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Os Encontros de Fotografia de
Coimbra, que encerram as suas portas a 26 de Novembro, tiveram este ano a sua primeira
edição em formato bienal.
Iniciados há vinte anos atrás, em Maio de 1980, foram uma das primeiras
manifestações no género, a par com a abertura, no mesmo ano, da primeira galeria
exclusivamente dedicada à fotografia, e dirigida pela mesma organização dos Encontros
(que à data tinham a designação de Encontros de Fotografia de Maio): a secção
fotográfica da Associação Académica de Coimbra.
Esta iniciativa, juntamente com a abertura da galeria, correspondeu a um
movimento mais ou menos simultâneo em toda a Europa, de interesse pela imagem
fotográfica numa perspectiva artística e museográfica: a galeria parisiense Agathe
Gaillard é do mesmo ano, os Encontros de Fotografia de Arles haviam sido iniciados em
1978, o mês da Fotografia de Paris faz igualmente agora vinte anos e a galeria Contrtype
de Bruxelas, a Photographer's Gallery de Londres, o Museu Charleroi na Bélgica são
sensivelmente do mesmo ano. Em Lisboa, em 1982, abre a galeria Ether Vale Tudo Menos Tirar
Olhos, dirigida por António Sena.
Em Coimbra, os estudantes à frente da secção fotográfica são os
mentores desta iniciativa: Manuel Miranda, Fernando Zeferino, António Miranda, Jorge
Santos, entre outros.
Numa altura em que a dispersão provocada pelo fim dos cursos
universitários começava a por em crise a continuidade dos Encontros, Albano da Silva
Pereira, em 1985, decide tomar a seu cargo a sua direcção.
Se as opções estéticas das exposições até aí tinham revelado uma
abertura quer ao que se fazia em Portugal já com qualidade (Paulo Nozolino, José Manuel
Rodrigues, expõem nas primeiras edições dos Encontros) a direcção de Albano da Silva
Pereira veio sem dúvida introduzir um salto qualitativo, ao propor exposições de raiz,
monográficas, pelo menos em parte das exposições propostas em cada edição. Passaram
por Coimbra, desde então, Robert Frank, Duane Michals, Joel-Peter Witkin, Ralph Eugene
Meatyard, George Krause, apenas para citar algumas referências incontornáveis da
fotografia americana do século XX. Para além disso, sobretudo nos últimos seis anos,
começaram a ser produzidas exposições não monográficas mas temáticas, que integravam
portugueses e estrangeiros. Também aqui os Encontros de Coimbra se integravam num
movimento dominante na Europa e no resto do mundo, de mapeamento da paisagem: essas
exposições fizeram um levantamento da paisagem portuguesa, de Norte a Sul. A ideia de
"missão fotográfica" colocou, nos anos noventa, a fotografia, no quadro de um
"banco da memória", explorando até ao limite as possibilidades miméticas da
fotografia no sentido da sua ontologia de vestígio objectivo da realidade (Bazin),
mas também, das suas possibilidades surrealistas, confrontando perspectivas,
olhares, subjectividades, conceitos. A estes trabalhos foram chamados nomes tão
diferentes como Robert Frank, Gabriel Basilico, Jorge Molder, Paulo Nozolino, José Manuel
Rodrigues, Hugo de Wurstemberg, Luís Palma...
O que é importante salientar aqui é a componente pedagógica, de
divulgação e de abertura à história da fotografia (considerando em história a ideia
de história do presente), e nesse sentido esta manifestação, à semelhança dos
Encontros da Imagem de Braga, tem tido um papel notável em Portugal, país sempre muito
fechado até há bem poucos anos, e no qual as lacunas no campo do conhecimento da
história da fotografia eram enormes. Mesmo para quem tinha acesso aos livros, ver uma
imagem, na sua dimensão real, editada para uma exposição e não para um livro, é muito
diferente.
A edição deste ano veio provocar um significativo tour de face
no estatuto pedagógico -historiográfico dos Encontros de Coimbra. O comissariado, até
aqui da responsabilidade do director, Albano da Silva Pereira, foi entregue a Delfim
Sardo, crítico de arte, que lhe deu uma configuração completamente nova. Em lugar de se
confrontar com questões de variedade de autores ou de revisão de nomes da história da
fotografia, Delfim Sardo partiu de um conceito chave da modernidade e que está ligado
indissociavelmente à fotografia: o conceito de fotografia como instrumento da memória.
