Mentiria se dissesse que hesitei
antes de aceitar vir hoje aqui falar sobre um tema de que nada sei ou, pelo menos,
de que nada sei em termos de um saber técnico, positivo, profissional. Não, não
hesitei, disse imediatamente que sim. Só depois deste "sim" obviamente
precipitado é que tomei consciência de que deveria ter hesitado. Daí que o primeiro
tema, ou, se quiserem, a minha primeira motivação, seja tentar explicar, a mim em
primeiro lugar, mas também àqueles que me ouvem, a razão dessa precipitação.
A verdade é que, ao longo de uma vida de múltiplos interesses e
curiosidades, em excesso reconheço, tive sempre, não diria o cuidado, mas a obsessão de
evitar todos os livros que tivessem no seu título, ou na tábua das suas matérias, a
palavra "dor". Foi certamente uma precaução de cariz mágico, como se o facto
de eu excluir um tema dos objecto susceptíveis de serem pensados tivesse o efeito de me
proteger duma realidade que apenas mencionada me começava a agredir.
Como complemento disso, gostaria ainda de dizer que, de todas as
situações moralmente condenáveis, a mais intolerável de todas elas tem sido para mim a
cena policial ou militar ou criminosa (mas sempre criminosa em qualquer dos seus
pseudónimos) da tortura. Tratava-se, ainda hoje se trata, e nesse plano não creio que
venha a duvidar um só instante, do intolerável de todos os intoleráveis. Porque nela se
assistia não apenas à humilhação do outro no seu estatuto de elementar dignidade, mas
também à instrumentalização da dor como meio de obter a verdade, ou de violar um
segredo, uma fórmula, uma palavra de ordem partilhada em termos de ideal empolgante. Por
isso mesmo uma das minhas recordações mais antigas tem a ver com a projecção a que
assisti com os meus pais de um famoso filme de Rosselini, Roma, cidade aberta, em
que de olhos bem fechados ouvi os insuportáveis gritos de uma cena que não queria ver. E
recordo que foi com os meus pais, porque à saída me sentia envergonhado de termos agora
em comum a revelação de algo que até aí eu desconhecia: a capacidade de crueldade
ilimitada e de abjecção imperdoável a que um ser humano pode ser conduzido. Donde, em
filmes ou livros, ou outras formas de narração (sobretudo reportagens sobre a guerra ou
as ditaduras, na Argélia, em combates coloniais, em ditaduras estalinistas, ou no Chile
de Pinochet), eu sabia que certas cenas ou passagens do texto estavam ali para eu as
saltar.
Será da idade? A verdade é que, convidado inesperadamente a participar
num encontro sobre formas de tratamento específico da dor, a minha primeira certeza foi a
de que não poderia agora continuar a saltar, e por isso de imediato disse
"sim". Como se , num processo análogo ao que ocorre com a ideia de morte, se
tratasse de ultrapassar uma linha em que a partir daí já não é possível deixamos de
subjectivar determinados objectos: a morte já não é apenas a morte, é a minha morte; a
dor já não é apenas a dor, é a minha dor. Poderei dizer "a nossa dor"? Surge
aqui um terrível e incompreensível paradoxo: sei que quando falamos da dor, não
precisamos de explicar mais, todos sabem de que se trata, a palavra torna-se evidente no
próprio fio da respiração. Mas, ao mesmo tempo, nada nos isola, nos afasta tanto, nos
lança tão longe na condição irremediável de abandono e solidão, do que a dor única
que cada um de nós sente, E o primeiro traço é esse: sentirmos que no momento da dor
ficamos emparedados, na clausura mais extrema, sem luz nem azul do céu que nos seja
acessível, e sabermos no entanto que lá for a, fora de nós no exterior sem exterior da
nossa dor, a vida continua. E continua numa apoteose de corpos gloriosos que são
aqueles que as imagens da felicidade íntima ou turística projectam na tela das nossas
vidas. E continua numa indiferença total e obscena em relação aos corpos miseráveis
que a dor assalta e amarfanha.
