O
sexo é obra e graça da modernidade, já o sabemos. Não que os nossos
antepassados não fodessem (e tudo o que com isso vem e latamente se há-de
entender) a torto e a direito, umas vezes prosaicos, épicos outras, conforme
sabiam, conforme podiam, bem e sublimemente, mal e porcamente, apaixonada,
perversa e polimorfa, conjugal, promíscua, regrada ou criativamente. É sabido,
de resto, que todas as civilizações possuem a sua tratadística das artes do
sexo. O que os nossos antepassados desconheciam era o termo, que não usavam
para fazer o que quer que fizessem, nem tinham por isso maneira de aplicar ao
que faziam, tanto que lhes era alheia a experiência de “fazer sexo” (como
eu detesto a expressão! soa a linha de montagem, a batalha da produção, a
cotação bolsista, a ver-se-te-avias…). Bem aprendida, que deveria estar por
esta altura, a lição foucauldiana, resta indagar o que fazemos com esse sexo
que temos por nosso desde que passou a haver palavra para a coisa, que o mesmo
é dizer coisa para a palavra, ainda que mal lhe assente.
A modernidade pôs, portanto, o sexo em palavras. Dessa discursificação
do sexo que ergueu um dos pilares da sociedade disciplinar e normalizadora começou
por se encarregar a scientia sexualis
psico-bio-médica, amalgamando uma antropologia, uma psicologia e uma biologia
cujos avatares ainda nos assombram. Os indivíduos modernos, que nós somos,
descobrem-se assim ao mesmo tempo com uma identidade pessoal e uma imagem pública
em cuja definição o seu ser-sexual desempenha um papel de primeira magnitude.
Embora possa não se lhe reduzir, o indivíduo não consegue furtar-se a ser a
sua sexualidade, a ser o que a sua sexualidade é, como se ela fosse depositária
da sua verdade mais íntima e inamovível, afecta a totalidade do que ele é.
Por vezes, como o demonstram os arquivos médicos e judiciários, e também as
representações mediáticas e populares, ele é mesmo só isso, o seu ser
sexual: a figura do desviante, do criminoso sexual, que o é não de maneira
circunstancial, mas caracterialmente, constitui o expoente da sexualização
total do indivíduo. Tal como o constitui a personagem do homossexual, persona
sexual por excelência, no célebre exemplo foucauldiano. Mas será também nos
meandros infinitamente minuciosos, indiscretos e encarniçados da scientia
sexualis que, e mais uma vez se evidencia aqui a fina intuição de Foucault,
vai ganhando corpo a ars erotica que
perfaz a outra face do dispositivo da sexualidade, o qual, mais do que reprimir,
impedir ou censurar, incita e compele a ser e a fazer. Efectivamente, a ars
erotica precipitada pela scientia
sexualis é fruto da implantação perversa dos prazeres nos corpos. Ou
seja, a ciência que tem prazer em tocar nos corpos gera neles com o seu toque
um correspondente prazer de serem tocados, tocados sob a pele, até à medula,
revolvidos, escalpelizados, virados do avesso, sobre-estimulados e mobilizados
até aos genes. É de pequeninos que começamos a adorar brincar aos médicos.
A
sociedade disciplinar, que tinha sucedido às sociedades de soberania, evolui
por sua vez para a sociedade de controle, descrita por Deleuze na sequência da
análise foucauldiana. Ora a microfísica do poder onde lei e desejo se
interpenetram e reclamam mutuamente tanto constituiu o quadro no qual se
procedeu ao enredamento disciplinar do desejo, como aquele em que se viria a
empreender, na sociedade de controle, a sua emancipação. Na verdade, a
discursificação não se deteve, nem sequer abrandou, antes prossegue por
outros meios, ou com outros conteúdos, ou por intermédio de outros agentes e
com propósitos estratégicos divergentes. De facto, ela é a nemesis
das políticas sexuais de emancipação, pois, ao mesmo tempo que fornece o
argumentário que estas esgrimem na esfera pública, monta a armadilha do
controle aos indivíduos que prende a práticas e enclausura em identidades. É
neste sentido que as políticas sexuais emancipatórias não deixam de ser
devedoras da implantação perversa dos prazeres.
Acontece que a sexualidade que
pervadia toda a identidade do indivíduo no discurso psico-bio-médico, -
unidimensionalizando-o, para recorrer ao termo marcusiano - transforma-se em
eixo dos projectos emancipatórios na época a que uns preferem chamar
modernidade tardia e outros pós-modernidade. A identidade, que principia por
ser sexual para se volver social, diluindo a fronteira entre o privado e o público,
a identidade, que nasceu como efeito da reificação e da positivização
psico-bio-médica e jurídica, passou a ser assumida pelos próprios indivíduos
como projecto de construção biográfica e comunitária. A sexualidade
politizou-se, criando um laço indissolúvel entre identidade sexual e política
sexual e transformando-se num operador de criação e mudança de estilos de
vida.
