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  Podem as caixas mudar o Mundo?

  (Reportagem/ensaio sobre a televisão interactiva)

  [ Jacinto Godinho ]

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A TV Cabo Portugal e o gigante mundial da industria de software, a Microsoft preparam-se para lançar em 2001 uma “caixa” digital que realizará finalmente o sonho de Bil Gates - colocar o Windows na televisão e recuperar para o “negócio” toda uma imensa massa mundial de infopobres, ou infoincultos.

Antes de desenvolver esta aparente notícia de “ 1 de Abril “ permitam-me preparar o terreno para a argumentação. Em todo este vertiginoso processo de tradução de experiências em máquinas e linguagens, o “velho” discurso não perdeu o seu poder e influência, bem pelo contrário. Toda a aura encantatória que envolve o aparecimento de novas máquinas, assenta sobre um território discursivo que demoniza falhas, frustrações, limitações que envolvem a experiência de máquinas anteriores transformando-as em “real” sob a forma de pesadelo, e abrindo ao mesmo tempo todo um campo de fruição e fantasia” ás performances das novas máquinas, cuidadosamente publicitadas nas suas “boas” características e camufladas nas “más “ . As possibilidades negativas das novas e tendencialmente imateriais máquinas são de tal forma afastadas pelo discurso envolvente que perante cada novo equipamento o efeito produzido é o de uma estranha narcose. Palavras que ocultam e palavras que inflamam; poderes que nos tornam febris ante máquinas que meses depois, desfeito o efeito, já nada dizem abandonadas a um canto da casa. Esta introdução serve apenas para esfriar o possível estado febril da notícia, acima descrita, colocando no seu devido lugar o “novo” e o “revolucionário” que sempre flameja nos discursos especializados das revistas de tecnologia. Ou seja esta é uma história que o Ocidente está habituada a contar há séculos.

No dia 8 de Novembro a INTERACT esteve presente na estreia mundial de uma máquina que poderá mudar a actual configuração mediática. Tratava-se de uma apresentação reservada às empresas, potenciais investidores e exploradores da nova tecnologia. Esta informação é relevante porque como não estavam presentes os órgãos de comunicação social, houve liberdade para uma apresentação do dispositivo e portanto ara um discurso menos cauteloso. Falou-se á vontade e a máquina revelou-se-nos melhor.
A “máquina” é a nova caixa de televisão interactiva que a TV Cabo pensa comercializar para o milhão de assinantes da sua rede a partir do segundo semestre de 2001. Tem, como habitualmente um nome inglês - set top box - e uma sigla - STB - para circular facilmente nos discursos. Estreia mundial ? Exagero ? Ajuíze-se a partir das palavras de Graça Bau presidente da TV CABO Portugal e responsável por duas importantes mudanças na área das telecomunicações em Portugal - a digitalização da rede telefónica e a introdução da TV Cabo . Na intervenção inicial Graça Bau confessou que na sua vida profissional só duas vezes sentiu estar perante “ momentos fortes e únicos”: - primeiro no “ arranque da digitalização da rede telefónica em 1982 “ e agora quando “viu a caixa da televisão interactiva a funcionar”. “É uma espantosa fusão das duas máquinas mais poderosas da actualidade - a televisor e o PC - com as duas industrias mais poderosas - a Internet e a televisão. E Portugal vai ser o primeiro país do mundo a ter a televisão interactiva da Microsoft.”

