Uma
história da iconoclastia em arte teria de certeza um capítulo desenvolvido sobre os
episódios em que a arte se procurou destruir a si própria. Melhor ainda, é pensável
uma história da arte deste século só a partir da recusa da arte em ser arte. Uma arte
sem arte, uma recusa da vocação material e transformadora do fazer artístico, exemplo
limite da nossa recusa da queda na imanência, conheceu na arte conceptual do final dos
60/principios dos anos 70, o seu momento mais extremo, tal como nos documenta esta
exposição.
(...)
A arte das ideias e dos conceitos que o conceptualismo explorou nas
suas variações mais nihilistas, deixa-nos depostos numa consideração da obra como um
jogo formal com real e com as sua concupiscentes aparência, como que a medir forças com
a constituição do sentido. Esse jogo que se recusa a ser uma representação ou uma
transformação (como a maioria dos modos do fazer artístico que a segunda metade do
século XX engendrou), recria o dispositivo artístico como o lugar de uma permanente
re-activação da pergunta sobre o que institui o gesto criativo como "arte". O
aumento dos recursos expressivos da arte, para além de transformar o processo de
relação com as ferramentas conceptuais vem introduzir o projecto como o instante da
decisão de composição e como o lugar da "poética": aqui já não se trata
apenas de concretizar um intuição plástica mas de tornar manifesta uma compreensão do
mundo e de ver o campo de acção da arte como um território de investigação sobre o
comportamento humano. Esta consideração da arte como um território de signos e do
artista como um produtor/re-produtor de signos conduziram, no momento conceptual que esta
exposição documenta, a uma enunciação nominalista da arte como instituidora de uma
forma de relação singular a situações, descrições de acções (realizadas ou por
realizar) ou, eventualmente, objectos (estes podem aparecem como indesejáveis e
inoportunos).
(...)
Assim, a tomada de consciência, por parte do espectador, de uma
indicação que lhe propõe algo como arte substantiva a obra: é arte o que um
artista declara como arte. Esta é genericamente a premissa das estratégias das
experimentações conceptuais: uma abertura do sentido que cauciona a arte como
independente de qualquer objectualidade. Ela é um acto de apresentação de um aspecto
do mundo, passível de reconhecimento de acordo com um índex que documenta a acção
de alguém que destaca o modo como esse aspecto lhe apareceu.
(...)
A linguagem assume não só o acesso aosentido como se converte num
instrumento de trabalho. A enfatização da linguagem como o operador performativo que
possibilita o instituir como arte, impele o artista (uns cada vez mais incomodados
com esse título, outros cada vez mais acomodados a ele), na recém descoberta sobriedade
lúcida de quem despertou finalmente para a mistificação ideológica do dispositivo
estético inefabilizado pela sensibilidade moderna, a hipostasiar o valor da sua acção.
Assim a linguagem, numa versão ébria de minúcia analítica (o exemplo mais interessante
aqui seria o colectivo Art and language), cerebralizada e
esterilizada pelo rigor formal, converte-se num constrangimento que articula a paixão
pelo vazio, pela absolutização do gesto, pela experiência dos limites, pela jouissance
do absurdo. (Quando visitei a exposição a funcionária do museu lamentava-se muito
embaraçada por se ver associada a propostas tão insólitas perguntando-se
intimamente porque razão é que pessoas com um ar tão cosmopolita, se passeavam por ali
tão atentos e absortos "esse filme aí vai começar agora, mas olhe que não
tem muito para ver; é melhor apressar-se se quiser ver o senhor a vomitar-se(
) veja
lá se não pisa o monte de areia, que tem-nos feito limpar o pó todos os dias")
(...)