Teríamos de remontar ao nome tutelar de Sade para encontrarmos o
primeiro discurso secular, não teológico, político portanto, sobre o sexo.
Nisso, Sade partilha com Maquiavel um comum, esplendoroso e terrível
isolamento, sem epígonos ou seguidores imediatos. Na verdade, Sade está para o
sexo como Maquiavel para a política. A exploração deste paralelo, a que não
podemos dar seguimento aqui, levar-nos-ia decerto a inusitadas descobertas. Por
isso teremos de nos restringir a tempos mais recentes. Com efeito, a politização
da sexualidade, tal como a entendemos hoje, não é anterior aos autores que, no
dobrar do século XIX para o XX, se propuseram desenvolver uma ciência
emancipatória da sexualidade, da sexologia de Magnus Hirschfeld à Sexpol
de Wilhelm Reich. No entanto, essa politização alimenta-se dos pressupostos e
faz-se com os elementos da discursificação da scientia sexualis, vindo a constituir tão-só a sua face emancipatória,
vulnerabilizando-se consideravelmente ante os seus detractores por isso mesmo.
Na verdade, onde uma vertente pretendia regular o sexo, naturalizando a norma
social – o sexo normal e conforme à natureza – a outra visava,
contrariamente, libertar o sexo, restituindo-o a uma naturalidade originária,
anterior aos constrangimentos sociais que o teriam deformado e reprimido. Ora o
que o actual movimento de re-politização da sexualidade se empenha em superar
são precisamente as limitações da naturalização e da biologização do
sexo, que binarizavam o sexo em géneros (masculino/feminino), para depois o
repartir em práticas (canónicas/desviantes) e orientações
(heterossexual/homossexual), fundando-o numa natureza axiomatizada como natura
normativa (natural=normal/anti-natural=anormal). Deste modo, a politização do
sexo implicou, exigiu mesmo, a crítica do essencialismo, e são sobretudo as
bases biológicas dele que são postas em causa, e a sua substituição pelo
construtivismo psico-social que culmina com a teoria queer,
embora não tenha que conduzir necessariamente a ela.
Crise da norma e fim da natureza
significam pois persecução biográfica de possíveis, isto é, de estilos de
vida, e pulverização da universalidade da norma em sexualidades múltiplas,
com a correspondente recomposição das identidades sexuais e das categorias
sexuais, que frequentemente se reelaboram como comunidades sexuais (e sociais e
culturais, ou não fosse o sexo sempre muito mais que só “sexo”). Neste
sentido, é ingénua e desprevenida a representação vulgar da “revolução
sexual” contemporânea (pela qual há quem persista, um pouco por todo o leque
político, em culpabilizar e ridicularizar as largas costas das décadas de
sessenta e setenta), a qual, longe de alterar a relação entre o desejo e a
lei, o sexo e o poder, elevou-as a um outro nível. O jogo da lei e do desejo
prossegue, apenas mudaram, ou talvez seja preferível dizer que se lhe
acrescentaram, novos agentes, meios e conteúdos.
Há que entender as transformações microfísicas no quadro de fundo de
uma transformação geral dos modelos de organização do sexo. O modelo que
emerge na modernidade é um modelo sádico, que vem substituir o modelo cortês,
o qual tinha já sucedido ao modelo pederástico grego. Tal como este último
corresponde à experiência dos prazeres e o modelo cortês se cristalizou com a
experiência cristã da carne, embora já se prenunciasse na literatura
romanesca helenística, o modelo sádico corresponde à experiência moderna da
sexualidade, mas instalou-se progressivamente também. Na primeira fase, é
claramente a scientia sexualis
normalizadora e disciplinar que prevalece sobre as primeiras veleidades
emancipatórias que dela própria irradiam. A segunda fase, que testemunhamos
presentemente, viu inverterem-se os termos da anterior hegemonia: a scientia sexualis volveu-se definitiva e assumidamente ars
erotica, ao serviço da modelação de práticas e da construção de
identidades, ainda que eventualmente sob a caução da terapia. Nisto consiste
precisamente a plena instalação daquilo que Foucault caracterizou como o
dispositivo da sexualidade, que muito mais do que pela negação ou a repressão,
age pelo incitamento e pela provocação. É necessário reconhecer que a psicanálise
desempenhou nessa transição um papel determinante, pesem embora os argumentos
dos seus detractores, à cabeça dos quais Foucault, que não deixa de ser seu
devedor. Com efeito, foi a psicanálise que lançou as próprias bases da sua
erosão enquanto discurso normalizador tornando-se assim palco de uma mudança
de paradigma. As primeiras psicoterapias emancipadoras pouco mais tiveram que
inverter a tópica freudiana para a voltar contra os seus propósitos
conservadores. A tão execrada psicanálise – e por algumas boas razões,
reconheça-se – não deixou de cumprir o ambíguo papel de fornecer o argumentário
da normalização e os contra-argumentos do construtivismo, sobretudo na medida
em que a psicanálise se constitui como alternativa simbólica ao biologismo
psico-médico, de cujas premissas, por sua vez, comungam as correntes
essencialistas. A clivagem entre alguma ortodoxia e alguma heterodoxia freudiana
também por aí passou, mas os primeiros a intuir a possibilidade de explorar as
virtualidades subversoras da psicanálise foram os paladinos do freudo-marxismo.
