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  Do psicadelismo da técnica actual.

  [ Maria Teresa Cruz ] *

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Apesar do muito que, na cultura contemporânea, se tem falado sobre o corpo, sobre o fim dessa ideia, ou sobre o que dele parece restar (o biológico, ou o orgânico mais ou menos desfigurado), tudo parece indicar que a verdadeira dificuldade está em encontrar uma nova nova figura ou um novo incorporal onde a experiência contemporânea possa abrigar a vida ou as forças que a possibilitam e ainda prevenir as que a põem em causa. Não por acaso, a mais insistente parece ser a de um corpo «imaterial», possibilitado por uma ontologia puramente informacional, que muitos associam por seu lado a uma nova espiritualidade, a qual implicaria, na verdade, uma nova arquitectónica do que no ocidente se pensou como a dualidade corpo e alma ou a problemática conjunção do espírito com a matéria, cuja dificuldade sempre foi a de encontrar a justa mediação entre ambos. A nova arquitectónica em construção parece assumir a forma de um corpo que seria o contrário da imagem inaugural do corpo como «prisão» da alma, já que seria ele próprio pura incorporalidade, pura animação, puro simulacro, cujo princípio de vida dependeria exclusivamente da matriz logicial e digital da técnica actual, prometendo esta estender um dia a possibilidade simulacral de animização a todo o existente. Mais do que mediação entre corporalidade e incorporalidade, a técnica actual pareceria estar assim em condições de converter uma na outra.

Nesta nova arquitectónica, as materialidades perderiam rigidez e ganhariam plasticidade, ao mesmo tempo que o anímico (ou a animação) poderia ser emprestado a todas as coisas. A sua plena realização sugere um mundo de fantasmagoria, uma profusão de figuras animadas, idealmente controlado pela matriz metafísica do digital, que conteria em si todo o princípio de animização ou de vida, matriz que ligaria todos os corpos entre si e, ainda, todos eles, a si mesma, como se de um novo plasma se tratasse. Esta imagem, significativamente explorada nos últimos anos pela literatura e pelo cinema de ficção científica (lugares primeiros da fantasmagorização ou da animação), é frequentemente a de uma gigantesca mente expandida e colectiva, ponto culminante da cibernética e da inteligência artificial, como, desde logo, o «ciberespaço de Gibson». Triumfo portanto de um certo dispositivo metafísico da razão, ele próprio matricial, calculador e de controlo, como alguns de facto o previram, já que esta matriz é puramente computacional, conjunto de acelaradas operações de análise, de síntese e de cálculo.

Dado que a invenção da arquitectónica do corpo e da alma, desde Platão até aos modernos, teve como um dos principais intuitos o afastamento e controlo da sensibilidade, pela qual vinham todas as afecções (perceptivas e passionais) e por isso toda a instabilidade, de modo a fazer nascer o espaço da razão, dir-se-ía então que a técnica actual representaria o triumfo radical deste controlo, isto é, a mais radical expugnação de todo o sensível e de todo o passional. Dimensão que nem os modernos haviam realmente conseguido domesticar, quer através da sua ideia de razão quer através da sua ideia de corpo, ou mesmo das suas utopias estéticas nas quais o tema da sensibilidade e das paixões reaparecia. Sob várias formas, esta outra dimensão da vida acabava pr irromper em experiências estranhas onde a própria ideia de corpo explodia, e em aconteciments históriocos onde a razão não se reconhecia, vendo nela, à falta de verdadeira compreensão, o próprio espectro inexplicável do irracionalismo. Ora, um dos aspectos que a experiência moderna nos permite desde há algum tempo reconhecer é o facto de a técnica se confirmar como um dos lugares de emergência e de articulação de forças que não cabem de facto nos contornos que a razão moderna deu preferencialmente de si mesma. Enquanto potenciação de forças que sempre é, a técnica tem desvelado mais radicalmente os movimentos subterrâneos da alma moderna e das suas afecções, do que centenas de anos de tratados filosóficos sobre as paixões, de arriscados exercícios de pensadores livres ou ainda do que cem anos de psicanálise