Vale a pena introduzir um pouco o historial das WEB TV antes de explicar melhor a caixa. O crescimento acelerado e volumoso da Internet processada pelos computadores pessoais produziu uma interessante rivalidade entre PC´S e televisores pela ocupação do espaço e do tempo domésticos. Fatias grossas da experiência moderna ( conversas, literatura, imprensa, comércio, musica, vídeo, etc.) começaram e continuam a ser transferidas a uma velocidade alucinante, através das modestas e recapacitadas linhas telefónicas para o interior dos discos rígidos, os surpreendentes e espantosos novos micro/macro territórios da nossa experiência. Aos poucos as mega industrias do cinema e da televisão começaram a ser desviadas para as cada vez mais aperfeiçoadas redes de streaming, seguindo com elas porções significativas e crescentes de investimentos publicitários. Sob ameaça, as empresas de televisão lançaram-se numa desesperada tentativa para produzir a melhor tecnologia que colocasse a Internet na televisão antes que as massas se tornassem “cultas” em volta do computador. Praticamente deixou de fazer sentido a luta com o cinema e a busca pela televisão de Alta Definição. A ameaça vinha mesmo era da baixa definição do vídeo via Internet.
As consolas tentadas para colocar a Internet na televisão falharam por variadíssimas razões; inadaptação do comando para navegar, impossibilidade de gravar e imprimir informação, grafismo demasiado pequeno para a distância do observador de televisão e a maioria das páginas da web, etc, etc.
Nos Estados Unidos a Microsoft iniciou em 1997 o seu serviço de Web TV para as redes de cabo baseado numa pequena caixa de fraca interactividade e o serviço tem sido um fracasso. A Microsoft enfrenta mesmo várias queixas em tribunal por publicidade enganosa já que para divulgar a Web TV sustentava que o seu produto dava à televisão o mesmo nível de acesso que o PC. Foi este “pequeno” problema que uma empresa portuguesa, a OCTALTV da Novabase conseguiu resolver ao ponto de conseguir, primeiro interessar a TV Cabo e depois o gigante Microsoft a investir no desenvolvimento de uma caixa e de uma plataforma para o complexo portal da TV interactiva. É preciso referir que a Microsoft escolheu cinco parceiros mundiais na sua busca pela caixa perfeita, a Motorola Inc., a NDS Group plc, a Octal Systems Inc., a Philips Electronics e a TV Cabo. A curiosa participação de uma empresa portuguesa num dos negócios do século XXI já mereceu inclusivamente destaque na revista NEWSWEEK1. Mais, a caixa digital portuguesa foi a primeira a ser apresentada a Bil Gates. Foi em pleno Verão nos Estados Unidos e recebeu como primeiro comentário do patrão da Microsoft “ COOL”. Um novo filão surgia - o WINDOWS PARA TELEVISÃO.
Uma consola fácil que consegue a convergência de várias, máquinas, de várias redes e de várias linguagens, fundindo o PC na televisor com o objectivo de por o ciberespaço ao alcance dos infoanalfabetos, com experiência de “zappeurs” inveterados. A máquina da OCTALTV foi também a primeira a ser apresentada em publico. Esteve em demonstração de 7 a 12 de Novembro em Lisboa na Expotelecom. Em Dezembro começará a ser testada por mil clientes da TV CABO escolhidos por amostragem. Trata-se de uma fase experimental para verificar não só o funcionamento como dar contas das falhas. Será colocada à venda no segundo trimestre de 2001. A caixa portuguesa vai fundir num só aparelho um computador, um vídeo, um leitor de DVD e uma caixa ATM para compras com o cartão multibanco. Integra pela primeira vez um cable modem que a torna versátil para navegar nas redes de banda larga e para se ligar a outro PC.
A plataforma da Microsoft foi feita para por no écran do televisor em simultâneo a Internet e os canais tradicionais de televisão. O acesso á Internet será total mas sob as ordens da Microsoft. É possível ter acesso a todas as páginas mesmo as baseadas em java HTML 4 , HTML dinâmico e streaming áudio ( mp3 ) e vídeo mas só os que estiverem preparados para o Media Player. Por esta televisão interactiva a Internet passará a estar totalmente sob o controle da Microsoft. Poder-se-ão realizar download´s para o disco da STB. O disco permite ainda gravação no formato de compressão Mpeg2 e pode ter uma capacidade variável armazenamento de imagens. A caixa que vimos em testes permite a gravação de sete horas de vídeo. As gravações podem ser em simultâneo, ou pode-se estar a ver um programa previamente registado enquanto a caixa grava outros. A caixa permite ainda fazer compras com cartão multibanco por possui uma ranhura onde se coloca o cartão introduzindo-se de seguida o PIN como se faz por exemplo nas lojas. A TV Cabo pensa assim ter resolvido os problemas de segurança do comercio electrónico.