Na verdade, o actual construtivismo psico-social ergue-se do mundo conceptual da
psicanálise. As actuais psicoterapias afirmativas culminam o processo de transição
paradigmática, o qual também é assinalado pela atitude prevalecente na classe
médica ao tempo da epidemia de Sida, que não só recusa decididamente um
discurso valorativo e moralizador, ou sequer repressivo (o isolamento dos
seropositivos e dos doentes), mas passa, literalmente, a ensinar a fazer sexo, a
divulgá-lo e a promovê-lo, implícita ou ostensivamente. O médico e o
cientista (lembremos que a pílula anticoncepcional já cá andava há uns bons
anos antes dos preservativos com sabores e do Viagra) ocupam doravante o seu
lugar no leito, entre os corpos dos amantes, não para velar por uma casta
contenção, mas para os incitar a que se afoitem com segurança. As minúcias
dos manuais de sexo seguro varreram para debaixo da cama o manual do confessor,
tomando-lhe a vez na erotização das novas regras que modelam os prazeres. Também
por esta via se torna patente o valor eminentemente pedagógico da pornografia,
que não só ensina a explorar as possibilidades criativas de fazer sexo, mas a
fazê-lo com cirúrgica perícia. Ou de como a necessidade de segurança aguçou
o kamasútrico engenho. As igrejas têm razão. Toda, todinha. O mundo está
perdido. Para elas. Mas aprendeu-lhes a lição e não é menor a devoção com
que sacrifica a outros deuses.
A emergência do modelo sádico representa o declínio da dimensão
humanista do amor cortês. O pós-humanismo sadiano extorque a sexualidade à
onto-teo-antropologia que fazia das fraquezas da carne um dos avatares da natura humana. Mas isto é mais que sabido. Ora a scientia
sexualis começou por animalizar a condição humana, construindo a
sexualidade como um atributo da espécie, passível de ser estudada como
qualquer outro objecto da natureza, por exemplo a primatologia, tão bem esmiuçada
por Donna Haraway, que exibia e empalhava a “Vénus hotentote” ao lado de
tudo quanto era bicho/a exótico/a. Com efeito, a esteatopigia africana e a
anatomia anal dos dissidentes sexuais acotovolavam-se na galeria taxonómica (e
taxidérmica!) dos desviantes da civilização, uns por falta dela, outros por
degenerescência. O conformismo social operava por intermédio da igualização
biológica, que o darwinismo social consumou e de que a higiene racial da
biomedicina nazi viria a constituir a mais monstruosa e inumana expressão.
Deste modo, uma estratégia emancipatória teve necessariamente de passar pela
introdução de mecanismos de diferenciação e de pensar a variabilidade sexual
sem a norma, o que tanto afrontou a igualização biológica como o
igualitarismo ético-político iluminista, mas ainda as igrejas organizadas,
abrindo assim uma guerra em três frentes: guerra da ciência, guerra jurídico-política
e guerra religiosa, enquanto sistemas de conformismo social. O “direito à
diferença” fez escola num primeiro tempo, obnubilando a contradição em
termos que lhe é inerente nos sistemas jurídico-políticos do Estado de
direito moderno: a diferença por direito era de facto a pedra de toque das
sociedades de soberania, com as suas classes e ordens formalmente demarcadas,
nascia-se livre ou escravo, nobre ou plebeu, a regulação violenta da
conflitualidade social fazia parte do senso comum. De resto, as sociedades pré-modernas
conviviam com a diferença com um desembaraço bem superior ao da nossa
modernidade, (con)vertendo as diferenças em ordens sociais. O medo popular
maior nos dias que correm é que aquilo que era discriminação negativa se
transforme em privilégio por intermédio do politicamente correcto, se este
passar dos posicionamentos doutrinários à prática jurídica e social. Com o
tempo, a reivindicação do direito à diferença, que, de facto, era, na prática,
uma reivindicação de expressão e de visibilidade (isto é, de
contra-hegemonia discursiva, contra as representações dominantes), volve-se
numa reivindicação de igualdade das diferenças que entretanto se foram
organizando e modelando comunitariamente seguindo o modelo étnico
norte-americano.
