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  A Dor Nua

  [ Eduardo Prado Coelho ] *

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Mentiria se dissesse que hesitei antes de aceitar vir hoje aqui falar sobre um tema de que nada sei – ou, pelo menos, de que nada sei em termos de um saber técnico, positivo, profissional. Não, não hesitei, disse imediatamente que sim. Só depois deste "sim" obviamente precipitado é que tomei consciência de que deveria ter hesitado. Daí que o primeiro tema, ou, se quiserem, a minha primeira motivação, seja tentar explicar, a mim em primeiro lugar, mas também àqueles que me ouvem, a razão dessa precipitação.

A verdade é que, ao longo de uma vida de múltiplos interesses e curiosidades, em excesso reconheço, tive sempre, não diria o cuidado, mas a obsessão de evitar todos os livros que tivessem no seu título, ou na tábua das suas matérias, a palavra "dor". Foi certamente uma precaução de cariz mágico, como se o facto de eu excluir um tema dos objecto susceptíveis de serem pensados tivesse o efeito de me proteger duma realidade que apenas mencionada me começava a agredir.

Como complemento disso, gostaria ainda de dizer que, de todas as situações moralmente condenáveis, a mais intolerável de todas elas tem sido para mim a cena policial ou militar ou criminosa (mas sempre criminosa em qualquer dos seus pseudónimos) da tortura. Tratava-se, ainda hoje se trata, e nesse plano não creio que venha a duvidar um só instante, do intolerável de todos os intoleráveis. Porque nela se assistia não apenas à humilhação do outro no seu estatuto de elementar dignidade, mas também à instrumentalização da dor como meio de obter a verdade, ou de violar um segredo, uma fórmula, uma palavra de ordem partilhada em termos de ideal empolgante. Por isso mesmo uma das minhas recordações mais antigas tem a ver com a projecção a que assisti com os meus pais de um famoso filme de Rosselini, Roma, cidade aberta, em que de olhos bem fechados ouvi os insuportáveis gritos de uma cena que não queria ver. E recordo que foi com os meus pais, porque à saída me sentia envergonhado de termos agora em comum a revelação de algo que até aí eu desconhecia: a capacidade de crueldade ilimitada e de abjecção imperdoável a que um ser humano pode ser conduzido. Donde, em filmes ou livros, ou outras formas de narração (sobretudo reportagens sobre a guerra ou as ditaduras, na Argélia, em combates coloniais, em ditaduras estalinistas, ou no Chile de Pinochet), eu sabia que certas cenas ou passagens do texto estavam ali para eu as saltar.

Será da idade? A verdade é que, convidado inesperadamente a participar num encontro sobre formas de tratamento específico da dor, a minha primeira certeza foi a de que não poderia agora continuar a saltar, e por isso de imediato disse "sim". Como se , num processo análogo ao que ocorre com a ideia de morte, se tratasse de ultrapassar uma linha em que a partir daí já não é possível deixamos de subjectivar determinados objectos: a morte já não é apenas a morte, é a minha morte; a dor já não é apenas a dor, é a minha dor. Poderei dizer "a nossa dor"? Surge aqui um terrível e incompreensível paradoxo: sei que quando falamos da dor, não precisamos de explicar mais, todos sabem de que se trata, a palavra torna-se evidente no próprio fio da respiração. Mas, ao mesmo tempo, nada nos isola, nos afasta tanto, nos lança tão longe na condição irremediável de abandono e solidão, do que a dor única que cada um de nós sente, E o primeiro traço é esse: sentirmos que no momento da dor ficamos emparedados, na clausura mais extrema, sem luz nem azul do céu que nos seja acessível, e sabermos no entanto que lá for a, fora de nós no exterior sem exterior da nossa dor, a vida continua. E continua numa apoteose de corpos gloriosos – que são aqueles que as imagens da felicidade íntima ou turística projectam na tela das nossas vidas. E continua numa indiferença total e obscena em relação aos corpos miseráveis que a dor assalta e amarfanha.