Será pois estranho conceber que a actual culminação da técnica moderna na tecnologia da informação desemboque de facto num espaço ascetizado e «cool» de meros bits e impulsos eléctrónicos como nos querem fazer crer as imagens da alta tecnologia. A música, desde sempre matemática sensível e passional, foi talvez a primeira expressão da cultura contemporânea a converter-se aos bits e aos impulsos electrónicos, caso do rock, que cedo mostrou, por sua vez, o quanto esses bits eram imediatamente convertíveis em beats ou batidas do coração, os impulsos electrónicos em pulsões vitais, e os corpos em frenesim dançante. Que tudo banhe num espaço puramente logicial e matemático, sem outra corrente que não a eléctrónica não significa que tal espaço não seja também o de uma intensa produção, circulação e consumo de sensações, afecções e desejos. Quando em, o Anti-Édipo, Deleuze propunha uma leitura da experiência própria à culminação do capitalismo, através da ideia de que aí «tudo é máquina» [(Deleuze, 1972: 7)], sejam as máquinas propriamente técnicas ou sociais, tal significava antes de mais que, aí, «tudo é produção: produção de produções, de acções e de reacções» [(Deleuze, 1972:9)], ou seja, que a primeira lei destas máquinas é a «sintese conectiva ou ligação» e que, por isso, estas máquinas fazem elas próprias o "trabalho" da libido, «o "trabalho" conectivo da produção desejante» (Deleuze, 1972: 17). Com efeito, a pressão crescente para nos ligarmos e conectarmos através da tecnologia comunicacional e informacional está hoje a ser lida, por vários autores, como o surgimento de um «eros eloctrónico» (Claudia Springer) ou mesmo uma «ontologia erótica» (Michael Heim). A significação mais profunda desta hipótese exige pois uma atenção específica ao modo como se dá esta «injunção conectiva» generalizada, este impulso para que tudo se una ou, pelo menos, se ligue, num mesmo espaço, crescentemente homogenizado pela tecnologia digital. Tradicionalmente pensado, nas mitologias antigas, como «primeiro motor», como força cosmológica e princípio de atracção actuante na própria natureza, o eros constitiu a partir da filosofia platónica um papel não menos fundamental, quando associado à elevação de uma emoção humana, com consequências maiores para a compreensão da alma no ocidente, nomeadamente para a tematização dos movimentos afectivos, passionais e desejantes do ser humano. Que a técnica moderna convoque e revele esses movimentos não é sequer surpreendente se pensarmos que, no fundo, a cultura ocidental casou também o eros com medida e cálculo.

Como potenciação de forças que sempre é, a técnica convoca não apenas a matéria e os corpos, mas também, necessáriamente, os ânimos, as inclinações e as atracções que os movem, exprimindo sempre, nessa potenciação, um dado movimento e vibração da vida, ou melhor, a própria expressão de energia e de força que a vida é. No limite, é tanto como potenciação quanto como controlo que a técnica se une à vida . Aliás, esta duplicidade da natureza da técnica está a produzir efeitos ambivalentes e, em certa medida, dilacerantes, na experiência actual, cuja leitura geral apresenta por isso contradições aparentemente inconciliáveis, por exemplo a respeito de um certo estado da alma moderna. É assim que, desde que a experiência técnica assumiu proeminência, tanto nos sentimos poderosos, quanto dramaticamente ameaçados; tanto somos impelidos e mesmo empurrados para a acção e a realização, quanto julgamos vão todo o gesto, sem dimensão ou efeito; tanto nos achamos envolvidos no turbilhão imenso que recobre o mundo de uma ebulição frenética, quanto a humanidade inteira nos parece profundamente adormecida.

Que a técnica moderna afecta directamente a construção ocidental da alma, e precisamente por isso a ideia de homem, de que era princípio distintivo e de individuação, foi claro para todos os humanismos que, com a maior ou menor ingenudade, procuraram compreendê-la no quadro de uma antropologia filosófica. Mesmo se (pelo menos desde a revlução industrial) foram os corpos os primeirpos a sofrer a acção directa da técnica, que os adestrou em novos gestos, novos ritmos, outros desgastes, outros prazeres, etc. Aliás, se numa aproximação à cultura material e ao processo civilizaçacional era possível, no meio das verdadeiras catátrofes físicas provcadas pela técnica, pôr também no prato da balança os progressos técnicos que ajudavam ao melhoramento das condições de vida e ao conforto, já para o destino do espírito, a técnica parecia aboslutamente perigosa, isto é, ameaçadora do humano. Por isso, e ao contrário de uma súbita e abundante literatura sobre «o corpo e a técnica», a filosofia da técnica publicava-se preferencialmente sob a égide de «a alma e a técnica». Se o corpo é hoje protagonista na literatura sobre a técnica é porque ele se mostra finalmente como aquilo que é - uma construção histórica tão ideal quanto a da alma, a figura que abrigava a fragilidade da carne no espaço humano que a alma criou .

