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 Initiare, do latim «iniciar», «começar». A integração da inquietude

  [ Victor Flores ]

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> Estrada em Obras (1997), Augusto Alves da Silva

> Dirty Mind (1995), Luísa Cunha

Provavelmente desde a Alternativa Zero que o país não assistia a tão fortes consolidações e tomadas de posição no universo da arte. Para além do acentuado crescimento do número de galerias, dos prémios artísticos, de colecções privadas ou mesmo de algumas Fundações associadas ao nome de empresas públicas, e da crescente internacionalização das programações, vem-se assistindo na esfera política à progressiva demarcação de preocupações com a representatividade artística de Portugal quer através da mostragem e difusão da produção nacional no estrangeiro quer pela constituição de colecções públicas de arte moderna e contemporânea. Fundação Centro Cultural de Belém, Museu Nacional de Arte Contemporânea de Serralves, Museu do Chiado e Instituto de Arte Contemporânea marcam com as suas colecções essa nítida tomada de posição pública na segunda metade da década de 90, transpondo-se a inesquecível lacuna com que o final do século português ameaçava ser associado- o estigmatismo para com a modernidade e actualidade estéticas. É pois a Colecção IAC/CCB que mais recentemente nos saúda com a rectificação desse olhar. Initiare é nas palavras de Margarida Veiga, Directora do Centro de Exposições do CCB, «assumir o papel das vanguardas», o que quererá tanto dizer assumir o presente e, na sua consagração, o transitório, o fugitivo, o conjuntural, como também implicará assumir a controvérsia e por isso as margens- ou o que delas resta- como o que faltava ser oficialmente coleccionado.

Initiare. Mais do que uma colecção formada em blocos cronológicos, historiográficos ou de estilo, é uma colecção que tanto valoriza os jovens autores nacionais com um percurso em afirmação, como permite a representação em Portugal de autores estrangeiros que por cá já expuseram, tal como ainda vem constituir núcleos autorais representativos de autores contemporâneos «já consagrados», como são os casos de João Penalva, Jimmy Durham e Ângela Ferreira. Nesta perspectiva, a posição que assume a colecção não será tanto pedagógica- como assumidamente o é a Colecção Berardo e como até o poderão ser a colecção Circa 68’ ou a do Museu de Design- mas é bem mais a posição intervencionista do incentivo tanto à internacionalização das programações como também ao desenvolvimento das tendências em afirmação e dos artistas emergentes a nível nacional.

As aquisições das obras efectuadas nos últimos três anos são exemplares dessa posição assumida pelo IAC/CCB de tornar nítido o papel orientador do Estado junto dos privados e também de exercer algum estímulo ao comércio da arte aqui representada, uma vez que foram especialmente efectuadas quer a galerias - principalmente do Porto e Lisboa, mas também de Londres, Estocolmo e de Villeurbanne- quer aos próprios artistas. Se se diz com rigor que um coleccionador particular é um espião- porque por vezes procura aquela obra com manobras camufladas e até algo clandestinas-, ou um egoísta- porque por vezes guarda e protege a sua colecção dos olhares e da cobiça alheia-, já o coleccionador público é por dever- e orgulhosamente assim aqui se apresenta- um incentivador, um verdadeiro cultivador que aproveita a pequena seara para a pluricultura, sem mesmo, e com igual paixão, deixar de ceder lugar às novas sementes alternativas ou aos novos regadios.