O
sexo contemporâneo torna-se assim num sexo não de maiorias, mas de
multiplicidades minoritárias a que corresponde uma diversidade de culturas (ou
será preferível dizer: subculturas), com as suas linguagens verbais e visuais,
os seus consumos, os seus rituais, as suas espacialidades. Mas também com
afinidades electivas e entrecruzamentos, compossibilidades, compagnoneries
de route e alianças estratégicas surpreendentes, tanto como com
incompatibilidades, separatismos e inimizades figadais insuspeitadas que
confundem até ao delírio o binarismo clássico do masculino e do feminino, do
heterossexual e do homossexual, do normal e do desviante, do canónico e do
irregular. Camille Paglia notabilizou-se pela denúncia que fez dos aspectos
mais caricaturais do separatismo e do fundamentalismo politicamente correcto,
emergente sobretudo nos círculos feministas e lésbico-feministas, que chegaram
a aliar-se aos sectores mais retrógrados e homofóbicos nas campanhas contra a
pornografia, e especialmente a pornografia gay,
acusada pelos primeiros de ser o expoente da violência machista sobre as
mulheres e pelos segundos por dissolver os costumes e enfraquecer a fibra moral
da sociedade. A heteronormatividade, por todos invocada numa comum execração,
acaba assim por surgir mais como uma abstracção que serve propósitos estratégicos
e por vezes até com um simples carácter derrogatório, de conteúdo e
contornos por vezes tão fluidos que facilmente resvalam para o fantasmático.
Chegam a ser necessários uns periódicos sustos do fundamentalismo religioso e
do atavismo social e cultural para lhe dar mais consistência. E no entanto, que
la hay, la hay.
Mas em crise irreversível, a heteronormatividade. Quando se fala de
heteronormatividade, há que não a interpretar como aquilo que rege
exclusivamente o par heterossexualidade/homossexualidade, embora inclua a
heterossexualidade compulsiva a que se referia Adrienne Rich, mas que antes
engloba todos os binarismos, à cabeça dos quais aquele que opõe masculinidade
e feminilidade. Por outro lado, a homossexualidade, que compôs a figura oposta
da heteronormatividade, de modo nenhum se limita a ser uma simples categorização
das relações entre indivíduos do mesmo sexo, antes foi a figura centrípeta
de uma anti-natureza que recobriu todos os desvios, para a qual convergiram
todas as categorias do não-amor e sob que se abrigaram todas as dissidências,
como o demonstrou Eve Kosofsky Sedgwick. Tanto assim é, que só o casal
heterossexual monogâmico (e melhor ainda se conjugal e reprodutivo) faz amor,
enquanto todos os demais, sozinhos ou acompanhados, praticam uma coisa qualquer
(a homossexualidade, o adultério, o sexo em grupo, a masturbação, uma
parafilia bizarra qualquer). Neste caso, são os mais fiéis os menos
praticantes.
Embora se pudessem certamente enumerar outros traços da crise da
heteronormatividade, e talvez com mais pormenor, ela é perceptível com maior
agudeza se atentarmos em alguns fenómenos, de que nomearemos a emergência da
pura relação, a transgenerização e a tecnologização do sexo.
A emergência e generalização
daquilo a que Anthony Giddens chamou a pura relação, a relação autotélica
que vale por si mesma, independentemente das formas jurídicas do casamento e da
compulsão social e económica, será porventura o fenómeno mais notório. Para
Giddens, a relação entre pessoas do mesmo sexo constituiria o modelo de pura
relação que entretanto tendeu a generalizar-se. Com o tempo, a reivindicação
e o reconhecimento de direitos cívicos levaram à formalização desta relação
na forma de união de facto, que de algum modo reconstrói, transformando-a
necessariamente, a conjugalidade heterossexual enquanto cânone exclusivo de
regulação das relações entre as pessoas. O que também se faz sentir e se
joga aqui é a tensão entre separatismo e integração dos modos e estilos de
vida alternativos, dando lugar a inúmeras e apaixonadas controvérsias no seio
dos movimentos sociais. De facto, será preferível abordar as transformações
do ponto de vista desconstrucionista derridiano, cuja lição muito aproveita a
um entendimento profícuo dos complexos processos de destruição/reconstrução
dos sistemas reguladores do sexo. Os acontecimentos históricos têm revelado
que o “assalto” à heteronormatividade tem menos de pura e bárbara
iconoclastia que de reaproveitamento, bricolage, apropriação criadora, o que se traduz pelo facto de a
integração e a assimilação tenderem sempre a suplantar o separatismo. No
fundo, talvez haja toda a razão em dizer que o separatismo e a radicalidade
iniciais mais não reflectem que a percepção crispada da impossibilidade da
integração que constitui sempre o objectivo estratégico de fundo. E um modelo
emergente só poderá afirmar-se como tal quando se encontra já preparado para
tomar o lugar de um modelo estabelecido, que o mesmo é dizer, inversamente, que
o estabelecido só decai quando outro se perfila já para o substituir com eficácia.
E que a integração é um processo transformador tanto do instalado como
daquele que se pretende instalar. Neste processo, o passo mais difícil não é
o do separatismo, a guetização, mas o da integração, a disseminação na
tessitura comum da cidade instituída. Também isto foi aviso de Foucault.
