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Apesar do
muito que, na cultura contemporânea, se tem falado sobre o corpo, sobre o fim dessa
ideia, ou sobre o que dele parece restar (o biológico, ou o orgânico mais ou menos
desfigurado), tudo parece indicar que a verdadeira dificuldade está em encontrar uma nova
nova figura ou um novo incorporal onde a experiência contemporânea possa abrigar a vida
ou as forças que a possibilitam e ainda prevenir as que a põem em causa. Não por acaso,
a mais insistente parece ser a de um corpo «imaterial», possibilitado por uma ontologia
puramente informacional, que muitos associam por seu lado a uma nova espiritualidade, a
qual implicaria, na verdade, uma nova arquitectónica do que no ocidente se pensou como a
dualidade corpo e alma ou a problemática conjunção do espírito com a matéria, cuja
dificuldade sempre foi a de encontrar a justa mediação entre ambos. A nova
arquitectónica em construção parece assumir a forma de um corpo que seria o contrário
da imagem inaugural do corpo como «prisão» da alma, já que seria ele próprio pura
incorporalidade, pura animação, puro simulacro, cujo princípio de vida dependeria
exclusivamente da matriz logicial e digital da técnica actual, prometendo esta estender
um dia a possibilidade simulacral de animização a todo o existente. Mais do que
mediação entre corporalidade e incorporalidade, a técnica actual pareceria estar assim
em condições de converter uma na outra.
Nesta nova arquitectónica, as materialidades perderiam
rigidez e ganhariam plasticidade, ao mesmo tempo que o anímico (ou a animação) poderia
ser emprestado a todas as coisas. A sua plena realização sugere um mundo de
fantasmagoria, uma profusão de figuras animadas, idealmente controlado pela matriz
metafísica do digital, que conteria em si todo o princípio de animização ou de vida,
matriz que ligaria todos os corpos entre si e, ainda, todos eles, a si mesma, como se de
um novo plasma se tratasse. Esta imagem, significativamente explorada nos últimos anos
pela literatura e pelo cinema de ficção científica (lugares primeiros da
fantasmagorização ou da animação), é frequentemente a de uma gigantesca mente
expandida e colectiva, ponto culminante da cibernética e da inteligência artificial,
como, desde logo, o «ciberespaço de Gibson». Triumfo portanto de um certo dispositivo
metafísico da razão, ele próprio matricial, calculador e de controlo, como alguns de
facto o previram, já que esta matriz é puramente computacional, conjunto de acelaradas
operações de análise, de síntese e de cálculo.
Dado que a invenção da arquitectónica do corpo e da
alma, desde Platão até aos modernos, teve como um dos principais intuitos o afastamento
e controlo da sensibilidade, pela qual vinham todas as afecções (perceptivas e
passionais) e por isso toda a instabilidade, de modo a fazer nascer o espaço da razão,
dir-se-ía então que a técnica actual representaria o triumfo radical deste controlo,
isto é, a mais radical expugnação de todo o sensível e de todo o passional. Dimensão
que nem os modernos haviam realmente conseguido domesticar, quer através da sua ideia de
razão quer através da sua ideia de corpo, ou mesmo das suas utopias estéticas nas quais
o tema da sensibilidade e das paixões reaparecia. Sob várias formas, esta outra
dimensão da vida acabava pr irromper em experiências estranhas onde a própria ideia de
corpo explodia, e em aconteciments históriocos onde a razão não se reconhecia, vendo
nela, à falta de verdadeira compreensão, o próprio espectro inexplicável do
irracionalismo. Ora, um dos aspectos que a experiência moderna nos permite desde há
algum tempo reconhecer é o facto de a técnica se confirmar como um dos lugares de
emergência e de articulação de forças que não cabem de facto nos contornos que a
razão moderna deu preferencialmente de si mesma. Enquanto potenciação de forças que
sempre é, a técnica tem desvelado mais radicalmente os movimentos subterrâneos da alma
moderna e das suas afecções, do que centenas de anos de tratados filosóficos sobre as
paixões, de arriscados exercícios de pensadores livres ou ainda do que cem anos de
psicanálise
Será pois estranho conceber que a actual culminação da
técnica moderna na tecnologia da informação desemboque de facto num espaço ascetizado
e «cool» de meros bits e impulsos eléctrónicos como nos querem fazer crer as imagens
da alta tecnologia. A música, desde sempre matemática sensível e passional, foi talvez
a primeira expressão da cultura contemporânea a converter-se aos bits e aos impulsos