A publicidade passa a ser interactiva aproximando-se do mailing directo. Quem vê um anuncio poder pedir um folheto mais detalhado, encomendar, comprar ou então verificar qual o loja mais próximo da sua casa que tem o produto desejado. Quanto aos programas de televisão, a interactividade irá permitir, escolher câmaras em transmissões desportivas, em espectáculos musicais ou em cerimónias oficiais por exemplo. Irá ainda permitir encomendar programas, fazer a própria emissão. Permitirá cobrar directamente programas no sistema “Pay-per-vue”.
A caixa pode-se ligar como já assinalámos a um computador por rede ethernet, ou a vários televisores ou monitores em simultâneo. Mas o maior trunfo do dispositivo é o comando da caixa que de forma engenhosa permite navegar activamente pelas páginas da Internet, podendo ser complementado com um cómodo teclado sem fios, com ligação por infravermelhos. O triunfo do zappeur submergido na abundância, no excesso de estímulos onde será no entanto mais fácil ser governado que governar. O ciberespaço não é necessariamente sinónimo de cibersujeito e a interactividade parece camuflar a interpassividade.
Interactividade é o conceito chave quando se trata de interpretar das novas tecnologias digitais. Lev Manovich sustenta inclusivamente que um dos primeiros actos fundadores da interactividade tecnológica foi a actividade das operadoras de radar na Segunda Guerra Mundial, de olhos postos no écrans dando ordens ao aviadores britânicos indicando as posições da aviação alemã2. No entanto a emergência da palavra não parece ter surgido das potencialidades teóricas que abre mas sim de um atravessamento estratégico por parte dos vendedores da novas máquinas que descobriram nela uma juventude suficiente para lançar uma sombra acusadora e deslegitimante sobre o acto passivo associado ao consumo de um texto, de uma imagem, de uma obra de arte. Como se de repente todo o acto de leitura ou de observação deixasse de ser um tempo benéfico e essencial para o pensamento se apurar e passasse a ser uma empobrecida experiência de queda para a alienação, para a flacidez do corpo e da mente reduzida a um mero agente de reacção a estímulos. Viver através de cliques é o nome do livro socióloga americana Faith PopCorn que estuda os fenómenos do burrowing, o retiro , “ Dito de outra maneira , depois de nos termos delicadamente enroscado no nosso casulo, eis-nos tal como pequenos animais, prestes a hibernar, escavando o nosso buraco, para fugir de um meio ambiente hostil.” Através das caixas digitais cada indivíduo desenvolverá em crescendo uma interacção com as experiências do écran, participando nas peças e nas fitas, escolhendo os desenlaces das chamadas narrativas interactivas, participando em debates na comunidade virtual, escolhendo programas, tomando posse de uma porção de ciberespaço, tomando posse finalmente de uma participação activa no espectáculo. Sujeito interactivo, reactivo, ou superpassivo. Zizek defende que as alterações no quadro da experiência moderna não são de sinal contrário mas sim um aprofundamento da situação de transferência passiva de experimentar através de um outro ( sujeito ), um processo nada recente bem pelo contrário instituído pela tragédia grega e globalizado pela tecnologia moderna.
“ Is not the other side of the this interactivity, however, interpassivity? Is not the necessary obverse of my interacting with the object instead of just passively following the show the situation with the object itself takes from me, deprives-me of, my own passive reaction of satisfaction ( or mourning or laughter) , so that is the object itself which “enjoys the show” instead of me, relieving me of the super ego duty to enjoy myself ( Zizek,1997, p.112)3.