Saltar a dor, portanto, rasurá-la, omiti-la. Mas foi isso mesmo que a própria medicina fez ao considerá-la apenas como um sintoma, como uma informação, e não como um instante, às vezes sem fim, de crescente afundamento existencial. E, no convívio diário em que tudo se torna natural, a dor banalizava-se: de escândalo que sempre era, foi, será, de agressão à vida na sua dignidade elementar, a dor tornava-se um parceiro desbotado de uma situação clínica que se repetia dia após dia.

Há aqui, aliás, um conceito fundamental que é preciso sublinhar. Foi sobretudo em torno das pesquisas de um médico inglês de nome Saunders que se começou a falar na "dor total" para pôr em evidência o facto de que existem múltiplos factores que condicionam o aparecimento e a intensidade da dor. O estado emocional do paciente cria um terreno mais ou menos favorável, mais ou menos desarmado, ou mais ou menos entrincheirado, em relação ao fenómeno da dor. É preciso incluir nesses factores elementos tão diversos como o envolvimento familiar, a situação afectiva, a rede de amizades, as crenças pessoais ou a situação socio-económica. E é na medida em que a dor emerge na confluência destes elementos que o seu tratamento não só implica uma análise global como a consideração da possibilidade de a atenuar ou eliminar através da intervenção específica sobre alguns destes factores. É isto que põe em relevo a noção de "dor total".

Ela tem ainda outra vantagem. Nós estamos habituados a falar de uma bifurcação entre dor física e dor psíquica. E somos tentados a considerar que a dor psíquica é dor apenas por analogia com a dor física – como se tivesse aqui um estatuto de metáfora. Embora todos nós saibamos que neste domínio, como em todos os outros, a fronteira entre o físico e o psíquico, entre o material e o espiritual, seja insustentável. Falarmos em "dor total" significa que a palavra "dor" não é metaforizável, porque cada dor, sendo única e irrepetível, é sempre a extensão, o prolongamento, o eco incrustado na carne, de um grito e de um apelo primordiais. A experiência da dor psíquica é, para além de todas as traduções somáticas, a experiência de uma destruição do corpo. Na medida em que qualquer dor é por natureza intratável, e portanto não susceptível de qualquer comparação de efeitos balsâmicos, a dor escapa a todas as formas de inscrição num discurso. Mas é na medida em que é intratável que a dor necessita de ser tratada em todas as suas dimensões.

Entramos aqui naquilo a que se pode chamar o domínio semiótico. Sempre que procuramos significar, utilizamos dois modos de produção de signos: ou um modo digital, em que tudo se pode reduzir a alternativas sim/não, 0/1, ou o modo analógico, em que não há fronteiras delimitadas, mas gradientes que funcionam segundo o princípio do mais-ou-menos. Se o modo analógico é aquele que mais se predispõe à expressão das intensidades (e por isso é também o que se encontra mais enredado com a instância do inconsciente), contudo nós sabemos que a linguagem das palavras permite a manifestação de intensidades. Por um lado, através daquilo que se pode chamar um "estilo" ou uma "escrita": isto é, uma forma de combinar as palavras que permita que através do digital se configurem efeitos de tipo analógico: a poesia é isso mesmo. E, em segundo lugar, no plano oral, através das modulações de tipo analógico que têm a ver com o ritmo, o jogo dos sons, a prosódia e a tonalidade da voz. É deste modo que os sistemas semióticos de tipo digital podem simular o que é o extra-digital por excelência: o grito, precisamente. E embora nos faltem palavras para exprimir as qualidades da dor (tal como nos escasseiam os termos que poderiam designar o inconfundível timbre de uma voz), as palavras podem dizer o grito – mas podem dizê-lo sobretudo se disserem o que do grito escapará sempre ao dizer das palavras. E o mesmo em relação à dor: ela é por definição a-semiótica – aquilo que resiste à semiótica, aquilo que a semiótica não consegue tratar senão indirectamente.

Se formos às origens gregas, encontramos em Ésquilo a ideia de que a dor é uma dádiva dos deuses porque é através dela que chegamos à sabedoria. Mas encontramos também Antifonte que, no ágora, oferece os seus serviços, isto é, o seu saber técnico, para tratar as dores. Estas duas modalidades continuam presentes em todos os nosso discursos: por um lado a redenção pelo sentido; por outro o tratamento por uma saber especializado.