Os red light districts, ou as
portuguesíssimas ruas Direitas sempre existiram, com o seu direito à existência
garantido tácita ou juridicamente, o mesmo acontecendo com a prostituição
como instituição paralela ao, articulada com e coadjuvante do casamento, sem
despertar maiores alaridos morais. Outra história é a da legalização das uniões
de facto, a qual, não apenas em Portugal, mas um pouco por toda a parte, causa
maior urticária que qualquer manifestação de visibilidade ou de separatismo
agressivo. Ou de como os armários tanto constituem uma protecção para quem
está lá dentro como para quem está fora.
Sem
a institucionalização jurídica e a compulsão social, a relação
heterossexual, monogâmica e conjugal enfileiraria no estendal de
psicopatologias, perversões, anamorfoses e monstruosidades que alimentaram o
imenso “gabinete de curiosidades” da scientia
sexualis e o imaginário popular. Com elas, fica-se pelas simples e manejáveis
disfuncionalidades que não beliscam a canonicidade do modelo: repare-se que
nunca passa pela cabeça dos terapeutas clássicos “trabalhar” a
heterossexualidade como “trabalham” terapeuticamente a homossexualidade. Na
verdade, é na pura relação que o modelo assimétrico que sustenta a
heterossexualidade compulsiva se patenteia com maior dramatismo. A assimetria
passa certamente pela diferenciação dos estatutos de género - homem-mulher -,
mas de modo nenhum se resume a esta. Pelo contrário, a relação assimétrica
homem-mulher constitui o modelo heteronormativo que enforma todas as relações
entre os indivíduos de sexo diferente, do mesmo sexo, de diferentes idades e níveis
sócio-económicos e que rege a atribuição dos papéis masculino/feminino a
cada um dos parceiros. Daí que, fora da relação homem-mulher em que o cânone
da assimetria parece (i.e.: é representado como) óbvio – homem dominante,
mulher dominada - a pergunta que popularmente surge de imediato nos espíritos
é: “Mas qual deles é que é ‘faz’ de homem e qual ‘faz’ de
mulher?” O certo é que as relações igualitárias são excepcionais tanto
entre parceiros do mesmo sexo como de sexo diferente.
Isto
introduz um outro macro-fenómeno, a que gostaríamos de chamar a transgenerização.
De facto, a pura relação não implica necessariamente o fim da assimetria, mas
antes a sua estilização fora do modelo heteronormativo. Entra em crise, sim, a
atribuição formal, rígida, dos papéis de género, de tal maneira que os
indivíduos podem assumir um papel “top”
ou um papel “bottom”, um estatuto
“master” ou um estatuto “slave”,
de dominante ou de submisso, independentemente do seu género, da sua idade, do
seu estatuto sócio-económico e mesmo do seu desempenho sexual, assim como
mudar consoante o parceiro ou a situação específica, ou ao longo da vida, num
leque de combinatórias que sempre se pode abrir para incorporar mais uma. Com
efeito, a transgenerização é um fenómeno muito mais lato do que podem fazer
suspeitar os exemplos extremos de inversão dos papéis sexuais como a
trans-sexualidade e a popularmente chamada “mudança de sexo”, a cirurgia de
re-atribuição sexual, a qual, de resto, só esperou pela modernidade ocidental
para se transformar, de prática ritualizada ancestral, em questão de
tecnologia biomédica. O fenómeno mais multifactado e interpelante centra-se, a
nosso ver, na assumpção do corpo masculino como objecto erótico. Os homens
incorporaram (será preferível utilizar o termo: introjectaram?) o olhar
desejante que sempre os alçou ao papel de sujeitos de desejo e remeteu as
mulheres para o de objecto de desejo. Esta assumpção é pública, notória,
chega a ser espectacular na publicidade, no mundo dos meios de comunicação de
massas, mas é igualmente quotidiana, por toda a parte e a toda a hora. E
esboroou por completo os limites das representações tradicionais da
masculinidade. O manequim gay
tornou-se modelo da nova masculinidade e por isso mesmo, não apenas matriz de
identificação minoritária, mas de consumo generalizado. Um reparo, mesmo
assim: embora se trate de um fenómeno universal, também por efeito da
globalização que justamente globalizou o localismo que o ocidente nunca deixou
de ser também, este fenómeno assume contornos um pouco diferentes nos países
de tradição católica sul-europeia, em que as formas de sensibilidade do
paganismo clássico nunca adormeceram sob o fino verniz do pudor cristão. Com
efeito, aqui, o narcisismo masculino conheceu desde sempre formas muito
elaboradas de se institucionalizar, desde o antigo kouros
ao moderno matador de touros. Entre nós, boa parte da masculinidade em circulação
foi feita pelas fêmeas para dela se servirem e para os outros macho verem. Honni
soit qui mal y pense.
