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  IRONIA E DESOLAÇÂO:

  Reflexões sobre uma visita a Live in you head, Lisboa, museu do Chiado fev/2000

  [ Rodrigo da Silva ]

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Uma história da iconoclastia em arte teria de certeza um capítulo desenvolvido sobre os episódios em que a arte se procurou destruir a si própria. Melhor ainda, é pensável uma história da arte deste século só a partir da recusa da arte em ser arte. Uma arte sem arte, uma recusa da vocação material e transformadora do fazer artístico, exemplo limite da nossa recusa da queda na imanência, conheceu na arte conceptual do final dos 60/principios dos anos 70, o seu momento mais extremo, tal como nos documenta esta exposição.

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A arte das ideias e dos conceitos que o conceptualismo explorou nas suas variações mais nihilistas, deixa-nos depostos numa consideração da obra como um jogo formal com real e com as sua concupiscentes aparência, como que a medir forças com a constituição do sentido. Esse jogo que se recusa a ser uma representação ou uma transformação (como a maioria dos modos do fazer artístico que a segunda metade do século XX engendrou), recria o dispositivo artístico como o lugar de uma permanente re-activação da pergunta sobre o que institui o gesto criativo como "arte". O aumento dos recursos expressivos da arte, para além de transformar o processo de relação com as ferramentas conceptuais vem introduzir o projecto como o instante da decisão de composição e como o lugar da "poética": aqui já não se trata apenas de concretizar um intuição plástica mas de tornar manifesta uma compreensão do mundo e de ver o campo de acção da arte como um território de investigação sobre o comportamento humano. Esta consideração da arte como um território de signos e do artista como um produtor/re-produtor de signos conduziram, no momento conceptual que esta exposição documenta, a uma enunciação nominalista da arte como instituidora de uma forma de relação singular a situações, descrições de acções (realizadas ou por realizar) ou, eventualmente, objectos (estes podem aparecem como indesejáveis e inoportunos).

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Assim, a tomada de consciência, por parte do espectador, de uma indicação que lhe propõe algo como arte substantiva a obra: é arte o que um artista declara como arte. Esta é genericamente a premissa das estratégias das experimentações conceptuais: uma abertura do sentido que cauciona a arte como independente de qualquer objectualidade. Ela é um acto de apresentação de um aspecto do mundo, passível de reconhecimento de acordo com um índex que documenta a acção de alguém que destaca o modo como esse aspecto lhe apareceu.

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A linguagem assume não só o acesso aosentido como se converte num instrumento de trabalho. A enfatização da linguagem como o operador performativo que possibilita o instituir como arte, impele o artista (uns cada vez mais incomodados com esse título, outros cada vez mais acomodados a ele), na recém descoberta sobriedade lúcida de quem despertou finalmente para a mistificação ideológica do dispositivo estético inefabilizado pela sensibilidade moderna, a hipostasiar o valor da sua acção. Assim a linguagem, numa versão ébria de minúcia analítica (o exemplo mais interessante aqui seria o colectivo Art and language), cerebralizada e esterilizada pelo rigor formal, converte-se num constrangimento que articula a paixão pelo vazio, pela absolutização do gesto, pela experiência dos limites, pela jouissance do absurdo. (Quando visitei a exposição a funcionária do museu lamentava-se muito embaraçada por se ver associada a propostas tão insólitas – perguntando-se intimamente porque razão é que pessoas com um ar tão cosmopolita, se passeavam por ali tão atentos e absortos – "esse filme aí vai começar agora, mas olhe que não tem muito para ver; é melhor apressar-se se quiser ver o senhor a vomitar-se(…) veja lá se não pisa o monte de areia, que tem-nos feito limpar o pó todos os dias")

