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  Cartier Bresson

  [ Teresa Mendes ]

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OLHAR NUM INSTANTE «OS EUROPEUS»

A Exposição de Cartier-Bresson agora no CCB

 

Ao contrário das suas imagens e da sua assinatura, que se tornaram as suas verdadeiras marcas, a figura e o rosto do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson permanecem praticamente desconhecidos do público. O fotógrafo, hoje com 93 anos, que passou mais de sessenta a fotografar os rostos, as pessoas, os lugares, os gestos e as expressões fugazes, um pouco por todo o mundo, passou outros tantos a fugir das objectivas. Cartier-Bresson não gosta de ser fotografado e raramente acedeu ao momento mágico do retrato. Esta atitude inusitada não é apenas uma teimosia, é a condição da sua liberdade e de uma estética da imagem que viria a tornar-se paradigmática, baseada na diminuição, tanto quanto possível, da interferência da câmara na realidade fotografada e na «fotografia encontrada» no «instante decisivo».

"É bom ser famoso desde que permaneçamos desconhecidos», a frase, atribuida ao pintor Degas, resume bem a postura do fotógrafo que entende a prática fotográfica como uma profissão de rua, uma prática ambulante. O anonimato facilita a tarefa de dissimulação do acto fotográfico, em si tão pouco discreto.

Para Cartier-Bresson são o olho e a mente do fotógrafo que devem reagir às coisas e não o contrário. As «presas» devem ser surpreendidas nas suas vidas, abordadas de mansinho e fotografadas sem quase darem por isso ou sem se importarem com a presença da câmara. Poder fotografar, e fotografar de perto, sem que o fotografado modifique o seu comportamento perante a câmara, ultrapassando a tradição fotográfica centrada na pose cuidadosamente estudada, é uma das características do trabalho de Cartier-Bresson. Neste aspecto aproxima-se da tradição iniciada em 1928 por Erich Salomon, o fotógrafo alemão da «fotografia cândida» que marca o arranque do fotojornalismo moderno. Salomon propõe-se usar a fotografia para caracterizar os ambientes físico e social da política e dos políticos, nas suas humanas grandezas e fraquezas, sem que estes posassem para a fotografia, embora soubessem da presença do fotógrafo. Rompe-se assim, desde os anos 20, com o carácter oficial e rígido das fotografias dos intervenientes públicos - os ainda hoje clássicos apertos de mão; as fotos colectivas de responsáveis políticos ou outros; o retrato estudado - e procura-se um trabalho fotográfico mais significativo.

Para Cartier-Bresson este modo de fotografar exige uma actividade de compreensão sobre o que se fotografa e uma enorme capacidade de «previsão», que só pode resultar do conhecimento da realidade fotografada. «Olho de falcão e mãos de veludo», mas também respeito pelo que se fotografa marcam o estilo e a prática de Cartier-Bresson, consciente dos problemas éticos que o voyeurismo fotográfico implica. Essa reflexão está presente numa fotografia de dois homens a espreitar através de uma lona (Bruxelas, 1932). Um deles é captado precisamente no momento em que se apercebe da presença do fotógrafo e a sua expressão é de embaraço por ter sido surpreendido nesse acto «feio» de espreitar sem ser visto, no fundo tão semelhante ao do próprio fotógrafo. Mas, o que surpreende também nesta fotografia é a total atracção do segundo homem pelo que está a ver e que nunca nos é mostrado frustrando também o nosso próprio desejo de ver.

A estética fotográfica moldada pela, hoje já gasta, metáfora da caça apenas se torna uma prática importante na fotografia nos anos 20 e 30 quando surgem novas máquinas fotográficas mais leves, com melhores lentes e emulsões, como a Ermanox e, principalmente, a Leica (inventada em 1925), que seria sempre a máquina de Cartier-Bresson. Estas novas câmaras vieram permitir, de facto, uma total liberdade de movimentos e uma maior discrição ao eliminarem o tripé (sobretudo a Leica), ao eliminarem a necessidade do uso de flash e permitindo até 36 disparos (com um rolo de 35mm). Isto permitiu que o fotógrafo se tornasse uma espécie de baudelairiano «pintor da vida moderna», que vagueia, anónimo, por entre a multidão e transforma em puro desejo, por um breve olhar, o mais fugaz e anónimo transeunte, belo apenas, enquanto fugaz e anónimo, como nas fotografias de Kertész ou Brassaï que tanto interessaram Cartier-Bresson.

É a partir desta época que a fotografia se aproxima do cinema e trabalha, verdadeiramente, o instante e o momento, introduzindo na imagem todo um conjunto de índices de movimento e uma maior definição e possibilidade de controlar o foco e a profundidade de campo. O fotógrafo torna-se um homem (ou mulher) de acção, e isso interessava Cartier-Bresson que, nos anos 30, quando começou a fotografar, ansiava por aventura.