Um apontamento, porém: há que dizer
que, hoje, o principal mecanismo de dissuasão da prática sexual, da passagem
ao acto, é precisamente o erotismo visual. A erotização do olhar pressupõe a
sobre-estimulação da visão, com a concomitante narcose dos demais sentidos,
como há muito o apontou McLuhan. Ora os prazeres do sexo são mais áudio-tácteis
que visuais, mais afins da incandescente cegueira da pele e das mucosas que da
cortante frieza do olhar que vive da distância que permite ver. Não que o
olhar não possa convidar, sugerir, provocar, trespassar. Mas ou ele se resolve
no toque ou o suspende, dissuadindo-o, refreando-o até o dessenbilizar. A
omnipresença do erotismo visual tanto na esfera pública como na privada tem
precisamente por resultado a dessensibilização, a desaprendizagem, a inibição
da sinestesia sexual. A sobre-especialização visual vai a par com a iliteracia
sensitiva. Vemos bem, tocamos mal.
Por
outro lado, a desconstrução das representações da masculinidade e da
feminilidade, com as correspondentes consequências, quer na auto-imagem dos
indivíduos, quer na percepção social das atribuições de género, não só não
as confundiu definitivamente como deu origem a novas masculinidades e novas
feminilidades. Deste modo, multidimensionalizaram-se as sexualidades, hetero,
homo, masculinas e femininas: as homossexualidades já não se centram na sua
suposta inversão dos papéis sexuais, o travestismo deixou de ser apanágio das
homossexualidades e estas passaram a ser incluídas em variantes da
masculinidade e da feminilidade que, inclusivamente, lhes exageram as características:
daí que haja homossexualidades masculinas que se auto e hetero identificam pela
sua hipermasculinidade, caso da estética leather,
e, simetricamente, lesbianismos que se auto e hetero identificam pela sua
hiper-feminilidade, caso das femmes na
estética butch-femme. De resto, a
dominância teórica do construtivismo anti-essencialista e as práticas sociais
de persecução de estilos de vida particulares convergem no sentido da
multiplicação de formas e variantes daquilo a que convencionalmente se tem
chamado o gender bending, e do qual as
comunidades gay, lésbica, bissexual e
transgénero mais não fazem que apresentar algumas faces mais notórias. Nem
por isso a diferença sexual foi abolida, ao contrário do que tanto receiam as
mentes mais timoratas.
De
facto, há muitas mais diferenças sob o véu da normalidade universal do que
alguma vez sonhou a nossa vã psicologia. Eis por que as sexualidades contemporâneas
oferecem tamanho desafio teórico à compreensão e à investigação científica,
ao qual as academias só recentemente se começaram a abrir, nomeadamente, mas não
exclusivamente, por intermédio dos estudos de género, gays, lésbicos e queer.
Estes últimos dão conta da emergência recente daquilo a que chamam a queer
nation, a comunidade que abarca, sem realmente os conjuntar, todos os (des)construtores
de identidades que não se revêem em nenhuma, que temem os espartilhos
inerentes a cada uma, abominam a naturalização essencialista e a re-naturalização
das identidades por mor das necessidades estratégicas da militância feminista
e GLBT. O re-aprisionamento das potencialidades emancipatórias do
construtivismo em identidades rígidas, feministas, lésbicas, lésbico-feministas,
gays, etc., constitui o grande
fantasma da sensibilidade queer que equipara a construção rígida de identidades, na militância
político-social, à naturalização médico-científica de outrora. Judith
Butler é a autora que mais tematizou estes receios, fazendo dela, junto com Eve
Kosofsky Sedgwick, um dos nomes mais representativos da teoria queer.
No entanto, as boas intenções que parecem ter presidido à teorização queer
norte-americana não deixam de esbarrar com duas dificuldades de monta: por um
lado, com a necessidade política de definir identidades mais ou menos rígidas
em nome das quais dramatizar discriminações - que não deixam de continuar a
existir - e de formular direitos, liberdades e garantias, que continuam por
consagrar e aplicar; e, por outro lado, com as desigualdades sociais, económicas,
de representatividade política e capacidade de pressão que levam a que os mais
favorecidos possuam os meios de gerir a permutabilidade das suas diferentes
identidades (social, profissional, familiar, sexual, etc.) e os menos
favorecidos, que se vêem reduzidos à unidimensionalidade, isto é, compelidos
a gerir as suas vidas sobre um eixo único (social, profissional, familiar,
sexual, etc.).
Finalmente, o terceiro macro-fenómeno, a tecnologização do sexo. Ela
culmina com a ligação, e até o sonho de fusão, entre carne e máquina, na
era do cibersexo, mas vem de mais longe. Em tempos de ultra-sofisticação
cibernética, facilmente nos esquecemos, ou desvalorizamos o facto, que as
tecnociências biomédicas também são tecnologia. Nesta conformidade, o
pioneirismo da tecnologização do sexo cabe à farmacologia, com a pílula
anticoncepcional, que se alça de pleno direito ao estatuto de actor no processo
de separação entre sexualidade e reprodução. As possibilidades abertas pela
procriação medicamente assistida dão um novo sentido àquela separação: se,
primeiro, se tratava de tornar não reprodutiva a heterossexualidade, depois
foram as sexualidades não reprodutivas que, simetricamente, puderam aceder à
reprodução por meio da inseminação artificial, de que os casais de lésbicas
fornecem o exemplo mais notório. Isto é, a mediação tecnológica da
sexualidade permitiu que se passasse da ancestral sexualidade procriativa à
sexualidade sem procriação e desta à procriação sem sexualidade, numa
ruptura com o natural como horizonte normativo da intervenção tecnocientífica
humana que esvazia de fundamento antiquíssimos tabus. O afastamento da
animalidade representa pois uma perda da referência da vida humana à natureza.
