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  «Sous la plage, le pavé»

  Reflexões a propósito de «St. Frigo» de Jimmie Durham

  [ José A. Bragança de Miranda ]

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Que estranho poder o de algumas obras, que destroem todas as amarras e começam a mover-se sozinhas, em nossa direcção. Ou então somos nós que nos movemos em sua direcção, ou que por elas somos atraídos irresistivelmente. Quem passa por esta experiência, que regressa uma e outra vez, já não possui qualquer critério aceitável, a não a fatalidade de estar-aí, de ter chegado aí, por onde se perdeu o movimento que as trouxe a nós e nós a elas. É certo que não existem obras fundamentais, nem mesmo para «nós», mas algumas têm o poder de nos transportar para outro espaço, que excede tudo o que existe, mesmo a arte a que pertenceriam.

Reflexão que me veio a propósito de St. Frigo de Jimmie Durham, onde um frigorifico se comporta tão estranhamente como se desatasse a voar, revelando que o agir livre se funda numa partilha mais originária que a própria arte, a que nos divide da violência.

Interessa-me a maneira como Jimmie Durham dá a entrever tal partilha, não tanto por ser um artista «político», mas porque, sem utopias de nenhum género, se coloca para além da «linha de sangue» (bloodline), como ele diz, que a história sempre foi.

É necessário recorrer à violência para propiciar algo «mais doce»? Porque violência, embora aparentemente gratuita, é o que há mais nesta obra, em que um frigorífico é apedrejado pelo «artista» cerca de 10 dias, depois filmado, e finalmente exibido, fechado nas paredes de um museu. Verdadeiro calvário de um objecto à primeira vista inocente. Mas só à primeira vista...

De facto, frigorífico, artista, museu e pedra partilham um mesmo destino, o da «petrificação». Na sequência de uma longa tradição (1) , Jimmie Durham volta-se acima de tudo contra o «perigo da petrificação», cujo modelo é a arquitectura. Durham disse algures que «When I get to be president of the world revolution, my first order of business will be to try architects for crimes against humanity, my next order of business would be to make it against the law for artists and architects to work together. Artists cannot accept architectural commissions and I'm sure the architects would support me except I'm going to put them all in jail». O esplêndido humor de Durham, que tudo atinge, está em usar as pedras contra a petrificação. Petrificação do espaço, mas também das obras, do artista, dele próprio. Mas chega-se aonde quando se entra nessa via? À «arte»?

Perguntas ambíguas, que revelam imediatamente as afinidades de Jimmie Durham com a estratégia de Duchamp que interroga se «é possível um objecto que não seja de arte». O apedrejamento que St. Frigo testemunha pareça, porém, percorrer outras vias. Enquanto que o ready-made operava uma conversão mágica do objecto, caso do famoso urinol, sem chegar a tocar no objecto, aqui o objecto é lapidado, amolgado, sem conversão. No entanto, ele resiste duravelmente à operação de apedrejamento. Dever-se-à tal resistência a ter entrado no espaço da arte, em se ter tornado num objecto de arte? Tal como nos ready made nada disso acontece, nem desfuncionalização, nem devir estético. Nem se pode dizer que se tratam de estratégias alternativas. De facto reforçam-se mutuamente. Em ambas está em causa a frigidez da «forma» ou da figura», que se funda numa retícula invisível mas rígida. Que a arquitectura representa. Em ambos casos intervém-se no espaço mínimo que articula matéria e forma, sem possibilidade de as destrinçar. Tudo se joga nesta inseparabilidade, que em si mesma é inaceitável. Enquanto no humor de Duchamp a operação eficaz é sobre a «figura» e a sua matriz invisível, incluindo-lhe o excesso da vida ou do acaso, em Durham há um combate com a figura que parece absurdo. Ela é inevitável e incancelável. Mas muito depende do registo desta impossibilidade....
   
O frigorifico resiste. A sua mudança de forma, imperceptível, que se acrescenta à mudança infra-mince de Duchamp, apenas figura, tem por efeito fazer aparecer outra forma, onde a antiga ainda é reconhecível. Com um rigor quase sádico a performance que fez de um simples frigorifico St. Frigo é um trabalho de calculado, sistemático, doseado - algumas horas todos os dias. Uma espécie de trabalho de construção, mas ao contrário. Como ele diz: «Queria fazer o contrário de uma escultura. Em vez de construir uma escultura a partir da pedra usando instrumentos, pretendia utilizar a própria pedra como instrumento, não construindo uma nova forma, antes alterando um objecto existente». Agora destrói-se, mas a destruição não pode libertar o fluído, o «incorporal» da petrificação. O que se segue à destruição da forma que se petrificou é outra forma. Pressente-se algo fatal. A interrogação de Durham joga-se nuam passagem ao limite

Dir-se-ia que estas palavras de Durham estão em recuo sobre St. Frigo. A escolha do frigorifico não é nada inocente, apesar do artista afirmar que o escolheu por ser um «objecto inocente». Estas palavras só podem ser entendidas ironicamente. Se é certo que «aquele» frigorífico em si mesmo é «inocente», como cada objecto ou coisa o é, enquanto forma está longe de ser inocente. Aliás, sem inocência não podem existir objectos inocentes! É inútil assim compará-lo com objectos mais «demoníacos», como o automóvel ou a televisão. Se no frigorífico existe algo que é demoníaco, como se explicaria o encarniçamento da performance? Enquanto o automóvel como objecto é culpado, como série ou matriz é um habitante do mundo do movimento, é um cinematismo. O mesmo se dá com a televisão, outro efeito cinemático, agora da distância de onde vem tudo, à força de imagens e de formas. Este aparecer ainda é sinal de movimento.