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O mais curioso é que, a julgar pelo testemunho de alguns dos artistas, a maioria dos artistas continuava a desenhar, a pintar e a esculpir. Como se estas demonstrações de uma mente esclarecida pudessem ser obscurecidas por uma vil tentação em voltar a fazer essa arte, que todos sabiam estar condenada a cair no circulo infernal do eterno retorno do mesmo. Uma arte depurada das escórias da matéria reifica a linguagem como o mais horrendo dos poderes, como se a inteligibilidade se perdesse sempre que esta se reúne a qualquer materialismo. A arte deixa de poder enlaçar o sensível e o inteligível. Aqui, neste ermo bergmaniano, a língua é vivida como uma rede que apanha de surpresa a ligação entre palavras e objectos, entre palavras e actos, mas simultaneamente, renova-se o abismo que espreita entre ambos. Aí a arte socorre-se de uma hipotética neutralidade fotográfica de modo a anestesiar e suplementar a inquietação com a linguagem, multiplica a serialidade e faz apelo às imagens mais artesanais de modo a secar essa hemorragia da linguagem.

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Estamos num plano de suspeita permanente do poder da linguagem e da arte que só é contrariada quando ela degenera na paródia ou se converte num activismo. Este aspecto é talvez o mais estimulante e o que deixou um legado mais profícuo ao conceptualismo contemporâneo (bastante mais mundano e empreendedor que este, mas também mais abjecto). Depois de feito o luto pelo desencanto dos programas de acção das vanguardas, a arte abriu novas formas de agir, micropolitica e localizadas que fazem das artes um espaço onde se pode romper alguma da opacidade da actualidade e desbloquear um espaço onde outras diferenças possam emergir. Um espaço onde o humano mais do que autoreprepresentar-se pode refigurar-se (pense-se sobretudo, para indicar alguns nomes da exposição, em Mary Kelly – é uma pena que não possamos ver o seu trabalho em post-partum document -; ou Susan Hiller, em que ligação com a antropologia e com as concepções do trabalho de campo, empreende um olhar de apropriação crítica que re-liga conhecimento e acção).

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Há também algo que passa nos trabalhos desta exposição e que me parece essencial: para além das militâncias contra a instituição da arte, para além da seu pudor matérico, estes artistas parecem integrar nas obras a passagem do tempo e o percorrer dos lugares como movimentos anímicos próprios da curiosidade humana. A introdução do acaso ou da efemeridade, o registo documental e cronológico de determinadas acções, a minúcia das suas descrições de acções que se desenrolam ao longo do tempo(ex: diários), mostram um co-naturalidade com a natureza temporal do observação e do processo , que em muitas situações é deixado em aberto (como se, depois da apresentação da obra, ela continuasse a evoluir e a transformar-se pela acção dos espectadores. Noutros casos é a espacialização da disposição e da montagem que sugestionam um percurso empírico de reconhecimento da peça; a extensão das intervenções como algo que existe fora do espaço galeristico, apesar de tomarmos conhecimento disso por um reenvio enunciado na galeria (fazendo descoincidir a situação material do anúncio da intervenção com as suas eventuais manifestações reais); a deslocações da atenção para um algures/outrora que alargam o campo a representação ao espaço vivido; o incitamento a posturas de incorporação (atirando para o espaço do espectador elementos das imagens) das peças ou do processo criativa por parte do espectador, os cruzamentos de projecções, transparências e reflexões nas instalações vídeo, que induzem um espaço tendencialmente háptico que interfere na leitura unitária desse espaço (sobretudo nalgumas das intervenções de David Dye e Michael Craig Martin, apesar das que estão expostas serem das menos estimulantes); todos estes exemplos indicam um renovado sentido plástico da espacialidade.

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Em muitas das situações apresentadas podemos sentir a secura da experimentação conceptual. Em jogo estão quase sempre as frustrações da expectativa do espectador. Mas do que exposto a situações limite ou expulso da fruição, ele é levado a questionar as condições da representação, sem ilusionismos mas com muitas piscadelas de olho. Estas estratégias de distanciamento( e que confesso que me parecem, na maioria das vezes, francas) protagonizam reavaliação do sistema das artes e da tarefa artística: Para além de apresentarem como problemática uma valorização muitas vezes demasiado fácil dessa classe particular de objectos da nossa cultura material, têm sempre o mérito voltar a fazer-nos crer de que se podem abrir novos inícios.

Março 2000