O devir-humano, que se traduziu sempre por esse rompimento progressivo,
patenteia-se cada vez mais como artificialização na era da tecnociência.
Simplesmente, o que aconteceu foi que o artifício tecnocientífico se veio
sobrepôr ao artifício simbólico. Deste ponto de vista, a tecnologização da
vida em geral, e do sexo mais particularmente, não deixa de possuir uma inegável
dimensão emancipatória, na medida em que ameaça de modo directo os
fundamentos mítico-simbólicos da regulação moral e jurídica do sexo. A
tecnologização do sexo opera hoje transformações com uma magnitude e um
alcance equivalentes ao que ocorreu na sequência da industrialização, da
urbanização e da secularização do século XIX.
Com o cibersexo, a tecnologização da
sexualidade atinge um novo patamar. Afigura-se, no entanto, que o cibersexo, o
que lhe sobra em ciber mingua-lhe em sexo. Vistas de perto, as folestrias
cibersexuais são regidas por um noli me
tangere tecnológico que se veio substituir ao moral. O engate virtual, ou
se resolve no encontro real, ou suspende para sempre a presença do outro,
aproximando-se do dispositivo erótico de dissuasão do sexo de que falámos atrás:
é sempre possível desligar pura e simplesmente. O maior contributo da cultura
das redes para a sexualidade dos nossos contemporâneos será sobretudo a criação
de comunidades virtuais, assentes sobre três pilares: o engate sobretudo através
de salas de conversação (chats), mas
também da publicitação de perfis, a criação de personae
sexuais nos sites especializados em encontros ou em páginas pessoais e blogs,
e o comércio de artigos e imagens, mas também a prostituição e os serviços
de acompanhantes (entre os quais há incluir as redes criminosas dedicadas à
prostituição e à pedofilia). A comunicação online
é uma forma de telecomunicação em que a simultaneidade desempenha um papel de
destaque mas não esgota de maneira alguma todas as possibilidades que se
oferecem. De facto, a telecomunicação multidimensionaliza o espaço social,
estratificando-o em camadas que se reforçam tanto mais quanto é menor a sua
visibilidade, pois que as relações começam por estabelecer-se no interior do
espaço privado dos utilizadores de computadores pessoais, longe dos olhares
censório, inquisidor ou simplesmente voyeur
do espaço público. Neste sentido, as comunidades sexuais virtuais reconstroem
o relacionamento interindividual fora dos sistemas formais há muito existentes,
ou sedimentados, para esse efeito. E aqui todas as antigas distinções
efectivamente soçobram, entre o público e o privado, o social e o pessoal, o
armário e a assumpção. Todavia, para que o sexo do cibersexo sobrepuje o
ciber que não o é, terá, e para o ser realmente, de passar dos preliminares,
ensaiados à distância, ao acto em presença. O mesmo se aplica à teledildónica,
a estimulação sensorial por meio de próteses electrónicas. “Inter
urinas et faeces nascimur”, gozamos e morremos, e ainda não se achou
sucedâneo satisfatório para isso. Neste sentido, ainda não há condições
para se saber o que um ciborg realmente é, para além de um vago termo englobante de
realidades muito diferenciadas. Mais, a noção de corpo pós-humano não deixa
também de ter o seu quê de equívoco, porquanto pressupõe que tivesse alguma
vez existido, para posteriormente se perder, algo como um corpo humano, quando o
corpo se situa na zona limítrofe entre o humano e o não humano, como condição
não humana do humano. Assim sendo, o corpo resiste a ser pensado na medida em
que nos arrasta inelutavelmente para a aporia que consiste em que, quanto mais
nos aproximamos dele para perscrutar a origem daquilo que somos e fazemos, sexo
incluído, mais ele recua e se furta. Decerto que a tecnologização do sexo
evidenciou os limites do olhar antropomórfico que sobre ele longamente foi lançado;
mas a verdadeira questão não é essa e antes saber se alguma vez o nosso corpo
sexuado alguma vez foi humano, a não ser nas representações que dele se
fizeram, para que agora consternadamente o tenhamos de lamentar, ou
rejubilantemente o exaltar, pós-humano.
