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  Sedimentos da memória ( http://rhizome.org )

  [ Jorge M. Rosa ]

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Muito recentemente, em busca de informação sobre um autor de ficção científica que me é muito caro, decidi não iniciar o percurso por um dos muitos motores de busca disponíveis, mas antes por um endereço que tinha armazenado na pasta de bookmarks. Primeira (não) surpresa: o endereço apontado tinha esvaziado os conteúdos respectivos, redireccionando-me em compensação para um outro site onde a informação tinha sido reestruturada quase por completo e onde o autor em causa se diluía num hall of fame do género. Ainda assim, parte do que pretendia – links para outros sites sobre o mesmo autor – estava lá. Segunda (não) surpresa: mais de metade desses sites tinha pura e simplesmente desaparecido sem vestígio. Surpresas que dão lugar à previsibilidade quando se é um navegador habitual – aliás, se há uma deficiência que praticamente contradiz as definições mais comuns da Internet como depósito inesgotável de informação é a permanente confrontação com o famoso erro «404: page not found».
Uma outra, talvez menos sentida por quem «apanhou o comboio em andamento», isto é, entrou no mundo online quando tal deixava de ser uma opção e se tornava uma inevitabilidade, é o não cumprimento de uma promessa que vem já dos tempos de Vannevar Bush e de Ted Nelson: a da rede como memória, não só de informação simples (contradição nos termos, pois a informação nunca é simples, podendo quando muito ser «em bruto»), mas acima de tudo dos percursos individuais ou colectivos através dessa informação e dos padrões que ela mesma, quando tratada por uma informação de segundo grau, inadvertidamente produz. Métodos como o page-rank, implementado na prática por motores de busca como o Google são ainda a melhor aproximação desse ideal no mundo online, apesar de o end-user apenas ter acesso ao estado final e não ao percurso que o gerou, afinal o atributo que deveria marcar a diferença.
Uma ilustração mais orientada para as idiossincrasias do utilizador consiste na tecnologia offline testada nos MacIntosh das últimas gerações que foi apelidada como «View». Pense-se em todos os documentos que estão armazenados no disco rígido dum computador pessoal – criados, redigidos, modificados, recebidos, lidos ou não, de múltiplos autores, em múltiplas circunstâncias. O tradicional método de arrumá-los em pastas e subpastas, herdado de tempos anteriores ao triunfo do computador, falha inevitavelmente, mesmo para mentes tão organizadas quanto o código decimal de Dewey, em especial quando do documento que se procura apenas se tem uma vaga ideia do nome e do local onde poderá ter sido armazenado. Tentando contrariar este apego arcaico a métodos de organização que funcionavam quando a quantidade de informação ainda permitia assumi-la como uma extensão humana, o «View» dos MacIntosh indexa automática e dinamicamente os documentos ao atribuir-lhes palavras-chave, que resultam de um complexo processo de parsing. Faça-se uma busca a um termo como «novela» e numa pasta «mágica» surgirá o conjunto de documentos (independentemente da sua localização) que de algum modo tem uma associação ao termo procurado. Note-se que a palavra não tem necessariamente de ocorrer no documento – termos aparentados mas suficientemente distintos como «literatura» e «televisão» seriam bons candidatos para gerar uma resposta positiva – e que um documento pode receber ou perder uma indexação enquanto está a ser editado.
Se de certa maneira o sistema tem algo de revolucionário, admitindo que virá um dia a ser isento de falhas, a forma de visualização tem ainda muito de tradicional – um ponto forte a favor da adaptabilidade, mas uma desvantagem na medida em que pode levar a que seja uma obsoleta peça de museu antes mesmo de o seu uso se generalizar. A conclusão a retirar é que necessitamos urgentemente de novas interfaces, ainda que menos intuitivas, pouco ou nada user-friendly, se não mesmo geradoras de ostranenie. Acima de tudo repositório de projectos de web-art, o site rhizome.org tem como atractivo principal uma secção dedicada às interfaces alternativas (alt.interface, adequadamente). Se assumirmos, algo heideggerianamente, que a arte é antes de mais exploração de possibilidades que ficaram por cumprir, o facto de tal secção ser por enquanto menos concorrida não faz dela nem um pouco menos artística.
Por enquanto apenas três peças podem ser encontradas, todas elas procurando repensar uma ideia de memória prometida com o advento da World Wide Web mas bem depressa esquecida em favor da funcionalidade então possível . «Every Image» funciona como repositório de imagens – no caso, provenientes de projectos de web-art – que, depois de tratadas por um algoritmo, se sucedem aleatoriamente num screen saver, acompanhadas de texto. Ainda mais interessantes são «Spiral» e «Starry Night»: a primeira apresenta o arquivo de textos do site como uma espiral de 5 braços que pode ser desenrolada até ao momento em que o site foi criado. Para cada braço, uma categoria distinta («teoria», «eventos», «recensões», «comentário» e «threads»). Cada artigo constante do arquivo é colocado ao longo da espiral, tendo ainda – característica que partilha com «Starry Night» – um grau diferente de brilho (isto é, estando mais ou menos carregada) que é proporcional ao número de vezes que a página correspondente foi visitada. A última proposta apresentada no site permite, graças a um método de indexação – ainda não automático, como o acima referido «View» –, fazer também de cada artigo ou colaboração em arquivo uma estrela num firmamento virtual. E, tal como no caso anterior, a «história» de cada estrela começa por ser apenas um ponto, tornando-se mais visível à medida que o número de leitores aumenta. Este efeito é só por si digno de nota na medida em que, de cada vez que se acede ao arquivo, o firmamento surge com uma nova configuração, destacando as contribuições mais consultadas sem contudo deixar que outras caiam no esquecimento. Ainda mais útil é o facto de a cada texto ter sido indexado um conjunto de palavras-chave, que se tornam visíveis ao passar o rato pela respectiva estrela e que podem ser seleccionadas criando uma constelação onde todos os pontos que partilham de determinado atributo surgem conectados entre si.
O facto de estarem exclusivamente associadas ao respectivo site confirma-as como alternativas, mais uma experiência do que um projecto a ser acarinhado por um qualquer Bill Gates em potência. A nível do software comercial e dirigido para o utilizador, o parente mais próximo é o organizador de tarefas «The brain», curiosamente também exportado para o mundo da web. Talvez porque, como o prova «Time as color», presente no arquivo de web-art, a arte tende para o ilegível enquanto o design de interfaces procura a imediaticidade e a universalidade dos usos: quem compreende um tom de rosa como significando 22h 5m e 35s, porque é essa a sua transcrição RGB, quando estamos habituados a ter uma interpretação imediata ao olhar para o mostrador de um relógio? Ou como explicar ainda o facto de cada nova abertura do site ser uma falsa página de entrada, escolhida aleatoriamente, e onde o link para a verdadeira abertura tem de ser procurado pelo utilizador? Ainda assim, os projectos de alt.interface e, por que não dizer, a ideia que justifica um site como o rhizome.org, mostram que a facilidade de uso, por exemplo na constituição e acesso a um arquivo, é tão-só uma questão de adaptabilidade a convenções, que não têm de permanecer presas a um quase esgotado modelo de pastas e secretárias.