aviso nos insta. Como explica Tyler: "The best fat for making soap -- because the salt balance is just right -- comes from human bodies". Com o sebo humano e a glicerina que se produz por fervura irá ser produzido sabão que Tyler vai vender a lojas de luxo do "centro" da Cidade, onde se vende muito caro dada a sua excelente qualidade (7). Por outro lado, essa gordura serve também para produzir explosivos: "If you add nitric acid to the soap-making process, you get nitroglycerin. With enough soap, you could blow up the world" (Tyler).

Eis o segredo revelado por Tyler: cada coisa, cada fragmento, cada objecto, na sua aparente "matericidade" está cindida invisivelmente pela violência de um sacrifício que constituiu toda a história.

E esta só terminaria se conseguisse estar à altura desse sacrifício, abolindo-o ao mesmo tempo. Todo o real se desvela como sendo efeito de uma antiga história dos sacrifícios humanos. Como se pode ler na novela de Chuck Palahniuk, que serviu de base ao filme:"In ancient history… human sacrifices were made on a hill above a river…The sacrifices were made and the bodies were burned on a pyre…

After hundreds of people were sacrificed and burned… a thick white discharge crept from the alter, downhill to the river… Rain fell on the burnt pyre year after year, and year after year people were burned, and the rain seeped through the wood ashes to become a solution of lye, and the lye combined with the fat of the sacrifices, and a thick white discharge of soap crept out from the base of the altar and crept downhill toward the river… Where the soap fell into the river…after a thousand years of killing people and rain, the ancient people found their clothes got cleaner if they washed them at that spot…". Religiões, artes, memória, polidez, maneiras, tudo se origina nessa cerimónia em que o primitivo se vai anulando, ocultando-se progressivamente. Ela continua a assediar secretamente a nossa experiência. Que as bombas sejam feitas a partir do sabão corresponde, portanto, a uma profunda leitura histórica. Tudo depende de se conseguir voltá-las contra a "realidade" que as utiliza comercialmente, esteticamente, etc., reproduzindo assim a lógica do sacrifício.
Este último só teria sentido se a história se tivesse realizado, se fosse atravessada por um "plano". Eis o que divide profundamente Jack e Tyler. Conhecedores ambos do mesmo "segredo", divididos pela maneira como analisam a violência. Para Tyler a agregação das pequenas violências numa enorme catástrofe poderia consumar, ao mesmo tempo, abolir esta estrutura sacrificial. Ele vive em todo o arco do tempo histórico. Enquanto para Jack o somar das violências apenas replicaria a estrutura sacrificial, fazendo de todos e cada um uma "vítima" de uma cerimónia sacrificial que perdeu o sentido. Ele vive no "presente". No fundo, acaba por reconhecer que já não existe nenhum projecto, que este é um espelhismo de um sonho que não se cumpriu. Mas que pode pesar infindavelmente sobre a vida.
Daí a sua luta final com Tyler, feita em nome de uma vida que alcança a sua alegria na recusa do sacrificial. Mas esta luta é tudo menos terminável. Porque o reconhecimento da duplicidade do "mundo", que assim dá espessura às "imagens" a que imanentemente se teria reduzido, implica uma guerrilha permanente contra a violência sacrificial que suporta toda a experiência actual.

Tyler e Jack enquanto "especulações" são o efeito, inextricável, da irresolução que caracteriza a época. Tal irresolução que está longe de ser escolhida. Ela corresponde a um lance forçado da pós-história, obrigada a reciclar os pequenos objectos e os grandes projectos, como se não houvesse qualquer diferença entre eles.

É isso mesmo que a cena final em que Marla e Jack se dão as mãos pretenderia significar. Depois de "morto" Tyler, numa cena fantástica e impossível, acabando com o "projecto", ambos assistem sem temor, nem entusiasmo, à destruição dos grandes edifícios do centro da Cidade. O explodir dos edifícios - que entrou no imaginário americano depois dos eventos de Oaklahoma - permitira ao mesmo tempo, começar de novo e esquecer o "plano" que Tyler corporiza. Eis que Tyler retorna, através de uma marca imperceptível, apenas visível ao olhar maquínico" de uma máquina de vídeo. Trata-se de um "fotograma" pornográfico que se sabe que é uma marca de Tyler, que é também trabalha como projeccionista de cinema, e que na sua guerrilha aparentemente absurda ele introduzia sub-repticiamente nos filmes populares, para "família". Retorna, assim, o projecto destruição, para abalar a "soap opera" em que a vida se tornou.


É incancelável a irresolução que leva Fincher a afirmar que "se limita a apresentar alternativas". É a própria falha da história que, simultaneamente, torna absurdo o sacrifício que origina a história e explica todas as perversões actuais, o pular da violência e o pânico com que se lhe reponde pela moral, a lei e a higienização da vida.

É a esta estrutura que cada um é obrigado a responder para poder viver. A isto ser possível é porque a revolução, mais do que um "projecto" que ficou à espera, pode muito singelamente já ter vindo. Com o que chegaria ao fim a "história do sabão". Poeticamente Francis Ponge deixa entrever esta possibilidade, falando também ele dessa "pierre bavarde" que é o sabão: "Há muito a dizer acerca do sabão. Exactamente tudo aquilo que ele conta sobre si próprio até à sua desaparição completa, esgotando o assunto" (8). Há-de haver forma de agir que, como a água, dissolve o seu objecto, purificando sem violência.

(1)- Para a ficha técnica, e outras informações relevantes, de Fight Club ver The Internet Movie Database (http://us.imdb.com/Title?0137523)

(2)- Fight Club de David Fincher era um dos filmes do ciclo sobre "Cinema e Violência" organizado pelo Biblioteca Museu República e Resistência no ISCTE (Lisboa, 30 de Maio de 2001) que fui convidado a comentar.

(3) - Numa entrevista a David Fincher por Todd Doogan in (http://www.thedigitalbits.com/articles/fightclub/fincherinterview.html)

(4) - Tese bem mais interessante de aquela que opõe real e simulacro, que constitui a doxa actual de Baudrillard a Cronenberg...

(5) - Como se pode ler no "Fight Club shooting script by Jim Uhls"( http://www.compsoc.man.ac.uk/~heather/mustard/text/fcshoot). Mas numa entrevista Fincher é mais claro: "The tale is really one of maturity," he sums it up succinctly. "It is about a confused guy who tries to fit in this world that everyone else finds acceptable, but for him it just doesn't work. So he casts off their ideals and enters the world that defines Tyler. Tylers says the only way to really experience life is to say to yourself, "God is dead!" and enjoy life. He builds his own religion around this, but ultimately this isn't working either". (David Fincher: "Fighting the odds" entrevista de Guido Henkel in http://www.dvdreview.com/html/dvd_review_-_david_fincher.shtml).

(6) - Chuck Palaniuk (1996) - Clube de Combate, Lisboa, Editorial Notícias, 1991, p. 203.

(7)- Diz Jack en voz off: "We were selling rich women their own fat back to them" (shooting script).

(8) - Francis Ponge - Le Savon, Paris, Gallimard, 1967, p. 17.