A tecnologização do corpo,
teorizaram-na Deleuze e Guattari muito antes de se saber sequer o que viria um
dia a ser o cibersexo. Com efeito, a noção central de máquina desejante
retira a máquina ao quadro mecanicista em que vulgarmente a entendemos e mostra
como o corpo desejante funciona, não como um organismo, mas como corpo sem órgãos,
isto é, como um todo que não totaliza nem unifica, antes é uma parte distinta
ao lado das suas partes, uma rede de órgãos parciais. Estes não são a
expressão de um organismo despedaçado, estilhaçado, mas antes o resultado de
intensidades e fluxos diferenciados que trabalham o corpo. É provavelmente a
estética leather, e, dentro desta, as
práticas S/M, que melhor ilustram a abordagem deleuziana e que constituem uma
autêntica vanguarda desse ponto de vista. E que, não só desse ponto de vista,
mas também dele, só têm de violência o suspenderem-na ad
infinitum na encenação erógena dela. O S/M é um teatro da crueldade sem
sangue, uma brincadeira que se leva a si própria a sério para poder brincar.
É a tirania do homem com tesão, lucidamente detectada por Sade, mas
transformada em estilização da conduta, num acting
out rigidamente regrado e pautado pelo consentimento entre os parceiros.
De
facto, o consentimento constitui a pedra de toque da autonomia do indivíduo que
a modernidade consagrou, conferindo à pessoa individual o valor máximo que a
onto-teo-antropologia dantes reservava a uma ideia de humanidade. Eis por que a
censura à pedofilia não só pode como deve absolutamente privilegiar a defesa
do indivíduo que não se encontra em condições de consentir, ao invés de
ecoar a histeria paranóica que o sacrifica a uma ideia de família ou de bem
moral, branqueando o facto de o grosso das violações à autodeterminação
sexual ocorrerem no seio da família ou de instituições de acolhimento de
menores. É o mesmo e um único princípio de autonomia que pode salvaguardar os
direitos, liberdades e garantias dos dissidentes sexuais e de todos aqueles cuja
condição de vulnerabilidade os torna incapazes de defender os seus próprios
interesses e cuja dignidade há que proteger. Não é a tirania do sexo que há
que combater, e sim a tirania do sexo dos outros sobre o sexo que é nosso. Não
há fundamentalismo religioso ou totalitarismo político que não se imiscua na
relação da pessoa consigo própria.
O
sexo é polimorfo e omnívoro, apanha o que está à mão, recorre a todos os
meios disponíveis, alia o engenho à astúcia, disputa migalhas em época de
carestia e aborrece iguarias em tempos de abundância. O sexo pratica a
antropofagia, como bem o notou o Manifesto Antropofágico do modernismo
brasileiro. Daí o seu imarcescível fascínio e o seu sempre iminente perigo.
Ele é a expressão mais directa da relação do indivíduo consigo próprio,
por isso não há sociedade nenhuma que, mediante instrumentos religiosos, jurídicos,
políticos, técnicos, não se tenha visto na necessidade de controlar, de
apropriar, de regular esse irredutível princípio de individuação por mor da
defesa da socialidade a que ele ameaça permanentemente subtrair o indivíduo.
Eis também porque não se vê como possa alguma vez apagar-se a tensão entre
ética privada, que exprime a relação do indivíduo consigo próprio, e a
moral colectiva, que representa a submissão às condições sociais de sobrevivência
do indivíduo. De resto, começa a ser uma trivialidade, mas uma trivialidade
embaraçosa e muito mal acolhida, que a auto-sexualidade constitui a forma mais
básica, universal e acessível de sexo que se conhece. “E como é bom tocar
um instrumento”, cantava Caetano Veloso aos nossos ouvidos incrédulos e
divertidos: podemos não saber explorar todas as possibilidades que a cornucópia
do nosso corpo nos oferece, mas, a haver perito no assunto, esse não poderá
deixar de ser, mais tarde ou mais cedo, cada um. E há que reconhecê-lo sem os
habituais temores de infantilização, de regressão solipsista ou de perda da
diferença sexual. Por mais sós que possamos estar, o sexo que nos põe em relação
connosco próprios, que é dimensão irredutível dela, abre-nos também à
necessidade do outro, à falta que só o outro-sempre-por-vir pode colmatar,
parafraseando a sábia fórmula hegeliana, que nos ensina que o desejo é desejo
do desejo do outro.
A
erótica moderna alimenta-se da tecnologização do sexo e da exploração
incessante dos limites da tolerância social. A exigência de verdade, no
ocidente judeo-cristão, primeiro, e científico-racional, depois, transferiu-se
da confissão para a scientia sexualis
até desembocar na assumpção individual da estilização da conduta própria.
Uma verdade que não reside naquilo que (nunca) se é, mas na persecução do
que se deseja ser. E esse devir, que é todo o devir-humano, já o sabemos, é
interminável. Tempos houve, e que há quem queira manter no espírito e na
letra dos manuais escolares de (des)educação sexual, em que o coriolário
obrigatório do sexo tinha forçosamente de ser o amor. Os tempos têm
demonstrado que um pode perfeitamente prescindir do outro. Convenhamos, porém:
sem humor é que o sexo não passa.