Saltar a dor, portanto, rasurá-la, omiti-la. Mas foi isso mesmo que a
própria medicina fez ao considerá-la apenas como um sintoma, como uma informação, e
não como um instante, às vezes sem fim, de crescente afundamento existencial. E, no
convívio diário em que tudo se torna natural, a dor banalizava-se: de escândalo que
sempre era, foi, será, de agressão à vida na sua dignidade elementar, a dor tornava-se
um parceiro desbotado de uma situação clínica que se repetia dia após dia.
Há aqui, aliás, um conceito fundamental que é preciso sublinhar. Foi
sobretudo em torno das pesquisas de um médico inglês de nome Saunders que se começou a
falar na "dor total" para pôr em evidência o facto de que existem múltiplos
factores que condicionam o aparecimento e a intensidade da dor. O estado emocional do
paciente cria um terreno mais ou menos favorável, mais ou menos desarmado, ou mais ou
menos entrincheirado, em relação ao fenómeno da dor. É preciso incluir nesses factores
elementos tão diversos como o envolvimento familiar, a situação afectiva, a rede de
amizades, as crenças pessoais ou a situação socio-económica. E é na medida em que a
dor emerge na confluência destes elementos que o seu tratamento não só implica uma
análise global como a consideração da possibilidade de a atenuar ou eliminar através
da intervenção específica sobre alguns destes factores. É isto que põe em relevo a
noção de "dor total".
Ela tem ainda outra vantagem. Nós estamos habituados a falar de uma
bifurcação entre dor física e dor psíquica. E somos tentados a considerar que a dor
psíquica é dor apenas por analogia com a dor física como se tivesse aqui um
estatuto de metáfora. Embora todos nós saibamos que neste domínio, como em todos os
outros, a fronteira entre o físico e o psíquico, entre o material e o espiritual, seja
insustentável. Falarmos em "dor total" significa que a palavra "dor"
não é metaforizável, porque cada dor, sendo única e irrepetível, é sempre a
extensão, o prolongamento, o eco incrustado na carne, de um grito e de um apelo
primordiais. A experiência da dor psíquica é, para além de todas as traduções
somáticas, a experiência de uma destruição do corpo. Na medida em que qualquer dor é
por natureza intratável, e portanto não susceptível de qualquer comparação de efeitos
balsâmicos, a dor escapa a todas as formas de inscrição num discurso. Mas é na medida
em que é intratável que a dor necessita de ser tratada em todas as suas dimensões.
Entramos aqui naquilo a que se pode chamar o domínio semiótico. Sempre
que procuramos significar, utilizamos dois modos de produção de signos: ou um modo
digital, em que tudo se pode reduzir a alternativas sim/não, 0/1, ou o modo analógico,
em que não há fronteiras delimitadas, mas gradientes que funcionam segundo o princípio
do mais-ou-menos. Se o modo analógico é aquele que mais se predispõe à expressão das
intensidades (e por isso é também o que se encontra mais enredado com a instância do
inconsciente), contudo nós sabemos que a linguagem das palavras permite a manifestação
de intensidades. Por um lado, através daquilo que se pode chamar um "estilo" ou
uma "escrita": isto é, uma forma de combinar as palavras que permita que
através do digital se configurem efeitos de tipo analógico: a poesia é isso mesmo. E,
em segundo lugar, no plano oral, através das modulações de tipo analógico que têm a
ver com o ritmo, o jogo dos sons, a prosódia e a tonalidade da voz. É deste modo que os
sistemas semióticos de tipo digital podem simular o que é o extra-digital por
excelência: o grito, precisamente. E embora nos faltem palavras para exprimir as
qualidades da dor (tal como nos escasseiam os termos que poderiam designar o
inconfundível timbre de uma voz), as palavras podem dizer o grito mas podem
dizê-lo sobretudo se disserem o que do grito escapará sempre ao dizer das palavras. E o
mesmo em relação à dor: ela é por definição a-semiótica aquilo que resiste
à semiótica, aquilo que a semiótica não consegue tratar senão indirectamente.
Se formos às origens gregas, encontramos em Ésquilo a ideia de que a
dor é uma dádiva dos deuses porque é através dela que chegamos à sabedoria. Mas
encontramos também Antifonte que, no ágora, oferece os seus serviços, isto é, o seu
saber técnico, para tratar as dores. Estas duas modalidades continuam presentes em todos
os nosso discursos: por um lado a redenção pelo sentido; por outro o tratamento por uma
saber especializado.