Com frigorífico sucede tudo o contrário. A grelha onde se gera o frio, permite entrever uma outra grelha, a da matriz de relações que «petrificam», cristalizam, ou congelam a «liberdade» ou a vida. Tudo se passa como se, em última instância, a petrificação primeiar seja a da grelha que tudo aprisiona, mesmo a pedra; a forma que se funde com a pedra, apagando a ínfima distância que existe entre matéria e forma. O frigorífico é o Enviado de uma gigantesca linha de frio que enrijece a experiência numa arquitectura que se mantém dissimulada, bem como a numerologia que a determina: a frigorificação generalizada da vida.

Neste sentido o frigorífico é «culpado». Não é ele que petrifica a «água», tornando-a não apenas em gelo, mas principalmente em «cubos» de gelo? Não tem ele a forma de um cubo ou de um paralelepípedo, como o gelo que produz? Não deve surpreender, então, que a expiação porque tem de passar seja a de ser apedrejado por pedras talhadas em formas de cubo, pavé, com que as cidades são cobertas. Razão porque tem pouco sentido falar da oposição de um objecto natural a um objecto industrial. É o objecto, o facto de estar aí lançado, que apela outros lançamentos, ou apedrejamentos. O pavé que é lançado não é um objecto natural nem que seja porque a pedra é talhada. Não é uma pedra qualquer, com formas contingentes, casuais. São cubos de pedra, formas impostas à pedra que lhe dão a máxima estabilidade, fazendo-a cair organizadamente sobre a terra (da cidade). Isso não a impede de voar. Como os dois vídeos registarão.

A violência de que usa Durham contra este objecto «inocente» parece despropositada, e ainda por cima inútil. É certo que o frigorifico, pobre objecto, é apedrejado, filmado, transportado, exibido, numa violência absoluta do estar à disposição. A piedade desperta, e a sua subida ao céu equivale à entrada no museu, devindo um frigorífico absoluto.

Talvez seja contra o museu que a violência de Durham se desencadeia, desmontando ao mesmo tempo a falsa piedade de uma vitimização ilusória, e a impossibilidade de salvação, antes de mais no espaço do museu. St. Frigo mostra-nos como a receptividade do museu é feita à custa de um controlo da sua anamorfose. Não há metamorfose nem transfiguração, mas apenas o controlo da anamorfose. A superfície espelhada o frigorífico ganha marcas, escoriações, sinais, implicando uma variação de formas que se desenvolvem em série. As escoriações do frigorífico são o remanescente de uma forma lisa absoluta, que cresce incolumemente, à medida que o a superfície espelhado do frigorífico é desalisada.

A enorme violência que parece estar inscrita na superfície espelhada do frigorífico é finalmente ilusória, pois toda a violência está na matriz que «estabiliza» as formas. Sob a forma jaz uma enorme violência. Que pode libertar ou aprisionar. Indecidido. Entre forma e forças há uma tensão que emerge e desaparece, que é sentida como guerra, violência. Esta última só liberta se conseguir manter a tensão que toda a forma contém pela sua mera existência. Os dois vídeos que enquadram o frigorífico, na sua centração quase teológica, constituem assim uma espécie de mnemotécnica da violência. Com efeito, o registo em dois vídeos, do homem que lança a pedra e do frigorífico que a recebe é sintomático. Não é um suporte imaterial, mas o traço da forma no seu fazer-se e desfazer-se. Esse traço é aparentemente «leve», mas a sua leveza é ancorada pelo St. Frigo, que elas circundam, como os ladrões ladeiam a Cristo na Crucificação.

As conotações teológicas de St. Frigo são evidentes, mas difíceis de analisar. Estamos perante uma espécie de inversão do martírio pré-moderno, que ainda será o dos índios norte-americanos. Porém, nada resta das possibilidades antigas. Desaparecida a conversão, como no caso de Madalena, cujo apedrejamento foi assim evitado; desaparecida a santificação, como no caso de S. Sebastião. A violência fazia de Sebastião um santo, e cada arremesso, cada seta, leva-o para um espaço onde era inatingível e finalmente seria salvo.

Tudo finalmente se tornou inútil. Nenhuma pedra consegue salvar o frigorifico, e o espaço em que cai, o do museu, impede-o da sua único e miserável «libertação»: desaparecer. De facto, o frigorífico de St. Frigo, vítima ilusória de um acto violento, é um santo paródico. Um santo de museu. O martírio do objecto é a sua permanência, e é contra esta que vão as «pedras» arremessadas por Durham.