Santo Agostinho conta, nas Confissões, a morte de um amigo extremamente querido que com ele convivia há pouco mais de um ano. De início, é o colapso absoluto, o movimento de pânico: tudo se retira, tudo o que fazia sentido deixa de fazer sentido. É o momento da noite e da tortura: Assim se exprime Santo Agostinho: "Luto que no meu coração fez noite. Em todo o lado apenas via a morte. A terra natal tornou-se-me um suplício. Tudo o que eu tivera em comum com ele sem ele se transformava num tortura horrível. Os meus olhos reclamam-no em todo o lado e nada mo devolvia. Todas as coisas se me tornaram odiosas, porque , tendo ele deixado de existir, já não podiam anunciá-lo como outrora faziam: "Ei-lo! Vai chegar!".

Mas o tempo vem suavizar a ferida e permitir a cura. Chorando, chorando sem fim, por coisa nenhuma, porque consciente de que nenhum choro o poderia restituir, Agostinho irá pouco a pouco tomando consciência de que existe um prazer nas lágrimas. E aquilo que de início fora a vontade de morrer porque o amigo deixara de existir tornou-se lentamente um desejo de viver para resistir à morte do amigo. Escreve Santo Agostinho: "ó infeliz homem, que sofrendo com os males humanos perde o sentido da medida". Pouco a pouco, ele vai encontrar a medida maior, a medida do imensurável que é a ordem de Deus. E descobrimos aqui o grande processo que acompanha grande parte do pensamento ocidental da dor: ele vai no sentido de Ésquilo, ao dizer que a dor é um caminho para a verdade, uma via de acesso à sabedoria. Por isso Santo Agostinho pode dizer que ter pensado que não iria morrer aquele que por natureza é mortal correspondia a construir o nosso pensamento sobre areia movediça: "O que tu procuras, procura-o, mas não onde tu procuras. Procuras uma vida feliz no país da morte: ela não está aí. Como queres tu que haja uma vida feliz lá onde não chega a haver vida?".

Hegel gostava de citar Jacob Boehme: "Se a vida não tivesse sensibilidade alguma, não teria vontade e acção; mas o sofrimento, a angústia, o tormento, dotam a vida de vontade e a acção." Para Hegel, "o outro, o negativo, a contradição, a cisão, pertencem à natureza do espírito". Donde, "o espírito só conquista a sua verdade se é capaz de se encontrar a si mesmo na dilaceração absoluta". Vemos assim que a história da dor foi sempre marcada pela ideia de que ela era um episódio inevitável no caminho da sageza. Trata-se do que poderemos chamar uma estratégia dialecticizante. Só Schoppenhauer tem a coragem de dizer que a verdadeira dor é a dor sem razão.

Aquilo que me parece fundamental hoje é sermos capazes de dizer que não conseguimos encontrar um fundamento para a necessidade da dor porque a dor é precisamente a experiência de uma ausência absoluta e siderante de qualquer fundamento. Não conseguimos pensar a dor porque a dor interrompe a dignidade do pensamento. Nessa medida, será talvez preferível assumirmos que o nosso desejo de consolação nunca poderá ser satisfeito (como escreveu o romancista Stig Dagerman ), e que a dor é por natureza o indialecticizável – aquilo que resiste ao consolo de qualquer dialéctica redentora.

Mas é precisamente por isso que é também preferível, ao recusarmos a dádiva dos deuses de que Ésquilo fala, aceitarmos a proposta de Antifonte: aceitemos a ajuda daqueles que por vocação e profissão pretendem obter um saber sobre a dor que permita que a consideremos como experiência total que se pode tratar. Esse é o vosso propósito e a vossa missão. Por isso mesmo devo deixar a palavra aos que estudam laboriosa e denodadamente as técnicas adequadas, e depois comunicam o resultado desse estudo. Modestamente, sem dúvida, mas de um modo eficaz, são eles que trabalham do lado da vida.

Intervenção no Simpósio Dor Crónica – em 9 de Março – em Lisboa.