Interactividade ou interpassividade? Quem regula e quem é regulado? Que é o mestre e que é o escravo? É evidente que a atracção pela cena mediática se deve em muito à oferta de conforto, de uma passagem pelos limites mas em segurança. Uma simulação depurada das piores possibilidades mas que no entanto produz experiência. As vias por onde a transferência de experiências se faz para sujeitos que as recebem desimplicados e em segurança, nunca foram claras desde a tragédia grega aos territórios virtuais. Por isso mesmo sempre se tentaram contabilizar os riscos deste processo muito combatido mas nunca invertido. As novas caixas interactivas não vão libertar o sujeito porque ele nunca esteve verdadeiramente inactivo nem incomodado com a crescente globalização da posição de espectador na sua vida. Bem pelo contrário ao mínimo descontrolo e desconforto nos milhares de caminhos da Net, que exigem tudo menos comodismo, os “ interactivos sujeitos “ contratarão rapidamente quem pesquisa , decida e organize por eles.
A tecnologia MicrosoftTv que irá colocar a Internet dentro de um televisor permite à empresa norte-americana ganhar mais uma batalha nestas guerra moderna de redes, entre aquela caótica, descentralizada, nómada, processada pelos PC´S e a hiper fechada e controlada rede de televisão. Na nova plataforma da Microsoft tudo se irá submeter às suas normas. Os formatos de texto, imagem, vídeo, áudio serão apenas lidos pelos programas “oficiais” já que a caixa não permite instalações externas, e só realiza updates automáticos. A natureza em rede da televisão muito raramente fez parte das reflexões modernas sobre o fenómeno televisivo. Desde logo foi englobado na longa tradição hermenêutica do sujeito ocidental realizada a partir da representação e da imagem, cujos vários formatos ( pintura, fotografia, cinema, etc. ) sempre foram espaços privilegiados para dar conta da aventura humana, sempre desafiantes e permanentemente renovados.
A televisão sofreu a primeira vaga crítica com o diagnóstico das hermenêuticas ou das fenomenologias da imagem e o resultado foi-lhe altamente desfavorável. Numa altura em que o cinema já tinha arrebatado todo o fascínio teórico em volta das imagens-movimento, as produzidas pela televisão sofriam com a comparação, aparecendo pobres, a preto- e -branco, ou com uma cor desbotada, sem lei de enquadramentos, sem tratamentos cuidados de luz. Pela imagem se quis ver a televisão, atrás da imagem ela escondeu a sua natureza de rede, proliferando vigorosa ante o desprezo dos intelectuais, actualmente incapazes de lhe oporem uma única categoria que dê conta do emaranhado de processamentos de linguagens, registos, signos, símbolos que hoje consegue agenciar.
A televisão é rede de composição e alargamento dos espaços mentais e sensoriais na cidade moderna. Ela é a consequência de uma certa configuração política de experiência que exige que cada indivíduo possua “propriedades territoriais” , espaços de jogo, de emoção e decisão muitos mais vastos que aqueles que o corpo consegue reproduzir.
O problema deste electrodoméstico ampliador de horizontes, é a sua excessiva centralização, que já vai alimentando processos de autofagia, alimentando-se dos fenómenos que produz ( exemplo disso é a contaminação do par noticias/telenovela que por exemplo com o Big Brother pôs a televisão a consumir - notícias de si própria ). A rede televisiva corre o risco de devir um imenso buraco negro. Daí a batalha da Microsoft para colocar o imenso potencial criador de novas experiência que é a Internet no interior da rede que oferece uma regulação total - a rede televisiva. A batalha é para impedir que o PC ganhe o publico domesticado da televisão. Para isso a televisão tem de ganhar a Internet colocando-a num território onde consegue controlar a atenção, definir valores e por preço em tudo. Pela rede da televisão a www deixa de ter atalho, piratarias, excessos e volta a ter preços, portagens e cobranças. “Este conflito encontra-se inscrito na dupla qualidade do próprio mundo. A tecnologia é simultaneamente uma questão de lógica, é o longo braço da lei, o logos, a faculdade de distinguir partes ( por um lado e por outro ) e é também uma questão de capacidades, de dígitos, de velocidades e ritmos de tecnologias, de engenharias que correm com “ uma distribuição completamente diferente e a que devemos chamar nómada, um nomos nómada,, sem propriedade, sem muro de vedação ou dimensão.” Deleuze, “Difference et Repetion” in Sadie Plant, Zeros e Uns , Bizancio, Lisboa, p.614
A caixa digital interactiva mais não é que a versão moderna do fascínio manipulador de Socrates denunciado por Alcibíades no Banquete de Platão. A consola da OctalTv no mesmo instante que permite um maior controlo sobre sobre as emissões de televisão, que assegura a transferência de processos comercias para o interior do écran televisivo, permite também que as viagens virtuais sejam vigiadas ao segundo. A caixa irá reformar os audímetros e as amostras. Ela pode detectar quem está a ver, o que está a ver e por quanto tempo vê sempre que estiver ligado à set top box ( STB). Janela para o mundo ou espião no lar?
Libertação democrática ou invasão de privacidade.? Nem uma nem outra hipótese são novidade quando se trata de regulamentar uma tecnologia carregada possibilidades e efeitos desconhecidos. No meu entender estas são as condições para que o mesmo jogo de sempre continue. A experiência moderna irá passar sem duvida pela nova caixa que põe Portugal no mapa do gigante Microsoft, expandido os território virtuais milagrosamente multiplicados a perder de vista no interior de uma caixa, qual latifúndio moderno. È só mais um lugar onde é preciso aprender a sobreviver.

 

LINK´s :
http://tvinteractiva.fdti.tvcabo.pt/
http://www.microsoft.com/tv/news/ne_partner_summit.asp

 

1 - artigo da Newsweek
2 - Manovich, Lev - The Mapping of Space: Perspective, Radar, and 3-D Computer Graphics
3 - Zizek, Slavoj – The Plague of Phantasies – Verso, New york, 1997
4 - Plant, Sadie – Zeros e Uns, Bizâncio, Lisboa, 2000