Eis o momento poético e político em que intervém Durham. Trata-se de fazer voar a pedra, de torná-la produtiva, criadora. Isso ocorre sempre em falha.

É certo que o alcatrão faz hoje o mesmo papel, alisando a retícula formada pelas pedras, que formam a cidade. A questão decisiva, como mostram os revolucionários da Comuna de Paris, e todas as revoltas populares, é que tudo pode ganhar movimento, nomeadamente as pedras. Elas põem-se repentinamente a voar. Combatem aquilo mesmo que elas representam: a frigidez, a colocação ordenada, a construção, e os eu cortejo de violências. Mais do que um combate das formas contra as formas, temos um combate puro e duro. Uma partilha originária da violência.

Disse-se já que as pedras em Durham apontam para uma «selvajaria original» porque «resistem à apropriação». Nos factos trata-se do inverso, a sua dureza não impede o seu aprisionamento, de modo que libertá-las é o mesmo que libertarmo-nos. No poema intitulado Colombo, que procura comemorar gestos de resistência que não deixaram traços, que os monumentos apagam, ele refere outras pedras, lançadas por aqueles que «who slowed/The march of Cortez' army with only a few/Spears and stones which now lay still/In the mountains and remember». Essa memória das pedras, impreparada e sem forma, pode ainda ser permanecer, nas pedras que foram monumentalizadas pela forma?

A continuidade da metáfora é evidente, quando vemos os índios americanos responderem com pedras e setas aos invasores, num sentido contrário ao de S. Sebastião, que as atraía, ou ao frigorifico, que procurava as «suas» pedras. Trata-se de fazer um trabalho pela vida, pela espontaneidade, e, em última instância, pela inocência. Um pouco como o faz Louise Bougeois numa outra representação de S. Sebastião. Trata-se, aqui, de esvazias as formas «inchadas» do desejo masculino.

Durham é eminentemente político, mas apenas porque está em busca de uma política mais originária baseada em afinidades inauditas com a matéria mais absoluta, em que ela «voa» numa liberdade impossível, mas da qual depende que possamos habitar livremente. Como voltar a dar-lhes a leveza que as fez voar contra o invasor, o destruidor? Como fazê-las irromper em catadupa, as setas do corpo de S. Sebastião, as Pedras abundantes do corpo do St. Frigo, as pedras dos índios Cherokee. Daí, talvez, que Durham, pretenda «to do different things with stone to make stone light, to make it free of its metaphorical weight, its architectural weight, to make it light. So I've been thinking of different ways to make stone work and to make stone move instead of making stone into an architectural element».

Esta obra inscreve-se numa série de outras em que Jimmie Durham pretende «libertar» as pedras, dar-lhes a sua liberdade, ao mesmo tempo que nos libertta da nossa petrificação. Interessa sobremaneira, neste quadro, um projecto de Durham de fazer «a moving picture about moving stones», o que passa por fazer «celusose copy», cópias em celulóide, pondo-as em movimento, como no cinema, tornando-as não arquitecturais.

Com este projecto, Durham pretende intervir num outro projecto dos nazis, dirigido por Speer, o arquitecto de Hitler, de transportar pedras as Suécia para construir um monumento e, Berlim. Agora, partindo da cidade de Mälmo na Suécia, as pedras são reunidas e transportadas numa balsa em direcção a Berlim, para onde, no tempo do nazismo, tinham partido outras pedras para fazer o monumento de Speer. No final, tudo seria afundado, barco e pedras: «The stones become as eternal as our film is good, and they never have to attempt to be a monument. They're free of monumentality». Evidentemente que o cinema as volta a aprisionar, embora as restitua como uma mnemotécnica do seu desaparecimento, como simulacros de pedra, em celulóide, deixando tudo coberto pela água. A libertação da matéria da forma equivale, assim, a um regresso à natureza?

Em Durham ecoa o velho graffiti de 68 «Sous le pavé, la plage». Mas na maré de imagens, fragmentos, desejos, que é o mundo actual, não será verdadeiro o inverso: «Sous la plage, le pavé»? Indecidível alternativa, como o frigorífico o permite pensar, ele que dá forma à agua, que mantém toda a forma enquanto oficiante de uma imensa rede de frio que congela toda a experiência e ao mesmo tempo incapaz de afectar a sua forma. O martírio antigo, ao invés, levava tudo ao rubro, à incandescência. Os corpos podiam desaparecer, e era essa a sua falha. Durham parece recusar esta alternativa, evitando assim a armadilha em que caiem os que desejam o nomadismo, a liquidez ou o evaporamento.

Afinal, só se pode trabalhar sobre o perigo da «petrificação», contra o «pavé», em favor de algo «mais doce» e não apenas mais leve. Eis a essência da política de Durham: «Why else would the birds sing/So much sweeter here than in other lands?»