O mais curioso é que, a julgar pelo testemunho de alguns dos artistas,
a maioria dos artistas continuava a desenhar, a pintar e a esculpir. Como se estas
demonstrações de uma mente esclarecida pudessem ser obscurecidas por uma vil tentação
em voltar a fazer essa arte, que todos sabiam estar condenada a cair no circulo infernal
do eterno retorno do mesmo. Uma arte depurada das escórias da matéria reifica a
linguagem como o mais horrendo dos poderes, como se a inteligibilidade se perdesse sempre
que esta se reúne a qualquer materialismo. A arte deixa de poder enlaçar o sensível e o
inteligível. Aqui, neste ermo bergmaniano, a língua é vivida como uma rede que apanha
de surpresa a ligação entre palavras e objectos, entre palavras e actos, mas
simultaneamente, renova-se o abismo que espreita entre ambos. Aí a arte socorre-se de uma
hipotética neutralidade fotográfica de modo a anestesiar e suplementar a inquietação
com a linguagem, multiplica a serialidade e faz apelo às imagens mais artesanais de modo
a secar essa hemorragia da linguagem.
(...)
Estamos num plano de suspeita permanente do poder da linguagem e da
arte que só é contrariada quando ela degenera na paródia ou se converte num activismo.
Este aspecto é talvez o mais estimulante e o que deixou um legado mais profícuo ao
conceptualismo contemporâneo (bastante mais mundano e empreendedor que este, mas também
mais abjecto). Depois de feito o luto pelo desencanto dos programas de acção das
vanguardas, a arte abriu novas formas de agir, micropolitica e localizadas que fazem das
artes um espaço onde se pode romper alguma da opacidade da actualidade e desbloquear um
espaço onde outras diferenças possam emergir. Um espaço onde o humano mais do que
autoreprepresentar-se pode refigurar-se (pense-se sobretudo, para indicar alguns nomes da
exposição, em Mary Kelly é uma pena que não
possamos ver o seu trabalho em post-partum document -; ou Susan
Hiller, em que ligação com a antropologia e com as concepções do trabalho de
campo, empreende um olhar de apropriação crítica que re-liga conhecimento e acção).
(...)
Há também algo que passa nos trabalhos desta exposição e que me
parece essencial: para além das militâncias contra a instituição da arte, para além
da seu pudor matérico, estes artistas parecem integrar nas obras a passagem do tempo e o
percorrer dos lugares como movimentos anímicos próprios da curiosidade humana. A
introdução do acaso ou da efemeridade, o registo documental e cronológico de
determinadas acções, a minúcia das suas descrições de acções que se desenrolam ao
longo do tempo(ex: diários), mostram um co-naturalidade com a natureza temporal do
observação e do processo , que em muitas situações é deixado em aberto (como se,
depois da apresentação da obra, ela continuasse a evoluir e a transformar-se pela
acção dos espectadores. Noutros casos é a espacialização da disposição e da
montagem que sugestionam um percurso empírico de reconhecimento da peça; a extensão das
intervenções como algo que existe fora do espaço galeristico, apesar de tomarmos
conhecimento disso por um reenvio enunciado na galeria (fazendo descoincidir a situação
material do anúncio da intervenção com as suas eventuais manifestações reais); a
deslocações da atenção para um algures/outrora que alargam o campo a representação
ao espaço vivido; o incitamento a posturas de incorporação (atirando para o espaço do
espectador elementos das imagens) das peças ou do processo criativa por parte do
espectador, os cruzamentos de projecções, transparências e reflexões nas instalações
vídeo, que induzem um espaço tendencialmente háptico que interfere na leitura unitária
desse espaço (sobretudo nalgumas das intervenções de David
Dye e Michael Craig Martin, apesar das que
estão expostas serem das menos estimulantes); todos estes exemplos indicam um renovado
sentido plástico da espacialidade.
(...)
Em muitas das situações apresentadas podemos sentir a secura da
experimentação conceptual. Em jogo estão quase sempre as frustrações da expectativa
do espectador. Mas do que exposto a situações limite ou expulso da fruição, ele é
levado a questionar as condições da representação, sem ilusionismos mas com muitas
piscadelas de olho. Estas estratégias de distanciamento( e que confesso que me parecem,
na maioria das vezes, francas) protagonizam reavaliação do sistema das artes e da tarefa
artística: Para além de apresentarem como problemática uma valorização muitas vezes
demasiado fácil dessa classe particular de objectos da nossa cultura material, têm
sempre o mérito voltar a fazer-nos crer de que se podem abrir novos inícios.
Março 2000