Santo Agostinho conta, nas Confissões, a morte de um amigo
extremamente querido que com ele convivia há pouco mais de um ano. De início, é o
colapso absoluto, o movimento de pânico: tudo se retira, tudo o que fazia sentido deixa
de fazer sentido. É o momento da noite e da tortura: Assim se exprime Santo Agostinho:
"Luto que no meu coração fez noite. Em todo o lado apenas via a morte. A terra
natal tornou-se-me um suplício. Tudo o que eu tivera em comum com ele sem ele se
transformava num tortura horrível. Os meus olhos reclamam-no em todo o lado e nada mo
devolvia. Todas as coisas se me tornaram odiosas, porque , tendo ele deixado de existir,
já não podiam anunciá-lo como outrora faziam: "Ei-lo! Vai chegar!".
Mas o tempo vem suavizar a ferida e permitir a cura. Chorando, chorando
sem fim, por coisa nenhuma, porque consciente de que nenhum choro o poderia restituir,
Agostinho irá pouco a pouco tomando consciência de que existe um prazer nas lágrimas. E
aquilo que de início fora a vontade de morrer porque o amigo deixara de existir tornou-se
lentamente um desejo de viver para resistir à morte do amigo. Escreve Santo Agostinho:
"ó infeliz homem, que sofrendo com os males humanos perde o sentido da medida".
Pouco a pouco, ele vai encontrar a medida maior, a medida do imensurável que é a ordem
de Deus. E descobrimos aqui o grande processo que acompanha grande parte do pensamento
ocidental da dor: ele vai no sentido de Ésquilo, ao dizer que a dor é um caminho para a
verdade, uma via de acesso à sabedoria. Por isso Santo Agostinho pode dizer que ter
pensado que não iria morrer aquele que por natureza é mortal correspondia a construir o
nosso pensamento sobre areia movediça: "O que tu procuras, procura-o, mas não onde
tu procuras. Procuras uma vida feliz no país da morte: ela não está aí. Como queres tu
que haja uma vida feliz lá onde não chega a haver vida?".
Hegel gostava de citar Jacob Boehme: "Se a vida não tivesse
sensibilidade alguma, não teria vontade e acção; mas o sofrimento, a angústia, o
tormento, dotam a vida de vontade e a acção." Para Hegel, "o outro, o
negativo, a contradição, a cisão, pertencem à natureza do espírito". Donde,
"o espírito só conquista a sua verdade se é capaz de se encontrar a si mesmo na
dilaceração absoluta". Vemos assim que a história da dor foi sempre marcada pela
ideia de que ela era um episódio inevitável no caminho da sageza. Trata-se do que
poderemos chamar uma estratégia dialecticizante. Só Schoppenhauer tem a coragem de dizer
que a verdadeira dor é a dor sem razão.
Aquilo que me parece fundamental hoje é sermos capazes de dizer que não
conseguimos encontrar um fundamento para a necessidade da dor porque a dor é precisamente
a experiência de uma ausência absoluta e siderante de qualquer fundamento. Não
conseguimos pensar a dor porque a dor interrompe a dignidade do pensamento. Nessa medida,
será talvez preferível assumirmos que o nosso desejo de consolação nunca poderá ser
satisfeito (como escreveu o romancista Stig Dagerman ), e que a dor é por natureza o
indialecticizável aquilo que resiste ao consolo de qualquer dialéctica redentora.
Mas é precisamente por isso que é também preferível, ao recusarmos a
dádiva dos deuses de que Ésquilo fala, aceitarmos a proposta de Antifonte: aceitemos a
ajuda daqueles que por vocação e profissão pretendem obter um saber sobre a dor que
permita que a consideremos como experiência total que se pode tratar. Esse é o vosso
propósito e a vossa missão. Por isso mesmo devo deixar a palavra aos que estudam
laboriosa e denodadamente as técnicas adequadas, e depois comunicam o resultado desse
estudo. Modestamente, sem dúvida, mas de um modo eficaz, são eles que trabalham do lado
da vida.
Intervenção no Simpósio Dor Crónica em 9 de Março
em Lisboa.