electrónicos, caso do rock, que cedo mostrou, por sua vez, o quanto esses bits
eram imediatamente convertíveis em beats ou batidas do coração, os impulsos
electrónicos em pulsões vitais, e os corpos em frenesim dançante. Que tudo banhe num
espaço puramente logicial e matemático, sem outra corrente que não a eléctrónica não
significa que tal espaço não seja também o de uma intensa produção, circulação e
consumo de sensações, afecções e desejos. Quando em, o Anti-Édipo, Deleuze
propunha uma leitura da experiência própria à culminação do capitalismo, através da
ideia de que aí «tudo é máquina» [(Deleuze, 1972: 7)], sejam as máquinas
propriamente técnicas ou sociais, tal significava antes de mais que, aí, «tudo é
produção: produção de produções, de acções e de reacções» [(Deleuze, 1972:9)],
ou seja, que a primeira lei destas máquinas é a «sintese conectiva ou ligação» e
que, por isso, estas máquinas fazem elas próprias o "trabalho" da libido, «o
"trabalho" conectivo da produção desejante» (Deleuze, 1972: 17). Com efeito,
a pressão crescente para nos ligarmos e conectarmos através da tecnologia comunicacional
e informacional está hoje a ser lida, por vários autores, como o surgimento de um «eros
eloctrónico» (Claudia Springer) ou mesmo uma «ontologia erótica» (Michael Heim). A
significação mais profunda desta hipótese exige pois uma atenção específica ao modo
como se dá esta «injunção conectiva» generalizada, este impulso para que tudo se una
ou, pelo menos, se ligue, num mesmo espaço, crescentemente homogenizado pela tecnologia
digital. Tradicionalmente pensado, nas mitologias antigas, como «primeiro motor», como
força cosmológica e princípio de atracção actuante na própria natureza, o eros
constitiu a partir da filosofia platónica um papel não menos fundamental, quando
associado à elevação de uma emoção humana, com consequências maiores para a
compreensão da alma no ocidente, nomeadamente para a tematização dos movimentos
afectivos, passionais e desejantes do ser humano. Que a técnica moderna convoque e revele
esses movimentos não é sequer surpreendente se pensarmos que, no fundo, a cultura
ocidental casou também o eros com medida e cálculo.
Como potenciação de forças que sempre é, a técnica
convoca não apenas a matéria e os corpos, mas também, necessáriamente, os ânimos, as
inclinações e as atracções que os movem, exprimindo sempre, nessa potenciação, um
dado movimento e vibração da vida, ou melhor, a própria expressão de energia e de
força que a vida é. No limite, é tanto como potenciação quanto como controlo que a
técnica se une à vida . Aliás, esta duplicidade da natureza da técnica está a
produzir efeitos ambivalentes e, em certa medida, dilacerantes, na experiência actual,
cuja leitura geral apresenta por isso contradições aparentemente inconciliáveis, por
exemplo a respeito de um certo estado da alma moderna. É assim que, desde que a
experiência técnica assumiu proeminência, tanto nos sentimos poderosos, quanto
dramaticamente ameaçados; tanto somos impelidos e mesmo empurrados para a acção e a
realização, quanto julgamos vão todo o gesto, sem dimensão ou efeito; tanto nos
achamos envolvidos no turbilhão imenso que recobre o mundo de uma ebulição frenética,
quanto a humanidade inteira nos parece profundamente adormecida.
Que a técnica moderna afecta directamente a construção
ocidental da alma, e precisamente por isso a ideia de homem, de que era princípio
distintivo e de individuação, foi claro para todos os humanismos que, com a maior ou
menor ingenudade, procuraram compreendê-la no quadro de uma antropologia filosófica.
Mesmo se (pelo menos desde a revlução industrial) foram os corpos os primeirpos a sofrer
a acção directa da técnica, que os adestrou em novos gestos, novos ritmos, outros
desgastes, outros prazeres, etc. Aliás, se numa aproximação à cultura material e ao
processo civilizaçacional era possível, no meio das verdadeiras catátrofes físicas
provcadas pela técnica, pôr também no prato da balança os progressos técnicos que
ajudavam ao melhoramento das condições de vida e ao conforto, já para o destino do
espírito, a técnica parecia aboslutamente perigosa, isto é, ameaçadora do humano. Por
isso, e ao contrário de uma súbita e abundante literatura sobre «o corpo e a
técnica», a filosofia da técnica publicava-se preferencialmente sob a égide de «a
alma e a técnica». Se o corpo é hoje protagonista na literatura sobre a técnica é
porque ele se mostra finalmente como aquilo que é - uma construção histórica tão
ideal quanto a da alma, a figura que abrigava a fragilidade da carne no espaço humano que
a alma criou .