Com incomparável relevância verifica-se que o género artístico preponderante na colecção é a instalação. Incomparável, em primeiro lugar, porque é o género mais difícil de ser coleccionado, sendo por isso o género que sistematicamente menos apoios tem recebido. Questões relativas à sua permanência num espaço e à sua arrumação têm afastado a instalação, a contragosto de muitos coleccionadores, dos seus espólios privados e particulares. É ainda um género que exige uma experiência pessoal de cada espectador, arriscando-se, caso contrário, à impossibilidade de uma análise ou descrição. Este testemunho pessoal, muitas vezes também dificultado pelas constantes desmontagens de que é alvo, tem frequentemente dificultado o seu estudo e respectiva historicização por parte da História da arte. A crítica dos anos 60 (nomeadamente Michael Fried no seu ensaio «Art and Objecthood» de 1967) insurgiu-se algumas vezes contra esta tendência- dita «teatral»- que viria a marcar a instalação, e que partia sobretudo das exigências pós-minimalistas, entretanto emergentes, de fazer depender a obra de um tempo-duração, de uma situação espacial particular, e sobretudo do espectador. No entanto, e não sendo já decididamente um género novo, o desafio simbólico da sua inclusão na colecção Initiare prende-se com o facto da instalação- porque convoca e se interliga com o espectador- se confrontar em muitos casos com a resistência do espectador tradicional. Quer a associação de vários géneros artísticos, a parceria com os novos registos multimedia, quer, e principalmente, a desobjectualização com que muitas vezes surge associada, mantêm a instalação como um género novo, e por isso ainda desassossegante, aos olhos do espectador tradicional cuja predisposição à experimentação, apesar de aspirante, é ainda um work in progress. Mas é este desassossego que se está a jogar ao se apresentar uma colecção contemporânea que marca o intervalo entre 1992 e 1999 e que bem servirá à Iniciação do público português aos sinais contemporâneos da estética, ao «incentivo do gosto público», como ressalva Margarida Veiga no Catálogo da Colecção.

E porque assistimos em Portugal à emergência de um paradigma- o do coleccionismo público de instalações- que já vem sendo desenvolvido no estrangeiro pelo menos desde o princípio da década de 90, não será difícil associarmos com satisfação esta colecção àquela que seria a contra-imagem de um nobre Salon des Refusés. Os espaços alternativos que até aqui frequentava, o carácter contestatário e anti-institucional que manteve nos anos 60, concederam à instalação desde o período moderno uma aura anti-estética. Se esta aura a manteve durante algum tempo desfasada do institucional, muito depressa lhe veio garantir, nesses mesmos anos 60, a assimilação e os convites para a criação site specific dentro dos museus. Tal como reconhece Julie Reiss, «Installation art can be used as a barometer for the historical relationship between avantgarde art and the museum» (1), mantendo-se no entanto, e para além do momento da sua integração, o «estado de graça» de um dia ter sido refusée. E como último tópico da sua crescente integração, considere-se a Bienal de Veneza de 1976, Ambiente Arte, a este género dedicada, assim como a também crescente valorização da extensão/expansão dos meios artísticos que hoje encontram nas figuras do multimedia e do digital especiais hibridizações. Esta integração surge assim histórica e conjunturalmente inelutável.

Para além da escultura e da pintura que constituem a colecção, são pois as instalações que mais sobressaem no percurso da visita. Por um lado pelos registos a que se associa, quer recorrendo a um único suporte - como são os casos do vídeo ou da projecção de diapositivos-, quer associando estes à escultura, ao som ou à fotografia sobre madeira ou sobre pvc. A ambivalência, associabilidade e dinâmica destes meios chamará a atenção do visitante mais conformista. Por outro lado também porque o eixo temático que tanto guia como distingue as obras da Initiare se inspira muito na própria natureza do género instalação devido a essa insatisfação formal (cfr. Off Screen, Douglas Gordon), à deambulação identitária (cfr. Lisboa 96, Augusto Alves da Silva) ou aos registos híbridos (Quem disser/Ricardo Reis/As Frases/Vamos Morrer, Jimmy Durham) ou ainda à queda iminente e à multiplicação dos espaços de apresentação das obras (cfr. Wallenda, João Penalva).

E porque é de instalações que falamos, sugerimos um olhar mais focalizado a duas instalações: Estrada em obras (1997) de Augusto Alves da Silva e Dirty Mind (1995) de Luísa Cunha que são tão simplesmente a escolha mais subjectiva que consegui fazer para motes (ou mesmo links) sugestivos de uma eventual revisitação.

(1) REISS, Julie R., From Margin to Center. The Spaces of Installation Art, Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1999, p.xv da introdução.

(1) Isabel Carlos in Catálogo da Exposição Initiare, p.16