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Rui Chafes, Durante o Fim, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000
(livro-memória da exposição ocorrida em Sintra, 15 de Outubro de 2000 15 de
Janeiro de 2001)
0. Durante o Eclipse
Lugares: o parque, as rochas cobertas de musgo e a luz filtrada entre
as ramagens: só a arte mais passageira deixa aí um sinal. O palácio, Neuschwanstein
temperado e habitável, só uma longa imobilidade do estético se faz aqui memória entre
memórias.
Sons: os do pai de Cosima, aquele de Les Années de pèlerinage
(é o tempo que aí mais conta como lugar), de preferência ao Wagner que aqui motiva um
texto inútil. «Mestre do mito», pois sim, mas aqui os mitos adormeceram e entraram num
sono inquieto. Quase um maerchen. Ouve-se particularmente o terceiro caderno, mehr
langsam, misterioso, por vezes quase atonal.
Cores interiores: «qualquer coisa de sombrio, de distinto, de
sumptuoso».
Referências: Novalis, a «Naturphilosophie».
Problema: a subsistência do Romantismo nos lugares mais secretos das
formas. Uma arte que renuncia à invenção dos lugares.
Leituras: Fragmentos de Novalis, Lisboa, Assírio & Alvim,
1992; Georges DIDI-HUBERMAN, Être Crâne, Paris, Minuit, 2000; Albert BÉGUIN, LÂme
romantique et le rêve, Paris, José Corti, 1991.
1º quadro
Perante este livro na lectio, como antes perante as esculturas in
loco, regresso à inquietação que me assalta quando sei que um lugar me chama a ele.
O lugar é sempre a convocação a uma inscrição que me lança na melancolia. Aí,
deixando de ser habitante, o que era ainda uma forma de cartografia, passo a sustentar uma
relação que apenas domino sob forma escultórica, já que esculpir é arrancar
pedaços do lugar à inconsciência que o faz geografia. Chamas-me e eu vou sem saber
por onde... Vou ao encontro da Natureza como espaço que me resiste esteticamente. A obra
é uma réstia do humano nos confins do estético.
Ver uma escultura é como estar perante Os embaixadores
de Holbein sem perceber a anamorfose aí presente. Quando com ela deparamos, quando
caímos no seu «ser crâneo», como diria Didi-Huberman, as figuras cessam a sua função
reconhecida. Perante a escultura, o meu espaço inicia uma partilha sem aviso que me cega
a partir do centro da sua imagem. Agita-se a visão periférica que rodeia o negrume do
apelo.
De um duplo chamamento se trata aqui: chama-me o ser escultórico dos
objectos, mas chama-me, igualmente, a sua ignorância espacial e iconográfica. «Le
crâne est un objet sculptural pour la raison plus essentielle, plus organique, que notre
propre cerveau est incapable den imaginer la spatialité véritable.» - G.
Didi-Huberman, p. 82. Estas obras surgem dentro da auto-imagem estilhaçada da escultura.
2º quadro
Regressamos, por momentos, à pergunta sobre o espaço iconográfico,
à sua e à nossa memória bidimensional. Mas essa será uma má pergunta: seria melhor
começarmos por indagar como se esculpe um saber do fim que nenhum lugar acolhe.
As esculturas de Rui Chafes designam situações formais e espirituais
que são todas elas ilegíveis se lidas na ignorância da sua configuração final, aquela
que está por vir. Escultor teleologicamente formado, dir-se-ia. E, no entanto, não há
neste trabalho qualquer vestígio apocalíptico, quer o consideremos na sua
logodistribuição em páginas, quer na mundanização que o dispersa sob a forma de
objectos. Mas também não se adequam estas formas ao museu imaginário: nada nelas
é instinto patrimonial, apesar da geografia que as acolhe. Aqui, a arte não evoca o
mundo: apenas lhe toma os lugares mais impossíveis.
Mas é precisamente à representação do espaço que estes objectos
dirigem uma pergunta: como chegámos aqui? Como colocámos no nosso ser escultórico uma
porta cravejada de corpos?
3º quadro
Ah, o jovem Lukács, o da Alma e as Formas. «Todo o conatus
permanece aqui como conatus», dizia ele de Novalis. Qualquer fragmento me
remete para o campo de forças que o amplia. Conatus do Kitsch: o negro
escultórico absorve-o sem lhe dar um novo sentido.
Estes objectos formam um depósito do tempo num lugar morto. Poder
escultórico da poeira. Não é uma scultura dombra, como num Claudio
Parmiggiani, herdeiro da indeterminação da morte giacomettiana. A escultura é a mais
densa tópica da morte. Se ela é memorial, é-o à semelhança da leve mancha de Kleist
que permanece no lago de Wannsee.
4º quadro
Estas obras permitem que o lugar as toque. Mas não to permitem.
Tornam-se um falso marco, desorientam. «Questão notável, a do lugar do Paraíso
(Lugar da alma). O Paraíso está como que espalhado sobre toda a Terra daí que se
tenha tornado tão irreconhecível. Os seus traços dispersos devem ser reunidos o
seu esqueleto deve ser preenchido. Regeneração do Paraíso» - Fragmentos de Novalis,
p. 103.
A obra é esqueleto abandonado na clareira do bosque. Já lá chegou
como traço de uma presença que apaga o teu rasto.
5º quadro
Regressas às formas miseráveis, aquelas que se comunicam, as que se
deitam no mundo com a sua obesidade morfológica. Lugares preenchidos pelo que é mais
próprio da ignorância do fim e da sua impropriedade. Tudo se inventa nos arredores desta
Sintra. Toda a invenção parece um início e é, afinal, mais mortal do que a alma porque
não arde nas entranhas, porque é benigna. «A alma é, entre todos os venenos,
o mais forte» - Fragmentos de Novalis, p. 113.
Jorge Leandro Rosa
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