Na verdade, uma dimensão fundamental da vida uniu e
atravessou desde sempre, como um problema, tanto o corpo como a alma - a procura da
deleitação, do gozo e do prazer, para a qual concorriam as faculdades sensitivas mas
também movimentos e inclinações do espírito de ordem puramente atractiva. As paixões
eram tanto do corpo como da alma e por isso a vida, que não se deixa
verdadeiramente dividir, tal como o reconhecerá o Filebo de Platão, exigia uma
educação (paideia) fundamental: a do controlo das experiências sensíveis e
afectivas, desde as sensações às emoções, desde a sexualidade ao amor. Uma mesma
experiência percorre todas elas: a da afecção, quer nos situemos no mero campo da
percepção quer nos situemos no campo das emoções. Que a tradição moderna tenha
prosseguido estas questões separadamente, em teorias especializadas sobre a percepção,
as paixões, a sexualidade, etc
mostra, em grande medida, a necessidade persistente
da razão moderna em proceder ao seu controlo. A própria dominância, por entre os
autores do iluminismo, do termo «paixões», e a sua tradução pelo o termo latino
«affectus», acentuam por sua vez a ideia de passividade, isto é, ocultam na verdade uma
dimensão fundamental da vida afectiva, que os antigos tomavam contudo como certa - a de
que ela é motor, princípo activo da vida, fonte de uma imensa energia, isto é, em si
mesma, força, que recebe por isso, da tradição mitológica, o nome de Eros.
Desta vida afectada pela experiência sensível, pelas
emoções e pelo prazer é feita no século XVIII, uma nova síntese de consequências
importantes: a da estética. Não se confundindo com o que os gregos chamavam «aisthesis»
a estética moderna não é também, ao contrário do que muitos tendem a esquecer, uma
teoria da arte, embora dela venham a decorrer consequências fundamentais para a
tematização moderna da arte. Na verdade, a sua ambição é mais alargada, visando uma
compreensão da constituição de toda a experiência a partir da «sensibilidade», termo
onde a estética reelabora a questão das faculdades sensitivas, do prazer, das afecções
e das inclinações. O tema restrito das sensações é na verdade preterido em nome da
compreensão mais lata do que é «sentir» e, sobretudo, da necessidade de fazer sentido
daquilo que sentimos. O tema dominate dos sentimentos (do belo e do sublime), diz antes de
mais respeito às almas, às «almas sensíveis», e apresenta pretensões de ordem ética
e política, nomeadamente no célebre tema, também ele remodelado, do «sensus communis»
(a que Kant deu uma relevância ainda hoje, para muitos autores, plena de consequências),
ou ainda no tema igualmente célebre, com Schiller, do «estado estético». De novo,
está em causa uma «educação», uma educação das almas, cuja idealidade
última é a de que «cada alma finamente modelada» (Schiller), permita o estado
abslutamente harmnonioso da fusão de todos os espíritos numa mesma realização do
humano. Que sejam as almas a unir-se, no estado estético, significa é claro, que a uniao
da matéria e dos corpos parece, como sempre pareceu, essencialmente imprópria e
perigosa, na verdade, absolutamente indesejável, pois foi desse estado de
indiferenciação que saimos para a vida, o homem, a cultura, etc.. A comunidade dos
corpos exige pois que eles sejam trabalhados e modelados do «interior», a partir da
alma, que sejam pois corpos psicotrópicos. A estética corresponde a um momento
importante desta longa elaboração ocidental, a de uma sensibilidade construída,
trabalhada, controlada, que é pois necessariamente uma dimensão cultural e não natural
do homem, isto é, uma «sensibilidade artificial» . O que muitos leram como um perigoso
derrame de sensualismo sobre a experiência, fazia parte, na verdade, de uma longa
estratégia ocidental de, pelo contrário, desafectar as afecções e desimplicar os
corpos relativamente à própria experiencia sensível. Se a estética parecia, em todo o
caso, uma «compensação» compreensível, e só por isso aceitável, aos olhos da maior
parte dos pensadores modernos, relativamente à dominância do racionalidade
tecnico-científica, a verdade é que, hoje, os discursos e ambições da razão moderna,
tanto estética como tecnológica, parecem encontrar-se, senão mesmo, convergir. Tal
permite de algum modo supor que, seja o eros antigo seja a sensibilidade moderna estarão
a reemergir hoje como um problema que se torna também tecnológico e que, com isto, a
técnica tenderá certamente a revelar uma nova vocação psicadélica, isto é, um
programa de controlo da afecção, através de uma nova arquitectura de ligação entre o
corporal e o incorpal.
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