Por outro lado, esteve também na base a ideia de que toda a memória é uma montagem e,
portanto, de que toda a construção de imagens que mapeiam a nossa memória ou a
simulam, ou a exprimem está assente na ideia de montagem e edição no
sentido do cinema, mas uma montagem e edição que se fazem, em grande parte, com base
numa recolha, recontextualização, construção, samplagem.
Para Delfim Sardo, a inspiração fundamental é o Bilder Atlas de
Aby Warburg, historiador de arte alemão, natural de Hamburgo e que no final dos anos
vinte iniciou a construção de uma mapa de imagens, como forma de totalizar as relações
possíveis na história da arte. Warburg associava imagens de todas as proveniências:
reproduções de esculturas gregas, de quadros renascentistas, de figuras mitológicas,
fotografias, imagens oriundas da publicidade, que colocava lado a lado, em grandes
painéis de feltro negro. Alguns volumes desse Atlas inacabado (inacabável?) encontram-se
expostos no Museu de Antropologia da universidade de Coimbra, uma das salas de exposição
dos Encontros.
Esta ideia de Warburg não poderia ser mais adequada a sintetizar o
trabalhos de muitos contemporâneos, nos quais Delfim Sardo apostou as suas escolhas para
esta edição.
Montagem, edição, recolha, recorte, reconstrução são pois ideias que
atravessam a maioria dos trabalhos reunidos sob o conceito de Mnemosyne, palavra
grega que Warburg, o alemão, utilizou para designar a sua tarefa de construção de uma
memória das imagens da arte e que dá agora o título ao conjunto de autores expostos.
Para Delfim Sardo, a produção artística é entendida como "um processo de
montagem", o que significa dizer que se parte do princípio da "existência de
um universo de produção na arte contemporânea que se define pela geração de um plano
de imanência que é oriundo da edição, da articulação de imagens recolhidas, de
produção própria, que se referem à nossa memória colectiva ou que emanam da memória
individual, mas que são, sempre, o resultado de um processo de edição". Do
conjunto dos autores, destacarei alguns dos que me pareceram mais interessantes.
O incío do percurso é marcado por uma projecção dupla, em super 8, de
duas artistas alemãs, Doris Lasch e Ursula Ponn, Sem Título, 2000: projectados no
ângulo recto de uma parede, os dois filmes, homogéneos no plano dos conteúdos, vão,
cada um por si, revelando numa lentidão extrema, gestos de corpos (dos quais não se vê
o rosto) que desenvolvem gestos: enrolar roupa, desenrolar, vestir, montar uma tenda. A
tonalidade é quase sépia, predominando pois uma cor amarelada-acastanhada, quente, que
acentua o carácter intimista, introspectivo, do movimento dado pela câmara. Nesta dupla
projecção as autoras convocam a fragmentação do movimento, analíticamente, até ao
seu limite. O resultado é uma sequência excelente de imagens que estabelecem uma tensão
muito clara entre a imagem fixa e a imagem em movimento, permitindo ao espectador sentir,
quase fisicamente, a noção de passagem (microcronométrica) do tempo. Na mesma sala uma
outra exposição mostra um dos trabalhos mais recentes de Vic Muniz, brasileiro radicado
em Nova Iorque: L'objet invisible, 2000. Mais uma vez, o que será reiterado com
muito outros autores presentes nestes Encontros, a fotografia surge aqui como síntese
entre a escultura, o desenho, e a imagem que permite transportá-los a todos. No trabalho
aqui presente, Vic Muniz estabelece uma relação de correspondência não explícita
entre imagens de crianças da rua, que com um gesto tentam indicar um objecto que
gostariam de possuir, e a construção desse objecto pelo autor; as imagens não se
encontram expostas lado a lado, pelo que cabe ao espectador procurar (ou não) as
correspondências. Este trabalho possui em comum com outros trabalhos do mesmo autor o
facto de que a imagem fotográfica vem depois, ou seja, anterior à captação há
todo um trabalho de construção material, mas não é este que é dado a ver; o que nos
é dado ver é uma imagem fotográfica que é tudo menos espontânea/instantânea, excepto
no plano da sua captação. Daí que a noção de arte como edição seja hoje tão
central: num mundo em que o próprio mundo nos é dado como imagem, a produção de
imagens só poderá partir daí, e não da ideia (ingénua) de uma realidade sem
objectiva.