Cartier-Bresson estudou pintura com o mestre surrealista André Lothe e sempre pensou que seria apenas pintor. No entanto, esse contacto imediato com a realidade e esse desejo de «viagem» não lhe era proporcionado imediatamente pela pintura. O encontro com uma fotografia de Martin Munkacci tirada pelo húngaro no Lago Tanganika (Três rapazes, 1929 ), assumiu para Cartier-Bresson, segundo as suas próprias palavras, o valor de verdadeira revelação quanto às possibilidades do meio fotográfico para aliar o movimento à harmonia das formas e da composição e criar um sentido poético mais profundo, inscrito na própria realidade. Era a «escrita automática» de que falava o poeta surrealista André Breton, cujas ideias influenciaram para sempre a atitude e o olhar de Cartier-Bresson. A câmara fotográfica, vista pelo fotógrafo como uma prótese do seu olho e da sua mente, permite a construção espontânea e intuitiva (ou instintiva) de uma visão da realidade e expressa, simultâneamente, uma tomada de posição face ao real, transcendendo a superficialidade das coisas. Fazendo saltar a fotografia para a poesia. E as fotografias de Cartier-Bresson não se associam em narrativas complementares. Cada uma é uma totalidade metafórica, uma narrativa intrínseca, como um poema. Cada imagem é uma síntese, uma «visão». Um misto de realidade e de sonho.

A atenção do fotógrafo volta-se sobretudo para as pessoas e para as suas acções, sempre situadas nos lugares, numa espécie de obsessão pela geografia, expressa nas legendas das suas imagens que sempre indicam datas e lugares. Em «Europeus», a exposição agora patente no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, podemos traçar esse «mapa» fotográfico feito tanto de rostos e de gestos como dos espaços, que para o fotógrafo não são indiferentes.

A exposição organizada pela Maison Européenne de la Photographie em 1997, reune 182 imagens a preto e branco tiradas entre 1929 e 1989 (embora apenas com uma imagem da década de 80) em dezassete países europeus, incluindo Portugal (nos anos 50). Trata-se de uma actualização de um álbum fotográfico com o mesmo título, editado em 1955, então ainda mais próximo das ruínas das duas grandes guerras.

Contudo, mesmo neste álbum, o imenso retrato dos europeus só elipticamente nos fala de guerras e dos esforços de reconstrução que marcaram a nossa história e as nossas acções. No entanto, os sinais estão lá, nas brincadeiras de crianças por entre os escombros (Sevilha, Espanha, 1933) ou nos momentos de lazer passados em tendas improvisadas à beira do rio. Uma conquista das primeiras férias pagas (França, 1936 ), sinal de recuperação económica mas, ao mesmo tempo, de uma mentalidade prudente e ainda hesitante.

Em À Beira do Marne, França, 1938, uma das mais famosas fotografias, o sentido da imagem resulta das relações entre os vários elementos da imagem e do ponto de vista adoptado, que nos coloca mesmo por trás de um grupo de homens e mulheres num piquenique à beira do rio Marne, numa margem inclinada. Em baixo, no rio, a elegância dos barcos contrasta com o aspecto volumoso das figuras na encosta, o que realça ainda mais o seu peso. O transporte destes homens e mulheres naqueles barcos parece impossível e a sensação do seu contentamento torna-se comezinha e absurda. Captados num momento em que cada um individualmente se entrega aos prazeres da comida ou da bebida, o grupo parece valorizar essencialmente o conforto e praticar um certo alheamento. Mais uma vez as figuras da prudência e da hesitação com que Cartier-Bresson vê «os europeus», ainda assim a esforçarem-se individualmente para disfrutar a vida, sinal da consciência trazida pela primeira guerra de que a vida é um bem frágil.

Embora tenha ficado conhecido como nome importante do fotojornalismo, até pelo facto de ter sido um dos fundadores da Agência Magnum, em 1947 - conjuntamente com Robert Capa, Chim e George Rodgers - Henri Cartier-Bresson nunca se viu inteiramente como tal. Costumava dizer que era fotojornalista no sentido muito estrito de alguém que mantem um diário fotográfico dos sítios por onde passa.

Esse sentido de diário sente-se nesta exposição, mas a visão que nos é devolvida, o retrato destes «europeus» no seu dia-a-dia, surge-nos estranho e distante. Dificilmente nos reconhecemos a um primeiro olhar, não só pelo tempo que já passou entretanto, mas também pela singular dualidade das imagens, pelo distanciamento e por uma certa ironia capaz de aliar numa imagem o insignificante e o histórico, numa dimensão, a um tempo, poética e trágica. A mera coincidência torna-se parte de um sentido maior: tragédia humana ou sinal de uma imensa estranheza revelada na aparente banalidade de uma acção.

Estas ideias traduziu-as Cartier-Bresson pelo conceito de «instante decisivo»: «para mim a fotografia é o reconhecimento simultâneo, numa fracção de segundo, do significado de um acontecimento assim como da organização precisa das formas que dão ao acontecimento a sua máxima expressão». Esta definição coloca no olhar e na relação entre o instintivo e o racional toda a problemática da fotografia. Essa atenção para o sentido oculto da realidade e para a transmutação fotográfica das coisas relaciona-se com o legado surrealista, que Cartier-Bresson sempre assumiu.

Uma imagem pode ser virtualmente sobre qualquer tema. Aquilo que determina o seu sentido é a composição, a forma de organizar todos os elementos na imagem de modo a descobrir qualquer coisa que faça quebrar a evidência e que lance uma suspeição sobre o real, que detecte o que há nele de misterioso e incerto. Como naquela fotografia em que um senhor transporta uma cruz (a sua própria cruz?) em Zurich,Suiça, 1966, ou naquela outra em que um barbeiro com a mão sobre a careca é apanhado a espreitar ao lado de um manequim com uma peruca (Roma, 1951). Noutra ainda a fotografia de um idoso que lê a inscrição «jouissez sans entraves», em Maio de 1968, Paris. O mistério da própria fotografia.