Na verdade, uma dimensão fundamental da vida uniu e atravessou desde sempre, como um problema, tanto o corpo como a alma - a procura da deleitação, do gozo e do prazer, para a qual concorriam as faculdades sensitivas mas também movimentos e inclinações do espírito de ordem puramente atractiva. As paixões eram tanto do corpo como da alma e por isso a vida, que não se deixa verdadeiramente dividir, tal como o reconhecerá o Filebo de Platão, exigia uma educação (paideia) fundamental: a do controlo das experiências sensíveis e afectivas, desde as sensações às emoções, desde a sexualidade ao amor. Uma mesma experiência percorre todas elas: a da afecção, quer nos situemos no mero campo da percepção quer nos situemos no campo das emoções. Que a tradição moderna tenha prosseguido estas questões separadamente, em teorias especializadas sobre a percepção, as paixões, a sexualidade, etc…mostra, em grande medida, a necessidade persistente da razão moderna em proceder ao seu controlo. A própria dominância, por entre os autores do iluminismo, do termo «paixões», e a sua tradução pelo o termo latino «affectus», acentuam por sua vez a ideia de passividade, isto é, ocultam na verdade uma dimensão fundamental da vida afectiva, que os antigos tomavam contudo como certa - a de que ela é motor, princípo activo da vida, fonte de uma imensa energia, isto é, em si mesma, força, que recebe por isso, da tradição mitológica, o nome de Eros.

Desta vida afectada pela experiência sensível, pelas emoções e pelo prazer é feita no século XVIII, uma nova síntese de consequências importantes: a da estética. Não se confundindo com o que os gregos chamavam «aisthesis» a estética moderna não é também, ao contrário do que muitos tendem a esquecer, uma teoria da arte, embora dela venham a decorrer consequências fundamentais para a tematização moderna da arte. Na verdade, a sua ambição é mais alargada, visando uma compreensão da constituição de toda a experiência a partir da «sensibilidade», termo onde a estética reelabora a questão das faculdades sensitivas, do prazer, das afecções e das inclinações. O tema restrito das sensações é na verdade preterido em nome da compreensão mais lata do que é «sentir» e, sobretudo, da necessidade de fazer sentido daquilo que sentimos. O tema dominate dos sentimentos (do belo e do sublime), diz antes de mais respeito às almas, às «almas sensíveis», e apresenta pretensões de ordem ética e política, nomeadamente no célebre tema, também ele remodelado, do «sensus communis» (a que Kant deu uma relevância ainda hoje, para muitos autores, plena de consequências), ou ainda no tema igualmente célebre, com Schiller, do «estado estético». De novo, está em causa uma «educação», uma educação das almas, cuja idealidade última é a de que «cada alma finamente modelada» (Schiller), permita o estado abslutamente harmnonioso da fusão de todos os espíritos numa mesma realização do humano. Que sejam as almas a unir-se, no estado estético, significa é claro, que a uniao da matéria e dos corpos parece, como sempre pareceu, essencialmente imprópria e perigosa, na verdade, absolutamente indesejável, pois foi desse estado de indiferenciação que saimos para a vida, o homem, a cultura, etc.. A comunidade dos corpos exige pois que eles sejam trabalhados e modelados do «interior», a partir da alma, que sejam pois corpos psicotrópicos. A estética corresponde a um momento importante desta longa elaboração ocidental, a de uma sensibilidade construída, trabalhada, controlada, que é pois necessariamente uma dimensão cultural e não natural do homem, isto é, uma «sensibilidade artificial» . O que muitos leram como um perigoso derrame de sensualismo sobre a experiência, fazia parte, na verdade, de uma longa estratégia ocidental de, pelo contrário, desafectar as afecções e desimplicar os corpos relativamente à própria experiencia sensível. Se a estética parecia, em todo o caso, uma «compensação» compreensível, e só por isso aceitável, aos olhos da maior parte dos pensadores modernos, relativamente à dominância do racionalidade tecnico-científica, a verdade é que, hoje, os discursos e ambições da razão moderna, tanto estética como tecnológica, parecem encontrar-se, senão mesmo, convergir. Tal permite de algum modo supor que, seja o eros antigo seja a sensibilidade moderna estarão a reemergir hoje como um problema que se torna também tecnológico e que, com isto, a técnica tenderá certamente a revelar uma nova vocação psicadélica, isto é, um programa de controlo da afecção, através de uma nova arquitectura de ligação entre o corporal e o incorpal.