No edifício do "Laboratório Chimico", o trabalho da dupla
Teresa Hubbard/Alexander Birchler, Stripping, 1998 parte da construção de
cenários a cenografia toma um papel cada vez mais relevante no campo do que hoje
se designa como fotografia plástica (Baqué) nos quais se enquadra uma
figura feminina como elemento dominante. As imagens vão-nos apresentando essas figuras
sempre relacionadas, de alguma forma, com a casa (metáfora do corpo e da sexualidade
feminina), e com a espera, remetendo o espectador para a intimidade do personagem, mas,
sobretudo, para a opacidade dessa intimidade. Parecem momentos de um filme,
fragmentos que deveriam inserir-se numa narrativa, mas de cujo fio nós somos privados,
precisamente porque o mais importante é a percepção de um complexo emocional menos
transparente do que pareceria a um romancista do século XIX (aqui a referência é a Madame
Bovary de Flaubert).
No Colégio das Artes, Nameless, 2000, de Noé Sendas, um duplo da
sua própria figura, jaz no chão, baralhando ainda mais a noção clássica de
fotografia, tal como era até aqui proporcionada pelos Encontros de Coimbra; duplo que se
repete num outro edifício, o do Museu Zoológico. Ainda aqui, onde a presença dos
portugueses é mais forte, as imagens de Gabriela Albergaria desenham um mundo
fantasmático, à procura do jardim da infância, numa série bastante conseguida. Ainda
no Laboratório Chimico, duas projecções, uma de Jorge Molder (o primeiro e último
video, segundo o autor) e outra de Eila-Liisa Ahtila constituem presenças fortes nestes
encontros. O primeiro, intitulado Linha do Tempo, 1999-2000, estabelece uma
cumplicidade clara com as fotografias do mesmo autor: Molder é o personagem que habita
uma casa desabitada a casa do pai, e estabelece uma relação de pesquisa identitária no
confronto com objectos (como um velho livro) presentes nessa casa. A reflexão em torno da
problemática da identidade, das suas fronteiras, do corpo como limite e contorno continua
aqui presente, particularmente nos momentos em que a imagem para, como se congelasse e
negasse a narrativa. O video de Ahtila, If 6 was 9, 1995 é um excelente exercício
de combinação entre a narrativa verbal e a sequencialização de imagens, que o
espectador não pode apanhar completamente, já que se trata de 3 écrãs simultâneos. Ao
longo da instalação-video, vamo-nos confrontando como uma relação entre imagem e texto
relativamente dissociadas: a imagens intimistas e diarísticas, fragmentos de paisagens ou
de locias quotidianos, associa-se um discurso por vezes muito agressivo e dessacralizado
sobre a sexualidade e as relações com os outros.
A presença de Splitting(1975) de Gordon Matta-Clark é igualmente
estimulante, já que é a oportunidade de ver, muitos anos depois, uma obra onde está bem
presente a característica, já referida, de montagem e edição no campo da arte e da
fotografia, mas também a da natureza da fotografia contemporânea como síntese de todas
as artes: é um dos trabalhos executados por este artista, a partir de cortes executados
em casas desabitadas, no velho estilo americano, e a partir dos quais o autor executava
montagens. O trabalho de Urs Luthi foi ainda uma ponto de paragem obrigatória, para ver
os retratos em que o próprio e a sua mulher se entregam a uma miscenização entre a
realidade e a ficção.
Uma referência a esta edição dos Encontros, notável a vários
níveis, deve ser no entanto feita. Se, por um lado, é necessário conduzir as mostras de
arte para uma nível de problematização do presente, revelando as obras onde este é de
facto central; por outro, é necessário não esquecer, que o conhecimento da história da
fotografia é igualmente importante para poder pensar as formas com que se pensa
esse presente. Assim, não será nunca demais mostrar em Portugal certas vintages de
Walker Evans ou de Dorothea Lange, de Gary Winogrand ou de Cartier-Bresson; não será
nunca despropositado ou fora-de-moda mostrar Robert Frank ou Louis Faurer, Francesca
Woodman ou Ralph Eugene Meatyard. Por que o acesso "normal", institucional a
essas referências, é tão raro, que tem sido muito importante que organizações como os
Encontros de Coimbra e Braga possam cumprir essa função. O que não significa que uma
proposta como a deste ano em Coimbra não seja a vários títulos uma referência em si
mesmo, não tanto como demarcação face a um passado, mas antes como ponto de paragem
necessária para uma actualização do presente e redefinição do futuro. Uma nova janela
se abriu em Coimbra.
(1) in Sardo, Delfim, Memória, montagem e edição, in Projecto
Mnemosyne, ed. Encontro de Fotografia de Coimbra, 2000
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